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Como adaptar um romance: Parte 1

    “No que me diz respeito, adaptar um romance para um guião é exatamente o mesmo que escrever um guião original. As duas formas são tão diferentes como uma maçã e uma laranja. Apesar de ambas serem frutas, e ambas crescerem em árvores, são totalmente diferentes em sabor, cor e textura.”

    Ted Tally, a propósito da adaptação de “The silence of the lambs”

    Este é o primeiro de dois artigos sobre adaptações de romances para cinema. O segundo artigo pode ser encontrado aqui.

    Adaptar um romance para cinema é um desafio que, mais tarde ou mais cedo, vai surgir na carreira de um guionista. E é um desafio de contornos muito especiais.

    Já adaptei três, dos quais um foi produzido – “A Selva” – e os outros dois, “Mindelo” e “Terra do Bravo”, estão em desenvolvimento.

    Com base nesta experiência gostaria hoje de partilhar algumas ideias sobre este trabalho tão particular, que poderá ler no artigo completo.

    Que romance adaptar?

    A primeira questão que se colocará sempre é qual o romance que vamos adaptar. A maior parte das vezes a escolha não depende de nós – um produtor contrata-nos para fazer a adaptação de um livro cujos direitos ele adquiriu, e é esse livro que vamos adaptar.

    A única alternativa que temos – mais do que uma alternativa, é mesmo uma obrigação – é, no caso de não termos afinidade nenhuma com esse romance, dizê-lo logo à partida, recusando o trabalho. Caso contrário, estamos a condenar-nos a nós próprios a uns meses de sofrimento, com um resultado que provavelmente não será brilhante.

    A segunda possibilidade é fazermos o papel de produtores e escolhermos nós mesmo um romance para adaptar. A questão mais importante, neste caso, é garantir os direitos de adaptação dessa obra.

    Se o romance estiver no domínio público a situação é fácil. Podemos começar a trabalhar de imediato. Já se fizeram várias adaptações de “O crime do Padre Amaro”, por exemplo, e nada nos impede de fazer mais uma. Em caso de dúvida, o ideal é consultar um advogado.

    Se a obra tiver direitos autorais, teremos de negociar os direitos de adaptação com os detentores desses direitos. Nesse caso há duas possibilidades: comprar os direitos, pagando uma verba a acordar (que variará com a notoriedade da obra e do autor); ou negociar uma ‘opção’, um tipo especial de acordo em que o detentor dos direitos nos autoriza a fazer a adaptação, em exclusividade, durante um certo período, contra o pagamento de uma verba simbólica. No fim desse período teremos a opção de comprar definitivamente os direitos pelo preço acordado, ou estes voltam à posse do detentor original. Em todo o caso, será sempre bom envolver um advogado no processo.

    A minha principal recomendação é nunca começar a adaptação sem estes aspectos legais estarem garantidos. Caso contrário, arriscamo-nos a estar a trabalhar durante um período mais ou menos extenso, para depois tudo ficar em águas de bacalhau.

    the-road-movie-1.jpg

    “Vale a pena fazer uma adaptação se for para aprendermos alguma coisa.”

    Joe Penhall, a propósito da adaptação de “The Road”

    As diferenças entre literatura e cinema

    Como Ted Tally refere na citação inicial, literatura e cinema usam linguagens completamente diferentes. O maior desafio da adaptação é precisamente descobrir como ‘traduzir’ essas duas linguagens, mantendo no guião o essencial do espírito e da matéria do romance original.

    Vejamos então quais são as dificuldades que temos de superar.

    Dimensão

    A maior parte dos romances têm uma dimensão muito maior do que o argumento médio. Enquanto este anda geralmente entre as 90 e as 120 páginas, correspondentes a um filme de hora e meia ou duas horas, a maior parte dos romances tem entre 200 e 400 páginas, chegando com frequência a números muito superiores. “2666” de Roberto Bolano ultrapassa largamente as 1000 páginas, para dar um exemplo extremo.

    Face a isto, é óbvio que muita coisa vai ter de ser cortada e eliminada quando procedermos à adaptação. Uma boa parte da nossa tarefa vai, pois, ser decidir oq ue cortar e o que deixar.

    Certos romances prestam-se melhor a ser adaptados para televisão, como mini-série. Se, como guionistas, for essa a nossa opinião, devemos dar essa informação ao produtor, e não tentar colocar o Rossio na Rua da Betesga.

    Multiplicidade

    Outra característica de muitos romances é a multiplicidade de personagens e de pontos de vista. A literatura é uma forma muito mais ‘livre’ do que o cinema, pelas suas caraterísticas intrínsecas.

    Num romance não é mais complicado ter duzentos personagens do que apenas dois. O autor tem tempo e espaço para os apresentar, explorar e desenvolver, se for essa a sua vontade. E não sai mais caro, também.

    Há também condições para seguir várias linhas narrativas, acompanhar vários protagonistas, desenvolver diferentes enredos. Se o leitor se perde na leitura da estória, pode voltar algumas páginas atrás até reencontrar o fio à meada, ou recordar quem é quem.

    No cinema, pelo contrário, a última coisa que um autor quer é confundir os espetadores quanto à identidade dos personagens. Raramente é possível ter mais do que sete ou oito personagens com algum destaque, e a maior parte dos filmes acompanham um protagonista único, e um enredo principal, com alguns enredos secundários geralmente relacionados com ele.

