Esta é a primeira de uma série de entrevistas com guionistas de língua portuguesa, com um enfoque especial sobre o seu processo de trabalho. Pretende-se que seja uma janela aberta sobre o mundo, hábitos de escrita, e métodos dos criadores do cinema e da televisão falada na nossa língua. E nada melhor para começar do que fazê-lo com Tiago Santos, o guionista do próximo filme realizado por António-Pedro Vasconcelos, "A bela e o paparazzo", que chega às salas no próximo dia 28 de Janeiro.
Como é o teu processo de escrita normal? És de tratamentos, escaletas, etc. ou passas de imediato ao guião? Desenvolves biografias de personagens, etc?
Dependo do projecto em que estiver a trabalhar. No 'Conta-me Como Foi', por exemplo, tinha o episódio todo estruturado antes de começar a escrever. Era um mal necessário porque estávamos sempre dependentes do feedback dos produtores e da consultora histórica, com prazos muito apertados, e não havia tempo para escrever um episódio que depois fosse completamente rejeitado.
Mas falei de mal necessário porque eu, pessoalmente, não gosto de trabalhar assim. Sou mais confuso e espontâneo. Nos filmes do A-PV, o processo é diferente. Começamos por falar exaustivamente da ideia. Conversas atrás de conversas, jantares e mais jantares, muito jogo de futebol a passar no background.
Depois, quando já temos uma base para o ‘plot’ com a qual posso brincar, começo a fazer as tais escaletas, mas é quase apenas uma maneira de o convencer a deixar que me vá isolar numa casa durante um mês para escrever a primeira versão. E aí, muitas vezes, umas que resultam e outras não, acabo sempre por inventar coisas que me aparecem na altura, não sei de onde nem porquê mas que por alguma razão podem fazer sentido.
Ou seja, é bom e necessário ter uma ideia clara do enredo e das personagens antes de escrever a primeira linha, mas nunca tenho nada escrito em pedra. É aquela frase feita das personagens que ganham vida própria. Um daqueles cliché que existe porque é verdade.
Quanto tempo costumas levar a escrever um guião de cinema, e a que ritmo?
Regra geral, e depois de todo o trabalho que faço antes com o realizador, não demora mais de um mês. O ritmo é relativo. São trinta dias em que não penso em mais nada e, mesmo quando não estou a escrever, tenho sempre o filme na cabeça.
Em termos mais práticos, escrevo cerca de quatro horas por dia (o que dá cerca de três páginas) e ainda passo algumas horas a reescrever o que fiz no dia anterior (tarefa que costumo reservar para as manhãs, altura em que o meu cérebro funciona pior).
Por quantas versões passas, em média, até estares minimamente satisfeito?
Mais uma vez, é difícil fazer uma média desse género. Até porque não sou eu que tenho que estar satisfeito, mas sim o realizador e o produtor. Como dizia o Hemingway, a primeira versão de qualquer coisa é uma merda, e eu concordo. A segunda que fiz do Call Girl quase levou o António-Pedro Vasconcelos a abandonar o projecto. No entanto, considero que o meu segundo draft do Bela e o Paparazzo foi o que me saiu melhor. Tudo depende e tudo é diferente de filme para filme.
Trabalhas bem em parceria? Como é que divides as tarefas normalmente quando escreves em parceria?
Só trabalhei uma vez em parceria, com a Patrícia Muller, num projecto para o Jorge Queiroga que deve neste momento estar a descansar tranquilamente numa gaveta da Filmes do Tejo. Não desgostei da experiência, até acho que correu bem. Também aqui definimos uma escaleta e depois dividimos o filme por sequências, que depois atribuímos a cada um durante o processo de escrita.
Claro que isso implica depois também um trabalho posterior de rever o guião à procura de falhas de lógica e mesmo de comportamento, ter a certeza que a voz das personagens não vai mudando de uma cena para o outra e assim tornar o tom do filme homogéneo. Mas confesso que prefiro escrever sozinho, para mim faz mais sentido. Mesmo no Liberdade 21 e no Conta-me Como Foi, e apesar dos prazos, sempre fiz questão de assinar os meus próprios episódios.
Acho que é a melhor maneira de tentar garantir que aquilo que estou a escrever faz sentido para mim e ajuda também a que invista emocionalmente no projecto. Se estiverem cinco pessoas a trabalhar no mesmo episódio, és apenas uma roda na máquina, a tua voz perde-se e começas a escrever para encher papel. Gosto de pensar que estou a tentar dizer alguma coisa enquanto escrevo, mesmo que seja algo que está enterrado em várias camadas de subtexto.
Em que fases dás a ler a alguém aquilo que escreves? É a amigos, colegas, familiares – ou logo para o produtor?
