Neste momento estou a escrever uma curta-metragem em parceria com um guionista/realizador profissional e gostava de garantir que, na hora de registar o guião, se vai manter a autoria dos dois e não vai ficar só ele com os créditos do guião.
David
Eu e um amigo estamos a preparar-nos para criar um guião para uma série, mas surgiu-me uma questão: como somos dois, qual a melhor forma de trabalhar? Como organizar as ideias? Como decidir que caminho é o mais indicado? Esses pequenos detalhes que só existem quando não é só uma pessoa a decidir.
Helder
No caso do David, pelo que percebo, o processo de escrita já está em curso. Ou seja, as questões práticas, de método, já terão sido resolvidas de uma forma ou de outra. A sua preocupação é só com o futuro desse filho que agora está a fazer. Quanto ao Helder, aparentemente, a questão é mais prática e processual.
Há tantas fórmulas de escrita a dois quantas as duplas de escrita que existem. Não existe nenhuma solução universal, que se aplique a todas as duplas em todos os casos. Inclusivamente, imagino que uma mesma dupla pode, em trabalhos distintos, desenvolver técnicas de escrita distintas. De certa forma, um trabalho de escrita a dois é como um pequeno casamento, e cada “casal” tem de encontrar as suas formas próprias e naturais de relacionamento. O que dá certo para uns pode ser péssimo para outros, por isso não há certo nem errado, mas sim apenas o que funciona.
Antes de avançar, gostaria de deixar três notas introdutórias: em primeiro lugar, uma dupla de escrita não ganha o dobro de um escritor individual. O produtor vai pagar por um guião exactamente o mesmo valor, quer seja um guionista, dois ou vinte a escrevê-lo. E, como vamos ver mais à frente, também não se poupa muito trabalho ou tempo escrevendo em equipa. Por isso, a decisão de escrever a dois não deve ser baseada em motivos económicos, mas sim criativos e artísticos.
Em segundo lugar, é boa política torcer pelo melhor mas estar preparado para o pior. Assim, devem ficar claras desde o início as condições de uma eventual separação; uma espécie de acordo pré-nupcial que preveja quem fica com o quê em caso de divórcio. Este acordo vai variar conforme as circunstâncias: por exemplo, se a ideia original for de um dos parceiros, é possível que este queira ficar com o direito de a desenvolver sozinho se a experiência a dois não der certo. É pois boa ideia que se fale um pouco sobre estas questões, sem querer agourar, antes de começar a escrever.
Finalmente, e levando um pouco mais longe a metáfora do casamento, recordo aqui o melhor conselho que me deram na festa do meu: “Quando um não quer, dois não brigam” (obrigado, doutor Ivan). É sempre possível discutir ideias sem personalizar as questões. Além dos “Dez Mandamentos” (os originais, não o filme) nada mais está escrito em pedra; não há ideia nenhuma tão boa que não possa ser substituída por outra melhor. Só com tolerância, flexibilidade e abertura de espírito é que se pode ter esperança de fazer uma dupla de escrita funcionar.
Voltando agora à resposta, a questão do funcionamento de uma dupla de escrita pode ser dividida em três momentos distintos: como se formam as duplas; como trabalham; e como se separam.
Como se formam
Este é talvez o momento mais importante na definição de uma relação: a sua génese. Para dar certo, uma parceria tem de assentar em algumas bases:
- Afinidade – é difícil que duas pessoas que tenham concepções diferentes do cinema, do que torna um filme interessante, do que faz uma estória funcionar, consigam sentar-se juntas para escrever um guião. Se não houver um mínimo de entendimento sobre estes aspectos, é quase certo que mais tarde ou mais cedo a estória comece a ser puxada em sentidos distintos. Se, pelo contrário, os dois gostam dos mesmos filmes, sentem fascínio pelos mesmos personagens, apreciam os mesmos géneros e temas, é natural que se entendam com mais facilidade quanto à estória que querem escrever. Primeiro conselho, procure um parceiro com quem gostasse de ir ao cinema.
