O realizador António Ferreira e o guionista Miguel Rosa publicam no jornal Público de hoje 1 uma muito interessante carta aberta 2 à ministra da Cultura, sobre a situação dos subsídios à produção cinematográfica em Portugal.
António Ferreira e Miguel Rosa recusam a falsa dicotomia entre cinema de autor e comercial, porque as reduzidas dimensões do mercado português impedem qualquer filme nacional de alguma vez ser rentável. Mesmo o cinema comercial necessita, em Portugal, de apoios, pois nem as receitas de bilheteira dos maiores sucessos chegam para garantir a sua rentabilidade.
A questão principal que se levanta é, então, a seguinte: qual o compromisso dos autores e produtores portugueses face ao investimento público de que beneficiam? Deve o estado subsidiar a totalidade, ou perto disso, do valor de produção dos filmes, ou, pelo contrário, colmatar apenas aquilo que o mercado em si não é capaz de fazer?
A opinião dos autores da carta aberta orienta-se no segundo sentido. Segundo eles, o estado deverá apoiar mais filmes, com um subsídio menor a cada um, por forma a:
- "Evitar que os projectos se divorciem de qualquer esforço para a captação de audiências em sala ou de outros apoios financeiros;
- Forçar os promotores a investirem efectivamente nos projectos, demonstrando com o seu esforço financeiro a sua crença nos projectos;
- A redução dos subsídios a atribuir por filme, por exemplo a um máximo de 350 mil euros e de forma equitativa para todos, seria uma medida que contribuiria para apoiar um número mais alargado de projectos, obrigando os autores e produtores a procurarem uma relação com o público, tornando os seus projectos mais apelativos a investidores, procurando a co-produção internacional".
Sugerem ainda uma revisão da lei do mecenato, aproximando-a da lei Rouanet que esteve por trás da ressurreição do cinema brasileiro a partir dos anos 90, e um repensar completo do mecanismo dos júris que atualmente decidem sobre os subsídios.
É uma posição diferente do que se ouve normalmente, e que merece uma reflexão cuidada e a discussão dentre os agentes do cinema em Portugal. Pela minha parte, sou levado a concordar com eles.
Alguns dados importantes
Os autores baseiam a sua carta aberta em alguns dados importantes:
- Produzem-se, em Portugal, em média apenas 14 longas metragens por ano.
- Os 10 filmes mais vistos dos últimos anos tiveram uma receita bruta da ordem dos 750 mil euros, o que mesmo assim não chega para os rentabilizar.
- A quota de mercado do cinema português é inferior a 3% do número de espetadores, quando a média europeia ronda os 25%.
Este último dado é, para mim, o mais grave.
Acho absolutamente inaceitável que haja uma disparidade tão grande entre os nossos valores e os da restante Europa. E essa disparidade só existe porque, infelizmente, a grande maioria dos filmes portugueses estão, por opção própria, de costas voltadas para o público. Fazem até questão em afirmar esse divórcio como a sua principal razão de ser.
Ouvi certa vez um realizador português dizer que fazia filmes não para o público de hoje mas para quem os vai ver daqui a 100 anos. Acho essa posição de uma enorme presunção – se já é difícil adivinhar o que o público de hoje gosta, é absolutamente impossível prever o que vai sobreviver à passagem do tempo. E, pessoalmente, duvido muito que sejam os filmes desse realizador.
Não tenho nada contra o filme de vanguarda, experimental, que empurra as fronteiras da linguagem do cinema, abre portas, desbrava caminhos. Esse tipo de cinema é necessário para impedir a estagnação da arte cinematográfica. A montagem eisensteiniana foi radical antes de se tornar a norma; a linguagem disruptora da "nouvelle vague" foi rapidamente assimilada pelo cinema comercial; as estruturas dramáticas não lineares foram a excepção antes de se tornarem moda. É sempre assim que as coisas se passam.
Mas o dito 'cinema de autor' – que, além do mais, precisa de 'autores', coisa que não se encontra todos os dias e não se obtém por decreto – não é, não pode ser, a norma. Não pode esgotar-se nele a totalidade da produção cinematográfica de um país, sob pena de acontecer o que está a acontecer em Portugal: o tal divórcio entre criadores e público para que António Ferreira e Miguel Rosa alertam.
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Concordo plenamente com tudo isso. Uma das coisas que eu sinto que o cinema português tem de fazer, para evoluir mesmo, é aproximar-se das pessoas e fazer mais do chamado “cinema comercial”, ou seja, cinema que as pessoas querem ver. Eu não percebo porque é que o cinema precisa de ser tão bipolar. Aproximar-se das pessoas e fazer com que elas se envolvam com a história e os personagens são prioridades que os nossos realizadores precisam de começar a ter para o nosso cinema não desaparecer.
Há várias coisas que vão mal no cinema nacional… É necessário cativar o público mas, infelizmente, grande parte dos últimos filmes portugueses apenas serviu para fazer o oposto, apostando em modelos em vez de actores, em nudez em vez de personagens cativantes, etc… falo apenas por mim, mas acho que é necessário mudar qualquer coisa antes de atravessarmos o “ponto sem retorno” relativamente à má imagem do cinema português…
Acho que podiamos fazer coisas muito bonitas pois somos um país com uma História extremamente rica, personagens históricas bastante marcantes e a nossa literatura é muito boa, repleta de grandes histórias… Não temos tudo o que é preciso para ser os melhores, mas podemos fazer melhor com o que temos…
Caro João,
Concordo inteiramente. O oligopólio nas mãos de alguns senhores nas últimas décadas mergulhou o cinema português numa letárgica idade média, com muitas trevas e escuridão à mistura… Apoios sim, mas “mama” não.
Há muita gente com vontade de elevar o cinema português a forma de arte. Comercial e mainstream não é sinónimo de vazio e mau.
Quem é esse realizador português que disse que não fazia filmes para o público?
João Mário Grilo. A afirmação foi feita em frente de uma larga audiência, numa palestra numa livraria de Lisboa.
Gostava que esta carta surtisse efeito. A sério que gostava. Gostava de ver o Estado a financiar filmes que fossem de facto vistos pelo público nas salas.
Há dias tive conhecimento de um realizador português (não vou dizer nomes) cujos filmes foram financiados pelo Estado e que são vistos essencialmente em museus que lhe pagam pelos direitos de exibição. O Ministério da Cultura pagou os filmes deste realizador que ninguém quis ver nas salas (muito provavelmente porque ninguém os quis comprar), depois o Ministério da Cultura compra esses filmes de volta e exibe-os em museus. Que estão essencialmente abertos quando as pessoas não os podem visitar. Este realizador queixa-se de falta de apoio. É uma mentalidade que urge combater.
Não é preciso grandes orçamentos para cativar o público, apenas uma boa história. Algo que faça as pessoas pensarem: “Eu paguei por isto e não me sinto enganado.” Infelizmente são raros os casos no cinema português (e não só cinema) em que isso acontece.