Há muito talento por aí, nós é que nem sempre estamos atentos quando ele surge. Querem um exemplo? O Jorge Vaz Nande, jovem e brilhante guionista e, coisa ainda mais invulgar, autor de dois (ou será 1,20) libretos de óperas já produzidas. No depoimento que se segue ele dá uma ideia dos desafios que enfrenta quem escreve um tipo de guião tão específico. Leiam e aprendam.
VAZ NANDE 1 1/5
Um professor disse-me uma vez que o que a vida nos dá nem sempre é aquilo de que andamos à procura – e que saber jogar com esse imprevisto é o melhor que podemos aprender.
Foi mais ou menos assim que dei por ter escrito duas – ou melhor, 1,20 – óperas, a “longa” Bichus e a “curta” A Chorona. As experiências foram diferentes e vale a pena um vaivém entre elas.
A Chorona surgiu com o Manuel Durão a perguntar-me por e-mail se lhe queria escrever uma mini-ópera para três cantores. No dia seguinte, enviei-lhe três ideias; ele escolheu aquela de que gostava mais; e três dias depois estava feito o dossier de candidatura ao concurso do São Luiz.
Agora que penso nisso, talvez lhe pudéssemos ter chamado Três.
Com muito adiamento, o texto d’A Chorona estava escrito um mês depois do primeiro contacto e seguiu directo para ser musicado. Muito diferente dos Bichus, que levaram uns seis ou sete meses de escrita discutida e colaborada com os compositores-músicos da Associação Arte À Parte. Primeiro, acordou-se uma sinopse; depois, trabalhou-se num esquema “tomem lá mais um naco de texto para musicar, que eu espero o vosso feedback enquanto escrevo o que falta”. Até à estreia, em Abril de 2007, o texto foi batido e rebatido segundo as contínuas necessidades de adaptação da produção.
Os Bichus foram uma experiência forte, que tirou partido da extraordinária capacidade de Coimbra para o trabalho associativo. Mas houve erros no processo, e esses serviram-me de aprendizagem para A Chorona.
O facto de Bichus, desde o início, ter sido assumido como uma experiência multidisciplinar assustou-me um bocadinho: tivera experiências dessas no passado cuja multidisciplina acabara no belo caixote do lixo das intenções. Por isso, acautelei. Se algo na produção desse para o torto, um texto muito denso e lírico podia sempre ser adaptado pelo menos para um recital. As reacções foram boas e até puxou para a venda dos livros, mas eu não senti o público verdadeiramente entretido.
Esqueçam um texto muito abstracto. É custoso para os intérpretes e árduo para o público. A ópera é obra de enredo. O desafio não é construir um lirismo, mas entreter com uma história. Para um autor, é crime impor interpretações ao espectador.
O meu avô, quase 80 anos, 3ª classe, sem colecção de discos ou filmes, pára em qualquer canal que tenha uma orquestra a tocar e falou-me sempre maravilhado d’As Luzes da Ribalta do Chaplin. Ao professor de que falei no início, perguntei uma vez “o que faz um poema melhor do que outro?” e ele respondeu-me “a maior capacidade para reflectir e tocar no âmago da natureza humana”. Belas palavras. Erudições não dão mesmo com nada.
Portanto, para A Chorona nem drama nem símbolos subtis. Com o tempo limitado a 15 minutos, o melhor é mesmo traço grosso e estereótipo. Isto não é necessariamente mau, pois pode trazer uma carga de significação muito rica. A Chorona tem dois bufões que, apesar de nunca nomeados em palco, no guião têm os nomes Vladimiro e Estragão, topam? E, que raio, o que vemos quando olhamos para as grandes óperas do passado? Amores fatais, balde e alguidar, prostitutas e assassinos, tiros e facadas!
Se quiserem ajudar os intérpretes ainda mais, rima é uma boa ideia. O ritmo e a métrica do diálogo, claro, também têm de ser muito mais pensados. Na ópera, a didascália visa o palco, mas o diálogo visa a música e, se tudo correr bem, o compositor fará o nosso texto crescer muito para além do que era. Convém: a minutagem de um texto destes acaba por ser de três a quatro minutos por página, o que é bom para quem quiser treinar a economia.
O texto da ópera serve – ainda mais do que no cinema – para que outrem brilhe: o compositor, os músicos e os cantores. Mas há uma regra sacrossanta: é sempre necessária uma história, que fisgue a atenção do espectador, o envolva no conflito e o alivie na resolução. Não é bom pretender que o público descubra sempre uma verdade elevada. Às vezes, sair da sala com um sorriso chega.
Temo que a única coisa que o público descobriu nos Bichus foi que eu sei fazer rimas. Sei que saiu d’A Chorona com o tal sorriso na boca. Vamos lá a ver se o próximo projecto que estou a preparar com o Manuel consegue ainda mais.
Pingback: Um funeral à chuva – entrevista com o guionista Luís Campos