- Respeito – respeito e admiração mútua também ajudam. Num artigo que indico mais abaixo, Ted Elliott, dos “Piratas das Caraíbas”, diz que quando escreve uma cena está sempre a querer impressionar o seu parceiro Terry Rossio, e mesmo a querer provocar-lhe uma pontinha de inveja. E isso porque tem uma enorme admiração por ele, e respeito pela sua opinião. Se não sentirmos isto em relação ao nosso parceiro de escrita é provável que, mais tarde ou mais cedo, surja um de dois sentimentos: ou “porque é que vamos assinar os dois se as ideias são todas minhas?“; ou “afinal quem é este palhaço para estar a dizer que a minha ideia não é boa?“. Nenhum destes cenários, obviamente, vai levar a lado algum. Segundo conselho, procure um parceiro que respeite e que sinta o mesmo por si.
- Complementaridade – também pode ser benéfico se cada um dos parceiros tiver mais facilidade ou sensibilidade para alguns aspectos da escrita, e os dois se complementarem. Por exemplo, um pode ser muito bom no desenvolvimento dos enredos e o outro muito sensível à natureza humana e realismo dos personagens; um pode ter um ouvido excepcional para os diálogos, e o outro uma facilidade natural para escrever cenas dinâmicas, etc. Isto não quer dizer que, a partir daí, um só escreva diálogos e o outro cenas de acção. Mas dá mais garantia de que qualquer debilidade nesses aspectos será mais facilmente detectada e corrigida. Como o já referido Ted Elliott menciona, cada um dos parceiros tem de fazer 100% do trabalho, mas dos 200% juntos pode sair um guião melhor. Terceiro conselho, escolha um parceiro que complemente as suas próprias fraquezas com as forças dele.
- Confiança – obviamente, tem de haver uma relação de confiança muito grande entre os dois parceiros. Que passa por duas coisas: em primeiro lugar, naturalmente, pela razoável convicção de que o nosso parceiro não nos vai trair na primeira oportunidade. Este tipo de confiança é básico e não tem alternativa. Se for concebível a ideia de que o nosso parceiro nos pode apunhalar pelas costas, dificilmente vamos ser capazes de dar o nosso melhor ao projecto. Mas a confiança passa também por termos à vontade suficiente com o nosso parceiro para nos expormos sem medo do ridículo. Porque a realidade é que muitas das ideias que vamos lançar para cima da mesa vão ser más, ou tolas, ou simplesmente erradas. Mas dessas más ideias podem, num bom clima de trabalho, surgir outras muito boas. Isto só acontecerá, contudo, se nós tivermos começado por apresentá-las, sem receio do nosso parceiro nos rir na cara, ou achar que somos absolutamente idiotas. É por isso talvez que muitos parceiros de escrita começam por ser amigos que, no decurso dessa amizade, começam a trocar ideias e a desenvolver naturalmente projectos comuns. Quarto conselho, trabalhe apenas com um parceiro de confiança.
Não é necessário, obviamente, que todas as duplas tenham de ser assim. Há até, com certeza, exemplos contrários a isto, e que funcionam. Mas eu, pessoalmente, não conseguiria escrever com um parceiro se não estivessem cumpridas pelo menos uma boa parte destas condições.
Uma outra questão abordada por Ken Levine num dos seus divertidos artigos sobre o tema (a que ligo em baixo): a possibilidade de trabalhar com alguém com quem se tem uma relação íntima. Segundo ele, apesar de haver algumas duplas bem sucedidas de marido e mulher, geralmente esse tipo de relação gera tensões muito difíceis de gerir. Já bastam as pressões naturais de uma relação, sem ser necessário sobrecarregá-la com as diferenças de opinião sobre um personagem ou uma volta no enredo.
Como trabalham
Depois de encontrada a dupla certa, para o projecto certo, passa-se à fase de trabalho propriamente dito. Aqui há talvez ainda mais variações de método. Alguns guionistas gostam de estar permanentemente juntos, quer durante a fase de concepção quer durante a escrita. Outros gostam de trabalhar à distância, distribuindo tarefas. Outros ainda vão misturando esses dois sistemas ao longo do tempo.
