Quando uma personagem está atenta à televisão é necessário referir as falas que está a ouvir na tv, ou basta uma pequena anotação do que se está a passar? – Marta.
Marta, por princípio devemos descrever no guião tudo o que de importante se vá ver e ouvir no filme. As palavras, imagens ou informações que passam numa televisão de cena, quando relevantes para a estória, não são excepção.
O nível do detalhe, contudo, tudo vai depender de dois factores:
- a importância que essas falas tenham para a estória:
- e de como elas vão ser produzidas para o filme.
Vejamos algumas possibilidades.
1) Se o que está a ser dito na televisão não tem importância nenhuma para o desenvolvimento da estória, pode apenas fazer uma descrição na generalidade:
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Francisco entra no bar. Está quase vazio. Uma televisão passa um desafio de futebol em altos berros.
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ou
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Francisco vai olhando para os anúncios que passam na televisão enquanto espera que atendam o telefone.
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2) Se as informações que estão a passar na televisão forem importantes para a estória mas não forem produzidas especificamente para o filme, pode não ser necessário indicar os textos exactos, mas convém pelo menos indicar a sua origem:
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Francisco, horrorizado, vê na TV as notícias relativas ao tsunami no Japão (imagens de arquivo). Tira imediatamente o telemóvel do bolso e marca um número.
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Se a sua pesquisa já lhe forneceu essas palavras ou informação, pode indicá-las ou, pelo menos, mostrar o seu início:
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Francisco abraça Rui com força. Na televisão o locutor Fialho Gouveia, numa imagem granulosa a preto e branco, anuncia a revolução do 25 de Abril (imagens de arquivo).
FIALHO GOUVEIA (NA TV)
Na madrugada do dia 25 de Abril, o Movimento das Forças Armadas portuguesas, no decurso de uma acção conjunta, estabeleceu o controlo da situação política em todo o País…(continua)
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3) Finalmente, se as palavras e ou informações (incluindo imagens, fotografias, gráficos, etc.) forem importantes e tiverem alguma informação específica para o filme, terão de ser criadas e escritas como qualquer outra coisa que apareça no filme. Nesse caso devem ser descritas com o mesmo nível de detalhe.
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Francisco, divertido, assiste à entrevista que Rita está a dar na TV. É um talkshow com uma entrevistadora bastante popular.
ENTREVISTADORA (NA TV)
Até ontem você era uma desconhecida do país, Rita. Hoje é uma figura famosa. Como se sente com isso?
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O princípio geral é dar apenas a informação necessária e suficiente para fazer entender e avançar a estória de forma envolvente.
Não devemos encher o nosso guião com informação e textos desnecessários, que distraiam do rumo central da estória, mas também não podemos deixar de fora qualquer informação que seja essencial para a sua compreensão.
Hmmm… Fiquei com uma dúvida: no caso de o que se está a passar na TV ser mesmo importante, é pertinente usar cabeçalhos secundários para descrever as imagens?
abraço
Poderíamos usar cabeçalhos secundários, sim. Nesse caso seria algo como isto:
(…)
Francisco está fascinado com o programa que passa no televisor.
NA TV
Um talkshow com uma entrevistadora bastante popular.
ENTREVISTADORA
Até ontem você era uma desconhecida do país, Rita. Hoje é uma figura famosa. Como se sente com isso?
DE VOLTA À CENA
Francisco sorri e fala sincronizado com Rita.
FRANCISCO/RITA (NA TV)
(ao mesmo tempo)
Surpreendida. Muito surpreendida.
(…)
O formato guião é muito rígido em algumas coisas, mas oferece grande flexibilidade noutras, especialmente no que tem a ver com o estilo de escrita de cada autor. O importante, como não me canso de dizer, é que quem leia o guião entenda perfeitamente o que se vai passar no filme.
Fica anotado. Obrigado, João!
Boa tarde João,
Eu tenho uma dúvida, e não tenho conseguido obter resposta em nenhum lugar. O personagem vê TV, como descrever no guião a passagem do local da cena onde está o personagem para a cena que está a passar na TV. Ou seja, uma espécie de “entrar na TV” para a nova cena?
Olá Pedro. Volto sempre a bater na mesma tecla: para escrever qualquer cena temos de decidir duas coisas:
* O que queremos que se veja e ouça no ecrã;
* Qual a melhor maneira de transcrever isso para o guião.
Como é natural, a segunda decisão está intimamente ligada à primeira. A solução de escrita depende, essencialmente, do que está a ser visto na televisão.
Por exemplo, se for uma emissão em directo, a solução de escrita será uma; se for uma imagem de arquivo da RTP Memória, será outra; se for um desenho animado do Bugs Bunny, implicará ainda outra solução; etc.
Vejamos o caso mais simples.
Se um personagem assiste num determinado local a uma emissão em directo na tv e, de seguida, queremos acompanhar no local o que ele estava a ver no ecrã, isso implica uma mudança de cena, e por conseguinte um novo cabeçalho, descrição, etc.
A nossa única preocupação será garantir que o leitor percebe claramente que a nova cena é a continuação do que estava a ser visto na tv.