Dou, claro. Tenho um grupo de algumas pessoas que são habitualmente incomodadas com os meus pedidos de ‘lê lá isso quando tiveres tempo, mas rápido’. João Tordo, Hugo Gonçalves, por exemplo. Acho fundamental ter essas opiniões, ajuda o meu trabalho e prepara-me para as críticas que irei ouvir também do realizador. Pela minha experiência, o guião apenas chega ao produtor quando o realizador já tem uma versão que o satisfaz nas mãos.
Como lidas com as notas e comentários de terceiros, produtor, realizador, leitores?
Da única maneira possível. Sorrio, digo que sim e escolho as minhas batalhas (no caso do realizador e do produtor). Há sempre questões de gosto e essas são muito difíceis de debater. Como guionista, tenho noção que estou a trabalhar para alguém, que preciso de me adaptar à visão do realizador e às necessidades mais pragmáticas do produtor.
Muitas vezes, não é fácil e dá vontade de beber. Noutras, ajuda a que o meu trabalho seja melhor.
Quando ao feedback dos leitores ou espectadores, aí é necessário filtrar o que se ouve, mas se muitas pessoas dizem o mesmo, então tenho quase de certeza um problema. E não acho que seja demasiado proteccionista daquilo que escrevo. Pode estar sempre melhor. Muito melhor. Mesmo depois de um guião estar fechado.
Qual é a tua abordagem às reescritas, que processo usas?
Compilo todas as notas, incluindo do realizador (e também do produtor, se já estiver envolvido no processo), debatemos as questões que necessitam ser resolvidas e lá vou eu fechar-me numa casa para me tentar safar outra vez. Isto quando são reescritas profundas, naturalmente. Por vezes, há apenas uma ou outra cena que precisa de retoques e, nesses casos, não sinto a necessidade de me transformar no Ted Kaczynski.
Onde é que costumas escrever? E quais são os teus horários/ritmos normais de escrita?
No dia a dia, escrevo em casa a olhar para a Basílica da Estrela. De vez em quando, vou para cafés, só para me lembrar de qual é o aspecto das outras pessoas. Se tiver um prazo para um filme, aí abandono a civilização e procuro uma casa onde esteja isolado.
As manhãs servem para reler o trabalho do dia anterior, as tardes para escrever novas cenas, as noites para ver filmes, ler livros e fantasiar sobre aquela altura da minha vida em que era sexualmente activo.
Que apetrechos usas para escrever: papel e caneta? Computador? Software? Quais e porquê?
Escrevo no computador, mesmo que vá tirando umas notas à mão quando uma ideia me surpreende no meio da rua. E uso Final Draft, porque facilita imenso a vida e simplifica os aspectos mais formais da escrita do guião. E gosto do aspecto com que o texto fica na página, não há aquela estupidez de diálogos para um lado e discrição de cena para o outro, esse truque imbecil que inventaram para os actores dobrarem as páginas ao meio para não terem que ler mais do que os seus próprios diálogos.
Quais seriam as condições ideais para poderes escrever o grande guião da tua vida?
Ter dinheiro e uma vida sentimental estável. A possibilidade de não ter que pensar em nada mais do que aquela história, e ter o luxo de lhe dedicar todo o tempo que fosse necessário.
Mas, por outro lado, o Paul Schrader escreveu o Taxi Driver em três semanas. E teve a ideia enquanto estava a viver num carro. Depois de se divorciar. Por isso, talvez não seja nem o conforto nem a necessidade que oferecem as condições ideais.
Talvez a melhor maneira de escrever 'o grande guião da minha vida' seja, de facto, ter uma grande história para contar.
Obrigado, Tiago, e boa sorte para o filme. Vemo-nos na estreia.
“Muitas vezes, não é fácil e dá vontade de beber.”
Só esta frase justifica a entrevista. A interessante resposta final (exemplificando com o Schrader) também vai de encontro ao que é apresentado no curso de guionismo deste blog. Fez-me lembrar uma frase do Pete Townshend (da banda The Who): “Escrevo muito melhor quando estou num estado miserável.” (relativamente ‘op.cit.’)
Muito bom esta entrevista…Estamos sempre aprender….
Gostava que a próxima entrevista fosse com o Luís Campos, um leitor do blogue que escreveu um guião ,acho que seria muito interessante para todos os aspirantes a guionistas, para saberem a sua experiência, sua dificuldade…
Obrigado por este espaço é melhor do que tirar um curso…
Muito boa entrevista. O Tiago Santos com respostas sinceras e honestas dão muita riqueza a este post. E concordo…escrever num estado miserável costuma dar bons frutos…
Caro João Nunes, preciso do seu auxilio. Estou neste momento no processo de pesquisa, na adaptação de um livro para guião, mas sei que de forma a assegurar os direitos da obra preciso de estabelecer uma “opção” (option) com o autor. Será que existe alguma minuta online? É possivel entrar em contacto comigo por mail?
O meu muito obrigado
Luís Alves