Matt Damon e Ben Affleck, quando escreveram o guião de “Good Will Hunting“, que lhes valeu um Óscar de Melhor Argumento Original, combinaram ao longo de vários anos longos períodos de trabalho e reflexão isolados (motivados pelas suas carreiras de actores) com períodos intensos de escrita em conjunto. Outros guionistas encontram-se todos os dias, religiosamente, com horário marcado, como em qualquer emprego. No início de carreira, muitas vezes, esses encontros fazem-se nas horas livres e aos fins de semana. Terry Rossio e Ted Elliot, por exemplo, costumavam encontrar-se num café, onde escreviam à mão, passando o bloco de um para o outro. Cada dupla terá de encontrar a forma adequada à sua natureza e circunstâncias de vida.
Contudo, parece ser muito comum que a fase de concepção inicial da estória, do brainstorming até à estruturação do enredo, seja feita em conjunto. O trabalho em dupla, com o seu vaivém de troca de ideias, adapta-se muito bem a esta fase de um projecto de escrita. É mais fácil encontrar soluções para os problemas que se vão colocando, detectar os erros lógicos de enredo, perceber falhas de estrutura. Muitas duplas gostam de fazer este trabalho recorrendo ao método tradicional dos cartões, que tem uma componente física que se presta bem à troca e interacção entre duas pessoas.
Quando se passa à fase seguinte, de escrita propriamente dita, encontram-se mais diferenças nos métodos de trabalho de cada dupla. Em certos casos um dos guionistas ocupa naturalmente o lugar ao computador, enquanto o outro anda pela sala. Noutras duplas, os dois guionistas vão-se revezando no teclado. Por vezes, os parceiros preferem distribuir o trabalho entre si e escrever separados, cada um em sua casa: em modo paralelo (um escreve umas cenas e outros outras, e depois discutem-nas); ou em modo ping-pong (um escreve uma cena, passa ao outro que a rescreve, e assim por diante até estarem ambos satisfeitos). Em alguns casos os parceiros podem até fazer divisões mais longas: um escreve o primeiro acto e o outro o terceiro, e alternam no segundo. Ou então partem a estória em sequências que dividem entre si. Os softwares de escrita profissionais, como o Final Draft, até têm opções próprias para estes processos de escrita à distância.
Seja qual for o método adoptado, há contudo algumas regras que devem ser respeitadas:
- Ser pontual;
- Respeitar prazos de entregas;
- Ser delicado;
- Ser flexível e aberto;
- Na relação com terceiros, falar sempre em “nós”;
- Não personalizar as discussões das ideias;
- Ser justo na divisão do trabalho;
- Não trazer os problemas pessoais para o trabalho.
Todos os métodos de trabalho são válidos, desde que produzam o melhor resultado possível para aquelas duas pessoas, naquele projecto. O importante é que cada um dos parceiros se sinta confortável com a solução encontrada, que deve surgir naturalmente da interacção das suas personalidades.
Como se separam
Esta é talvez a parte mais delicada, e a que traz maior potencial de problemas. Como já referi antes, e alguns dos guionistas citados a seguir não se cansam de realçar, é importante que fique tudo bem definido antes de começar a escrever. Curiosamente, quando os trabalhos são encomendados, parece haver mais facilidade em encontrar soluções. Os guionistas sabem que aquele projecto, na realidade, não lhes pertence, por isso não se põe a questão de quem fica com os direitos no caso de uma separação: é o produtor. É no caso de um trabalho de inciativa própria (o que os americanos designam por “spec“, de especulativo) que há maior potencial de tensão.
Resumidamente, os pontos a deixar claros são:
- Onde e quando é que se vai trabalhar? Na casa de cada um, num café, num hotel das Bahamas? Pode ser qualquer local, desde que um dos dois não se vá sentir sistematicamente desfavorecido.
- Quando se fizer o registo do guião, quem aparece como autor? Normalmente deverão ser os dois guionistas, mas pode ser necessário criar distinções como “Ideia original de X” e “Guião de X&Y“.
- Quem fala com os produtores, realizadores, e outros parceiros futuros? Vão os dois, ou há um com mais facilidade para isso? Nesse caso, o outro não se vai sentir marginalizado? É bom esclarecer isto antes.
