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Mês das Perguntas: Quais os problemas mais frequentes nos guiões?

    Da sua experiência a ler guiões amadores, quais os problemas mais sérios ou mais frequentes que tem encontrado? –Márcia

    Márcia, podia responder-lhe com algumas notas e impressões genéricas sobre o assunto, mas felizmente surgiu recentemente na net um artigo que me ajuda a dar-lhe uma resposta mais sólida a essa questão.

    De acordo com uma nota publicada no forum The Blackboard um leitor de guiões profissional, não identificado, analisou no ano passado 300 guiões para um estúdio de Hollywood. Até aí nada de especial: os leitores profissionais têm precisamente a responsabilidade de ler, avaliar e recomendar guiões, trabalhando para todos os estúdios e produtoras. Como tal, são a primeira barreira que os nossos guiões têm de ultrapassar antes de chegar às mãos dos produtores.

    Mas o que é torna este caso especial é que o dito leitor teve o trabalho de registar estatisticamente uma série de dados sobre os guiões que avaliou e, dessa análise estatística, nasceu um infografismo que inclui informação muito útil para todos os guionistas.

    Infografismo_problemas_dos_guioes

    A mais imediata e óbvia é uma lista dos 38 problemas mais comuns que ele encontrou nos 300 guiões estudados. Vou traduzi-la aqui e depois falarei um pouco sobre os cinco principais problemas.

    Os 38 principais problemas

    1. A estória começa demasiado tarde no guião
    2. As cenas não têm conflito significativo
    3. O guião segue uma fórmula previsível
    4. A estória tem pouca substância
    5. Os vilões são apenas caricaturas, maus só por ser maus
    6. A lógica dos personagens é nebulosa
    7. Os papéis femininos são pouco desenvolvidos
    8. A narrativa cai em padrões repetitivos
    9. O conflito é inconsequente, muito baralho mas poucos resultados
    10. O protagonista é um tipo de heróis já demasiado visto
    11. O guião tem mais estilo que substância
    12. O final é completamente anticlimático
    13. Todos os personagens são estereótipos
    14. O guião sofre com complicações arbitrárias
    15. O guião descarrila no 3º ato
    16. As questões levantadas pelo guião ficam por resolver
    17. A estória é uma cadeia de episódios desconexos
    18. O enredo desenrola-se forçosamente para dar jeito
    19. O tom do guião é confuso
    20. O guião é excessivamente frio e seco
    21. O protagonista não é tão forte quanto deveria
    22. A ideia do guião é apenas uma desculpa para a acção
    23. As histórias passadas dos personagens são irrelevantes e inúteis
    24. O elemento sobrenatural está pouco definido
    25. O enredo arrasta-se através de calmarias desnecessárias
    26. O final é um caso de deus ex machina
    27. Os personagens não se distinguem uns dos outros
    28. A estória é um grande bocejo
    29. O diálogo é feito de clichés gastos de filmes de acção
    30. O guião é medíocre e escrito a pensar no lucro fácil
    31. O drama/conflito é contado mas não mostrado
    32. A grande premissa não é aproveitada
    33. O elemento emocional é exagerado
    34. Os diálogos são rígidos e complicados
    35. O elemento emocional é negligenciado
    36. O guião não passa de uma indulgência do ego do autor
    37. O guião é cheio de referências, mas sem ironia
    38. A mensagem sobrepõe-se à estória

    Antes de avançar, convém recordar que esta análise é necessariamente subjectiva e foi feita do ponto de vista de Hollywood. Outros tipos de estórias, para outros fins ou mercados, podem ser avaliadas com critérios diferentes.

    Além disso, alguns destes pontos aplicam-se apenas a estórias muito específicas, e não são generalizáveis. Por exemplo, o ponto 24, “o elemento sobrenatural está pouco definido”.

    Mas os cinco primeiros problemas são mais ou menos consensuais e merecem um pouco de desenvolvimento.

    Os 5 principais problemas… desenvolvidos

    A estória começa demasiado tarde no guião

    Já encontrei este problema em inúmeros guiões que li. O guionista está tão apaixonado pelo mundo e pelos personagens da sua estória que dedica páginas e páginas sem fim a descrevê-los.

    Se o mundo e os personagens forem realmente interessantes isso até pode funcionar durante algum tempo, mas a certa altura começamos a interrogar-nos “quando é que a estória começa?”. Com isso queremos normalmente dizer, “quando é que o protagonista começa a tentar resolver o problema ou conflito central da estória?”.

    Se a resposta não vier rapidamente, o mais certo é fartarmo-nos e pormos o guião de lado.

