Tenho uma dúvida: como podemos descrever quando uma imagem é vista pelos olhos de uma pessoa que não se conhece. Como nos filmes de terror, por exemplo. — Mário
Mário, o que você refere é um caso particular das imagens de câmara subjetiva, por isso podemos aproveitar este artigo para descrever a regra geral e, depois, falar então desse caso particular.
Para descrever num guião uma situação em que o espectador vê o que um determinado personagem está a ver, como se estivesse a olhar através dos seus olhos – aquilo a que geralmente se chama câmara subjetiva – usa-se a indicação “PONTO DE VISTA” ou “POV” (do inglês “Point Of View”).
A seguir a esta indicação escrevemos o que está a ser visto pelo personagem. Quando terminamos a descrição da imagem em câmara subjetiva usamos “DE VOLTA À CENA” para continuar a descrição normal.
A forma mais habitual é aquela que usei no meu guião Mindelo e que se pode ver a seguir:
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(…)
Perdidos na conversa, os seus passos levam-nos a um local de onde se vê o barco abandonado.
VICTOR
O que é aquilo?
Eva olha na direcção que Victor está a apontar.
PONTO DE VISTA DE EVA
Vinho Verde, ajudando Sara, afasta-se do barco abandonado. A mulher vem agarrada à barriga, já no início do trabalho de parto.
DE VOLTA À CENA
Eva sorri.
EVA
É uma maluca que vive aqui sozinha. Está grávida.
(…)
[/fountain]
Esta é a utilização mais comum, mas são perfeitamente admissíveis muitas outras formas, desde que seja sempre claro o que se pretende indicar. Por exemplo:
[fountain]
(…)
Perdidos na conversa, os seus passos levam-nos a um local de onde se vê o barco abandonado.
VICTOR
O que é aquilo?
Eva olha na direcção que Victor está a apontar.
O QUE ELA VÊ
Vinho Verde, ajudando Sara, afasta-se do barco abandonado. A mulher vem agarrada à barriga, já no início do trabalho de parto.
DE VOLTA À CENA
Eva sorri.
(…)
[/fountain]
Outra possibilidade ainda:
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(…)
Eva olha na direcção que Victor está a apontar.
PONTO DE VISTA DE EVA – VINHO VERDE
vai ajudando Sara, enquanto se afastam do barco abandonado. A mulher vem agarrada à barriga, já no início do trabalho de parto.
EVA
sorri e responde ao amigo.
EVA
É uma maluca que vive aqui sozinha. Está grávida.
(…)
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Ou ainda, para terminar:
[fountain]
(…)
Eva olha na direcção que Victor está a apontar.
CÂMARA SUBJETIVA
Pelo olhar de Eva vemos Vinho Verde que ajuda Sara a afastar-se do barco abandonado. A mulher vem agarrada à barriga, já no início do trabalho de parto.
FIM DA CÂMARA SUBJETIVA
Eva sorri.
(…)
[/fountain]
Todos os exemplos apontados têm três aspectos em comum:
- indicam sem dúvidas de quem é o ponto de vista;
- delimitam claramente onde começa e onde termina a imagem em câmara subjetiva;
- descrevem o que está a ser visto.
Regressemos então à sua pergunta inicial. Aplicando a regra geral, o caso particular que refere, em que não sabemos quem é o observador, deve ser escrito da seguinte forma:
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EXT. CASA – NOITE
A lua ilumina a casa de Francisca. Esta está sentada numa cadeira, na varanda.
PONTO DE VISTA ANÓNIMO
Olhando através de alguns ramos de arbustos, vemos que Francisca leva um copo de vinho à boca.
DE VOLTA À CENA
Francisca saboreia o vinho, pensativa. Um RUÍDO na mata chama a sua atenção.
PONTO DE VISTA DE FRANCISCA
A mata que cerca a sua casa, aparentemente vazia.
DE VOLTA À CENA
Francisca sente um arrepio. Ergue-se e, segurando o copo numa mão e a garrafa de vinho na outra, regressa ao interior da casa.
PONTO DE VISTA ANÓNIMO
Vista através dos arbustos, Francisca entra em casa e fecha a porta atrás das costas.
CORTA PARA:
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Neste exemplo combino as duas formas, com pontos de vista de um personagem conhecido e um desconhecido, para se perceber melhor a diferença.
Onde se escreve “PONTO DE VISTA ANÓNIMO” poderia escrever-se “PONTO DE VISTA DE DESCONHECIDO” ou “POV MISTERIOSO”, por exemplo. O importante, como não me canso de referir, é que fique bem claro o que queremos dizer.
Podemos usar também outras indicações específicas para algumas situações:
PONTO DE VISTA DE BINÓCULOS
PONTO DE VISTA DE MIRA TELESCÓPICA
PONTO DE VISTA DA CÂMARA DE SEGURANÇA
Um último aviso. A utilização da câmara subjetiva é, em última instância, uma decisão que compete ao realizador, e que este usará a seu critério, esteja ou não esteja indicada no guião. Por isso devemos usar as indicações de “PONTO DE VISTA” com conta, peso e medida, e apenas quando dramáticamente sejam importantes. Se enchermos um guião com elas desnecessariamente tornamos a leitura mais difícil e arriscamo-nos a que o realizador, farto de tanta intromissão nossa no seu trabalho, não use depois uma câmara subjetiva onde realmente seria importante fazê-lo.
Suponho que estas expressões se apliquem apenas em casos específicos de um guião.
Se assim for, onde e que expressão devemos indicar no caso de o guião se tratar inteiramente de um filme em câmara subjectiva? Como no caso de filmes como “Blair Witch Project”, “REC” ou “Cloverfield” (curiosamente, tudo filmes de terror)?
Estas expressões aplicam-se em todas as situações em que seja importante explicitar no guião que um determinado evento deve ser visto do PONTO DE VISTA de um personagem. Os casos radicais que refere, e outros anteriores, devem merecer um tratamento diferente. Não tenho nenhum desses guiões, mas imagino que uma maneira de abordar esse problema seria, logo na primeira cena, deixar explicado na descrição da acção que esta é sempre vista do POV de uma câmara de vídeo. Repito uma vez mais: o importante é que o leitor do guião perceba com clareza a nossa intenção.