- Como vai ser distribuido o dinheiro da venda do guião? Uma vez mais, o 50/50 é a norma, mas pode haver excepções. Não convém é que surjam apenas na altura de fechar as contas.
- Quando houver diferenças de opinião durante a escrita, como é que se ultrapassam? Moeda ao ar? Voto de terceiros? Thai boxing? Decide o mais experiente? É importante que haja um princípio de acordo sobre este ponto, pois mesmo que o problema surja apenas uma vez, pode ser o suficiente para inquinar a relação.
- No caso dessas diferenças de opinião serem irreconciliáveis, o que é que acontece? O projecto é abandonado pelos dois, ou um tem o direito de continuar com ele? Nesse caso, quem e em que condições?
Finalmente, mesmo depois de se concluir um projecto, ele continua a ter uma vida própria. Nem sempre um guião é imediatamente vendido, e o futuro pode trazer novidades e surpresas. Por exemplo, dois parceiros desenvolvem um guião de cinema, mas não o conseguem vender logo. Separam-se naturalmente e cada um segue a sua vida. No entanto, uns tempos depois, um produtor decide adaptar aquele guião para uma série de televisão. Se nesta altura os dois não poderem pegar nesse trabalho em conjunto, como se processam as coisas? Aceita-se esse trabalho? Que remuneração cabe a um e a outro, se só um for desenvolvê-lo? Enfim, aqui é mais complicado fazer futurologia, mas é bom falar destas possibilidades, para ter a certeza de que não há visões absolutamente incompatíveis.
Conclusão
Uma parceria de escrita pode ser a solução ideal para alguns guionistas, por feitio, necessidade ou opção. Noutros casos, como por exemplo na rescrita de um guião já existente, um guionista pode ver-se a trabalhar em dupla sem nunca o ter desejado. Numa situação ou noutra é importante ter em conta alguns dos aspectos que mencionei neste artigo. E, sobretudo, nunca esquecer que o cinema é uma arte colaborativa, e que a primeira fase dessa colaboração pode ser entre dois guionistas.
Termino com alguns artigos que abordam a escrita em dupla, e um pequeno excerto de um documentário antigo sobre uma das grandes parcerias da história do cinema: Billy Wilder e I. A. Diamond.
Sobre os cuidados a ter numa parceria: “Nessa altura já não estavamos a escrever por gozo, mas para sobreviver. Isto colocou muito mais pressão sobre nós como dupla de escrita e até como amigos. Ultrapassamos isso rapidamente, mas essa é a razão pela qual é boa ideia discutir os detalhes e as “regras” da parceria no início do processo, mesmo que sejamos bons amigos e a conversa seja um pouco desconfortável” (Artigo original em inglês)
Roberto Orci & Alex Kurtzman: “São parceiros de escrita há 17 anos. Atribuem o seu sucesso ao facto de tratarem a sua relação como um casamento, e lhe aplicarem os adágios tradicionais: Não vão para a cama zangados; certifiquem-se de que um dos lados não sente que está a fazer todo o trabalho sozinho; respeitem as forças e fraquezas de um e do outro”.(Artigo original em inglês)
Sobre Terry Rossio & Ted Elliott: “Sem mais delongas vou desfazer um dos maiores enganos acerca da escrita com um parceiro. Estão prontos? Então aqui vai: não torna a escrita mais fácil. (…) Um parceiro não torna a escrita mais fácil. Mas pode tornar um guião melhor”. (Artigo original em inglês)
Sobre Ken Levine & David Isaacs: “Uma boa parceria é como um casamento excepto o facto de que abdicamos de metade do nosso dinheiro ANTES do divórcio“. (Série de artigos, sobre o tema, em inglês)
Billy Wilder e I.A. Diamond: o melhor é mesmo ver este vídeo…
Pingback: Flashback 2009 | joaonunes.com
Pingback: JOÃO NUNES | desenvolver um argumento | Perguntas & Respostas: como desenvolver um argumento? | Mês das Perguntas, Perguntas & Respostas, profissão |