Tomando o exemplo de uma resposta anterior, seria algo assim:
(…)
INT. SNACK BAR – NOITE
Francisco, ao balcão do snack do Júlio, está fascinado com o programa que passa no televisor.
NA TV
Um talkshow com uma entrevistadora bastante popular.
ENTREVISTADORA
Até ontem você era uma desconhecida do país, Rita. Hoje é uma figura famosa. Como se sente com isso?
DE VOLTA À CENA
Francisco sorri e fala sincronizado com Rita.
FRANCISCO/RITA (NA TV)
(ao mesmo tempo)
Surpreendida. Muito surpreendida.
Francisco ergue o copo de vinho na direcção do televisor. No ecrã Rita encolhe os ombros e sorri.
INT. ESTÚDIO TELEVISIVO – TALK SHOW – AO MESMO TEMPO
A lente de uma câmara de televisão foca Rita, que demonstra grande à-vontade. A celebridade encaixa-lhe como uma luva.
RITA
Mas a surpresa não me impede de estar a gozar cada momento.
A entrevistadora acena afirmativamente, como que aprovando a resposta.
ENTREVISTADORA
Fale-me um pouco da sua vida A.C. – Antes da Celebridade. Como era o seu dia a dia, Rita?
(E a cena segue normalmente…)
Vejamos os outros exemplos que referi.
Se a cena fosse uma imagem de arquivo, o cabeçalho teria que indicar o salto temporal, através de um FLASHBACK ou de uma mudança de época:
FLASHBACK – EXT. LARGO DO CARMO – DIA
ou
EXT. LARGO DO CARMO – DIA (25 DE ABRIL DE 1974)
Se a mudança fosse do mundo real para um mundo de cartoons, o cabeçalho teria de indicar se essa mudança se passa apenas na cabeça de quem estava a ver o programa na TV (uma FANTASIA, portanto) ou se é uma mudança no universo diegético da nossa estória – se mudamos mesmo para essa nova realidade:
FANTASIA – EXT. DESERTO – DIA (ANIMAÇÃO)
ou
EXT. MUNDO DE CARTOON – DESERTO – DIA
Como vê, cada situação dramática terá uma solução diferente, adequada às suas características.
O importante é o leitor nunca ficar perdido e saber sempre onde está, com quem e de que forma. E querer saber o que acontece a seguir, naturalmente :)
Termino com um exemplo real, tirado do clímax de um guião excelente, “Slumdog Millionaire”. É um ótimo guião para ler e estudar pois está cheio de cenas que saltam entre um estúdio de televisão e vários locais e tempos diferentes. Todas as soluções estão lá.
(…)
INT. JAVED’S SAFE-HOUSE. BATHROOM. NIGHT.
A small tv in the bathroom. Salim smiles.
JAVED O/S
Salim! Teri ma ki chute! Salim!
Javed is banging on the door. Salim gets up from where
he has been praying. He climbs into the bath which is
full of bank notes and lies down amongst the money. He
reaches across for the pistol and picks it up. Smiles
slightly as Javed smashes down the door, pulls the
trigger and shoots Javed. He falls onto the floor,
dead. But the Thug right behind him shoots Salim in the
chest. He lies back in the bath, the faintest trace of
a smile on his face as he stares at the pictures of
Jamal on the tv.
SALIM
God is good.
Salim dies.
INT. STUDIO. BACKSTAGE. NIGHT.
Prem and Jamal are being posed by photographers. A
giant-sized cheque for twenty million rupees is
manhandled onto the floor by the Floor Manager and an
Assistant amidst much cheering and laughter. Jamal is
snapped next to a scowling Prem. The Inspector appears
next to them.
INSPECTOR
Just one more thing left, Sir.
(…)
Obrigado João,
fiquei completamente esclarecido com a sua excelente resposta. Eu não sabia o que fazer, adoptei um pouco esse método (ser claro com o leitor), mas estava inseguro se seria o correcto tecnicamente, ou se é mais uma daquelas coisas identificadoras imediatas de amadorismo.
Cumprimentos,
Estou aprendendo muito com este blog do João Nunes. Saudações do Brasil.
Obrigado!
E no caso da reportagem que o personagem assisti está sendo narrado pelo jornalista e vemos apenas as imagens do ocorrido? pode-se fazer algo como:
REPÓRTER(V.O. – NA TV)
Houve confronto entre os manifestantes e policiais, sendo necessário o uso de gás lacrimogêneo para acalmar a multidão, que revidou atirando pedras e garrafas contra os oficias…
Obrigado, João!!!
Sim, José Junior, penso que uma solução dessas funciona. Ficaria assim.
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Carlos não consegue tirar os olhos da televisão, onde as imagens, COMENTADAS por um repórter, são aterradoras.
REPÓRTER (V.O. NA TV)
Houve confronto entre os manifestantes e policiais, sendo necessário o uso de gás lacrimogêneo para acalmar a multidão, que revidou atirando pedras e garrafas contra os oficiais…
[/scrippet]
João, obrigado de novo, cara!