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Mês das Perguntas: Como dar informação sobre a conjuntura histórica de um guião?

    Qual é a forma mais conveniente (ou eficiente) de dar no início do guião a informação sobre a conjuntura histórica/política/social em que decorre a estória? — Rafael

    Rafael, há várias maneiras de conseguir dar o enquadramento histórico ou o contexto necessário para entender uma determinada estória que se passa num tempo ou num mundo com que os espectadores não estão familiarizados.

    Este tipo de informação faz parte do que se chama normalmente exposição – informação que não faz directamente parte da acção da estória mas é necessária para a sua melhor compreensão.

    Num artigo do Curso de Guião fiz referência a algumas regras para a utilização correcta da exposição num guião.

    Todas essas regras são importantes neste caso da exposição inicial mas há uma que é particularmente válida: quanto menos melhor.

    Devemos limitar a apresentação deste tipo de informação aos mínimos estritamente necessários, confiando na capacidade do espectador para deduzir e entender o resto. Em última instância, se não tivermos a certeza absoluta de que a informação faz falta, devemos simplesmente evitá-la.

    Se julgarmos mesmo necessário dar alguma informação de enquadramento geral da estória, temos essencialmente três maneiras de o fazer:

    • Dentro da própria acção, por imagens ou diálogos;
    • Através de uma voz off, normalmente de um personagem do filme;
    • Através de legendas de texto.

    Vejamos então alguns exemplos, retirados de filmes bem conhecidos.

    Dentro da própria acção

    Esta é a forma mais elegante mas também mais difícil de passar este tipo de informação. Quando optamos por este caminho não enfiamos a exposição abruptamente pelos olhos ou ouvidos dos espectadores, mas integramo-la no decurso da própria estória através de imagens ou de diálogos, em situações naturais para os personagens.

    Como esta forma de apresentação é mais difícil de conseguir temos de avaliar bem se vale o esforço adicional. Por vezes pode ser mais eficaz passar a informação de forma óbvia e directa do que andar às voltas para conseguir uma maneira complicada de a integrar na narrativa.

    No entanto, quando é bem conseguida, vale a pena o esforço.

    Por exemplo, no filme WALL-E, com guião de Andrew Stanton & Jim Reardon, o caos em que encontramos a Terra é explicado durante as primeiras cenas do filme.

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    EXT. AVENIDAS DE LIXO – ENTARDECER

    Wally viaja sozinho.

    Atravessa milhas de lixeiras desoladas. Sem ligar às tempestades de clima tóxico.

    Passa por estruturas assombradas enterradas no lixo. Prédios, autoestradas, cidades inteiras…

    Tudo está identificado pela mesma MARCA DE EMPRESA. “Buy N Large”

    São lojas “BNL”, restaurantes, bancos… até transportes!

    A empresa parece ter dirigido todos os aspectos da vida.

    Até há uma MARCA BNL no peito de Wally.

    CLOSE NUM JORNAL que Wally pisa no caminho.

    Título: “HÁ LIXO DEMAIS!! Terra Coberta!!”

    Subtítulo: “Presidente da BNL Declara Emergência Global!”

    A fotografia mostra o Presidente com um sorriso meio amarelo.

    (…)

    Wally passa por uma série de CARTAZES PUBLICITÁRIOS HOLOGRÁFICOS. Os cartazes alimentados por energia solar activam-se quando passa por eles.

    ANUNCIANTE NO CARTAZ (V.O.)
    (Anúncio #1: marca BNL sobre o lixo)
    Lixo demais à sua volta?
    (Anúncio #2: nave no espaço)
    Há muito espaço no Espaço!
    (Anúncio #3: nave espacial descola da Terra)
    Naves BNL com partidas todos os dias.
    (Ad #4: unidades WALL-E fazem adeus)
    Vamos limpar o lixo enquanto você estiver ausente.

    (…)
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    É extraordinário como, em apenas duas cenas simples, percebemos exactamente o que aconteceu à Terra e porque razão Wally continua a trabalhar no meio daquela desolação. Essa informação será também essencial para entender a segunda parte do filme, passada numa das naves espaciais aqui mencionadas.

    Vejamos outra forma de introduzir a informação, desta vez através de diálogos dos personagens, introduzidos com naturalidade na acção. Esta cena é retirada do guião do filme Last of the Mohicans, de Michael Mann & Christopher Crowe.

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    Uma pausa, e depois…

    HAWKEYE
    E então, Jack? O que te traz por aqui?

    JACK
    Um exército francês e índio saiu de Forte Carillon em direcção ao Sul, para combater os ingleses. Estou aqui para reunir a milícia local para ajudar os britânicos.

    HAWKEYE
    E o pessoal daqui vai entrar nessa luta?

    JACK
    É isso que vamos descobrir de manhã.