    Num filme o espetador não escolhe o ritmo de ‘leitura’. Está preso à narrativa e, se se perder, não tem como interromper o fluxo de informação. Na melhor hipótese voltará a encontrar o caminho mais à frente, mas entretanto já perdeu parte da estória, e possivelmente o interesse.

    Interioridade

    Uma terceira diferença essencial é a capacidade de análise psicológica de alguma literatura.

    Num romance o autor pode mergulhar no interior dos seus personagens, dissecar os seus pensamentos, viajar às suas memórias e experiências, alongar-se sobre os seus sonhos, expetativas, medos e obsessões.

    Num filme nada disto é possível. Tudo o que podemos saber sobre os personagens é-nos dados pelas suas ações e diálogos (que são uma forma de ação).

    O cinema é uma linguagem visual e o principal desafio de um guionista é encontrar situações, ações, e comportamentos que mostrem, por imagens, o que vai no interior dos seus personagens.

    A ‘voz off’ é por vezes usada para mostrar o que um personagem pensa ou sente, mas esse recurso deve ser usado com moderação.

    Complexidade

    Estruturalmente, os romances também costumam ser muito mais complexos do que os filmes.

    Um escritor pode, num mesmo parágrafo, descrever uma situação, analisar os sentimentos de um personagem face a essa situação, mergulhar numa recordação do passado, saltar para acontecimentos que só virão no futuro, e mudar para o ponto de vista de outro personagem.

    Num filme é impossível fazer isto. Cada um destes momentos teria de ser isolado numa cena independente. Se os agrupássemos exatamente da mesma maneira provavelmente acabaríamos com uma salganhada incompreensível. O guionista terá, pois, de selecionar, refazer e reordenar estes momentos da narrativa de uma forma adequada à linguagem cinematográfica.

    Encontrar a forma de transcrever as micro e macroestruturas do romance para a estrutura geralmente mais simples de um filme é outro dos grandes desafios que enfrentamos.

    Tom

    Os escritores também gozam de muito mais liberdade do que os guionistas no que diz respeito ao 'tom' das suas obras. Um romance pode variar, de uma página para a outra, de ambientes misteriosos para o humor, do surreal para literário, do jornalístico para o lírico, e, mesmo assim, se o escritor tiver talento, manter a sua integridade e força.

    Já no cinema, são raros os filmes que, depois de estabelecido um 'tom' inicial, conseguem transformá-lo num diferente, e muito menos saltitar de um para outro. Recordo, por exemplo, "Something Wild", escrito por E. Max Frye,que começava como uma comédia ligeira e, pouco a pouco, se transformava num 'thriller' bastante pesado. Mas os exemplos bem sucedidos são poucos, e normalmente não muito felizes com as audiências.

    O que podemos então fazer?

    Já que não podemos ter a mesma dimensão, nem multiplicidade de personagens, nem complexidade narrativa, o que é que nos resta defender na adaptação?

    Basicamente, o nosso objetivo será duplo:

    • respeitar o espírito da obra;
    • e conservar, tanto quanto possível, o seu enredo e personagens centrais.

    O segundo aspeto é mais ou menos óbvio. Por muito complexo que um romance seja, é geralmente possível encontrar um eixo central, um fio condutor que une um núcleo mais restrito de personagens. Se for possível fazer este trabalho de dissecação e simplificação da obra, a obra é adaptável para cinema. Caso contrário, a tarefa pode ser simplesmente impossível de ser bem feita.

    Quanto ao 'espírito' da obra, é um conceito mais abstrato e difícil de definir. Eu diria que é aquilo que torna uma determinada obra especial, e justifica a sua adaptação; aquilo que, se se perder, faz com que a obra fique descaraterizada e irreconhecível.

    Por vezes é preciso introduzir alterações significativas à forma da obra, para conseguir respeitar o seu 'espírito'. Encontrar esse equilíbrio instável e subjetivo é talvez a tarefa mais importante do guionista.

    No próximo artigo, a publicar em breve, irei a apresentar as diversas fases que constituem o meu processo de trabalho da adaptação.

    Continue a ler o segundo artigo

    7 comentários em “Como adaptar um romance: Parte 1”

      1. Não conhece, mas não é por ignorância; é que ele não existe. O guião “Mindelo” é uma adaptação de vários contos e crónicas da jovem autora caboverdeana Eileen Barbosa.

    1. Excelente artigo (como sempre) caro João. Estou precisamente neste momento a adaptar um livro de 517 pags para um guião que se quer com 120. Tudo o que você diz aqui bate certo com os “problemas” que estou a enfrentar com o a adaptação.

      Cumprimentos e continuação de um bom trabalho

    2. Pingback: Como adaptar um romance para cinema – II

    3. Encontrei este blog por mero acaso (numa pesquisa pelo google a propósito de um outro projecto em que esteve envolvido), mas já adivinho longas horas a ler os vários post aqui deixados…

      Muito obrigado por toda esta preciosa informação!

      Tenho um livro publicado há já 3 anos e um projecto pessoal a médio-longo prazo será a sua adaptação para guião, para depois, quem sabe, começar a bater à porta de produtores…. :)

      Assim que tiver tempo para pegar no projecto, com certeza este blog (e este post em particular) será uma referência a consultar regularmente!

      Um abraço

    4. Pingback: Dica da Taverna! Holy Avenger e As Outras Opções de se Trabalhar com Texto! – A Taverna

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