    Em termos muito gerais, devemos usar os primeiros 20 ou 25% do nosso guião para apresentar o nosso mundo, os personagens principais, e o problema dramático da estória. A partir daí temos que começar a mostrar as escolhas do nosso protagonista para tentar resolver esse problema – ou, então, somos nós quem tem um problema.

    As cenas não têm conflito significativo

    No curso de guionismo do blogue publiquei em tempos a seguinte fórmula: Drama = Conflito + Surpresas.

    Essa continua a ser a fórmula crucial para escrever um bom guião. Mas atenção: nem todo o conflito conta. Podemos ter um guião em que dois personagens discutem do primeiro ao último momento, e mesmo assim esse guião ser fraco, previsível e chato.

    O único conflito que conta é o conflito que constitui um obstáculo real para a solução do problema dramático da estória.

    Se a discussão dos dois personagens for um obstáculo para a resolução da estória, isso contribui para o drama. É uma das fórmulas dos chamados buddy movies, como Arma Mortífera e outros. Mas se não acrescentar nada nesse capítulo, então não é conflito – é apenas confusão.

    Em cada cena tem de haver um personagem que quer alguma coisa relevante para a estória, e têm de haver obstáculos no seu caminho. Tudo o resto é perda de tempo, como David Mamet tão bem explicou.

    O guião segue uma fórmula previsível

    Não há regras para escrever uma boa estória. Há apenas ferramentas que têm demonstrado eficácia quando são bem aplicadas. Os americanos têm até uma expressão para isso: tools, not rules – ferramentas, e não regras.

    Mas uma quantidade enorme de gurus da escrita de guião têm-se apresentado com livros ou seminários em que apresentam regras mais ou menos fixas para escrever uma boa estória. Pessoalmente, gosto de ler esses livros ou seguir esses cursos porque, no meio de muito dogma inútil, há sempre dicas práticas que podemos introduzir no nosso repertório; ferramentas que acrescentamos à nossa caixinha, para usar no momento certo.

    O problema é quando um guionista acredita que seguir uma determinada fórmula é a solução para escrever o guião perfeito. Não é.

    Na melhor das hipóteses, se o conceito inicial e os personagens forem bons, conseguirá uma estória interessante, funcional, mas com pouca alma. Na pior das hipóteses, escreverá uma estória tipo livro de colorir, que qualquer leitor experiente desmontará ao fim de uma dúzia de páginas.

    É bom estudar as bases, aprender as fórmulas, perceber as teorias. Mas nada substitui o lampejo da criatividade que quebra as expectativas.

    A estória tem pouca substância

    Há estórias que se adaptam melhor a um meio do que a outro, que são mais adequada para uma determinada duração e não tanto para outra. Uma estória perfeita para uma canção pode não ter substância suficiente para se transformar numa longa metragem, mas talvez possa ser adaptada para uma excelente curta.

    Um dos passos mais importantes ao dar início de um projecto é tentar perceber se a ideia com que vamos trabalhar, o conceito que temos nas mãos, tem potencial para aguentar o formato em que pretendemos escrever. Nem todas as estórias se adaptam aos 150 episódios de uma telenovela, aos 13 de uma mini-série ou aos 100 minutos de um filme.

    Querer esticar uma ideia de curta metragem para uma longa pode funcionar em alguns casos – ver, por exemplo o District 9 – mas na maior parte das vezes vai conduzir a guiões chatos, arrastados e sem conflito.

    Os vilões são apenas caricaturas, maus só por ser maus

    O segundo personagem mais importante de uma estória, depois do protagonista, é o antagonista – o vilão. Mas ele não pode ser mau apenas porque isso nos dá jeito. Tem de ter uma personalidade própria, com os seus objectivos, anseios, necessidades, e preocupações.

    Cada personagem é o herói da sua própria narrativa pessoal. Isso é válido para o herói, os seus aliados, todos os personagens secundários e, evidentemente, também para o antagonista.

    O vilão, quando quer destruir o mundo, tem uma razão para o fazer – pelo menos do seu ponto de vista. Para criarmos antagonistas dignos do protagonista em que tanto investimos, temos de ser capazes de compreender o que está por trás das suas escolhas e decisões. Se não o fizermos estamos apenas a trabalhar com estereótipos, caricaturas de pessoas, sem capacidade real de interessar os espectadores.

    Conclusão

    Leia a lista de problemas acima indicados e tente avaliar de quais os seus guiões poderiam ser acusados. Quantos mais conseguir eliminar, mais próximo estará de um guião original e memorável.

    Qual é a sua pergunta?

    Deixe aqui a sua pergunta para o Mês das Perguntas. Se for interessante, útil para outros leitores e nunca tiver sido respondida neste site, tentarei fazê-lo agora.

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