    CHINGACHGOOK
    Os pais da Inglaterra e França, todos querem mais terra, e peles, do que precisam. São frios e gananciosos.

    JACK
    Poucas pessoas negarão isso. E vocês, para onde vão?

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    Em poucas palavras, perfeitamente justificadas pela acção, já que os personagens estão reencontrar-se depois de longo tempo de separação, ficamos a saber tudo o que é preciso sobre o ambiente histórico e os conflitos subjacentes ao mundo em que a estória vai decorrer.

    Através de uma voz off (V.O.)

    Uma segunda forma de apresentar o contexto da estória é através de uma voz off inicial.

    A voz off, ou voice over, que se representa nos guiões com a indicação (V.O.), é um recurso dramático em que alguém, geralmente um dos personagens da estória, fala um texto, sem que essa fala ocorra directamente na cena.

    Uma das mais famosas vozes off da história do cinema é a do protagonista do filme Sunset Boulevard, guião de Charles Brackett, Billy Wilder e D.M. Marshman, Jr. Nas primeiras cenas do filme vemos o narrador morto numa piscina, mas é a sua voz que nos conta todos os eventos que conduziram a essa situação.

    A voz off deve ser usada com moderação. Normalmente funciona melhor quando é usada como um comentário irónico à acção, como no exemplo anterior. Já funciona menos bem quando serve apenas para fornecer informação.

    Se escolhermos esta ferramenta resta-nos fazer o possível para que as palavras em si, a forma como são escritas e apresentadas, e a própria informação, sejam suficientemente interessantes para agarrar os leitores e espectadores.

    É o que acontece logo na primeira página do guião de Lord of the Rings: The Fellowship of The Ring, da autoria de Frances Walsh, Phillippa Boyens & Peter Jackson a partir da obra de J. R. R. Tolkien.

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    ECRÃ NEGRO

    LEGENDA: New Line Cinema Presents

    LEGENDA: A Wingnut Films Production

    O NEGRO CONTINUA: …CANTOS ÉLFICOS… A VOZ DE UMA MULHER sussurra, tingida de TRISTEZA e ARREPENDIMENTO:

    GALADRIEL (V.O.)
    (Élfico: legendado)
    “I amar presten aen: han mathon ne nen, han mathon ne chae … a han noston ned wilith.”
    (Inglês:)
    O mundo está mudado: sinto-o na água, sinto-o na terra, cheiro-o no ar… Muito disto já esteve perdido, pois ninguém está vivo que ainda o lembrasse.

    LEGENDA: O SENHOR DOS ANÉIS

    EXT. PRÓLOGO – DIA

    IMAGEM: FOGOS QUE TREMULAM. É a FORJA NOLDORIN em EREGION.

    OURO DERRETIDO ESCORRE da borda de uma caldeirão de ferro.

    GALADRIEL (V.O.)
    Começou com a forja dos Grandes Anéis.

    IMAGEM: TRÊS ANÉIS, cada um com uma pedra preciosa, são recebidos por três ALTOS ELFOS – GALADRIEL, GIL-GALAD e CIRDAN.

    GALADRIEL (V.O.) (CONT’D)
    Três foram dados aos Elfos: imortais, sábios… os mais justos dos seres.

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    O monólogo de Galadriel continua no mesmo tom relatando todos os eventos prévios relacionados com os anéis que motivam a aventura de Frodo Baggins e seus companheiros.

    A voz off é um recurso poderoso nas mãos de quem o sabe usar. Mas é muitas vezes aplicada de forma preguiçosa, correndo o risco de se tornar uma muleta fácil nas mãos de alguns guionistas menos exigentes.

    O mesmo se passa com o recurso seguinte.

    Legendas iniciais

    A utilização de legendas iniciais para apresentação de informação deve ser o último recurso. É exposição pura e dura, usada sem qualquer vontade de disfarçar ou dourar a pílula.

    Escolhemos esta opção quando queremos dar a informação e seguir em frente o mais depressa possível. Tudo o que foi dito antes também se aplica aqui: menos é mais; e quanto mais interessante e curiosa for, melhor.

    Nesse sentido, e quando bem usada, pode ser muito eficaz e até memorável, como prova o nosso último exemplo: quem não se lembra da sequência inicial de Star Wars Episode IV, estória e guião de George Lucas, com as legendas desfilando em perspectiva contra o céu estrelado?

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    “Há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante…”
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    Conclusão

    A escolha de uma destas três formas de apresentação da informação depende de critérios muito diversos, alguns deles completamente subjectivos: o gosto do guionista, o tipo de filme, as características da própria informação a transmitir, imposições de produção, etc.

    Além disso, cada uma destas opções pode ter muitas variantes. Encontrar uma que seja original, interessante e adequada à estória que estamos a contar será sempre um grande desafio para um guionista.

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