Há uma semana atrás escrevi aqui um artigo com o título “Não tenho tempo para escrever – justificação ou desculpa?“. O artigo deve ter tocado em algum ponto sensível dos leitores, porque teve vários comentários e recebi diversas mensagens acerca dele.
Um dos comentários tinha a forma de uma pergunta, a que respondi de imediato. Mas acho que a sua pertinência justifica algum desenvolvimento adicional.
É justamente este o meu problema. Preciso escrever um filme, tenho data para entregar, e simplesmente não consigo encarar o desafio. Preparei até uma tabela de trabalho para poder conciliar melhor os horários. E nada. O que fazer? Tens a fórmula mágica? – Rosa
Rosa, na realidade esta questão foge um pouco ao tema do primeiro artigo. Nele eu abordava o problema de arranjar tempo para escrever. Aqui, aparentemente, o problema não é a falta de tempo. É a falta de vontade.
É, resumidamente, a tendência para a procrastinação, essa praga que, de uma forma ou de outra, persegue todos os autores.
Quando lemos entrevistas com escritores de qualquer origem, nomeadamente argumentistas, a questão da procrastinação – a tendência para adiar o mais possível o começo de um projeto – surge com muita frequência.
Quase todos os autores preferem fazer qualquer outra coisa – arrumar a casa, atualizar a lista de músicas no computador, organizar os itens da dispensa por ordem alfabética – do que começar a escrever.
Robert McKee, o guru da escrita, descreve o problema assim: “(…) eu sou o detentor dos recordes olímpicos de procrastinação. Eu consigo procrastinar pensando acerca do meu problema de procrastinação. Eu procrastino lidando com o meu problema de procrastinar pensando acerca do meu problema de procrastinação“.
A origem da procrastinação
Esta tendência para a procrastinação, para o adiamento do trabalho, tem origem num sentimento muito simples: o medo.
Medo de falhar, medo de ficar aquém do esperado, medo de desiludir – a nós e aos outros.
A questão que temos que entender é que o perigo de falhar existe, e existirá sempre.
A possibilidade do fracasso é intrínseca à experiência criativa. Se o sucesso estiver garantido é porque estamos a trilhar caminhos já batidos, por outros ou por nós mesmos.
A possibilidade do fracasso é intrínseca à experiência criativa. Se o sucesso estiver garantido é porque estamos a trilhar caminhos já batidos, por outros ou por nós mesmos.
Enquanto uma ideia está na nossa cabeça, enquanto um projeto é apenas um projeto, tem uma certa espécie de perfeição intangível. Mas quando começamos a concretiza-lo, deparamo-nos com toda uma série de problemas – uns que nascem das nossas limitações, outros da natureza do próprio projeto.
Estas limitações levam-nos a colocar questões que afetam diretamente o nosso amor-próprio. “Serei eu capaz de escrever isto?“; “Porque é que me meti nesta encrenca?”; “Será desta que vão descobrir que eu sou uma fraude?“; e por aí adiante.
Face a estas perguntas ainda sem resposta, a estas ameaças, reais ou percebidas, sentimos medo. E face ao medo o nosso subconsciente fornece-nos automaticamente uma solução que tem funcionado bem desde o início da humanidade: fugir.
Virar as costas ao tigre de dentes de sabre e correr para a segurança de uma caverna – ou do Twitter.
Em suma, procrastinamos. Adiamos. Prolongamos a “pesquisa” um pouco mais. Inventamos desculpas para não começar.
Não há fórmulas mágicas para ultrapassar esta tendência natural para a procrastinação. Mas o mais próximo disso é uma frase que os americanos usam muito: “butt-in-chair time”. Ou seja, tempo de manter o bumbum colado na cadeira.
Combater a procrastinação
A única fórmula para vencer a procrastinação é sentar-se em frente do computador e começar a escrever.
Em vez de fugir para a caverna, enfrentar o tigre com os meios de que dispomos: a nossa imaginação, talento, esforço, disciplina.
Como Somerset Maugham dizia: “Só escrevo quando a inspiração bate. Felizmente ela bate todos os dias, às nove da manhã em ponto”.
O escritor e argumentista Steven Pressfield desenvolve esta ideia no seu livro “The War of Art”, uma obra inspiradora que recomendo vivamente: “Não é a parte de escrever que é difícil. O que é difícil é a parte de sentar-se para escrever.“
O seu livro está cheio de dicas para combater o que ele chama de Resistência, uma força interna que nos trava, e de que a procrastinação é a mais comum das manifestações, mas não a única.
A minha experiência diz que algumas coisas práticas ajudam:
- Ter um prazo limite ajuda. Quanto mais apertado esse prazo for, menos espaço resta para a procrastinação.
- Marcar todos os dias uma hora fixa para começar, e respeitar esse encontro com a musa como qualquer outra renião que marcassemos.
- Se possível, estabelecer o nosso objetivo diário não em tempo, mas em páginas. Em vez de “vou escrever duas horas” definir “vou escrever 4 páginas”.
- Fazer uma lista com as distrações mais frequentes: ir ver os emails, entrar no Twitter, ir ao Facebook, entrar no Messenger, ir ao frigorífico, etc.
- Tomar as medidas necessárias para anular essas distrações. Por exemplo (nos casos mais graves) desligar a internet antes de começar a escrever.
- Programar também as pausas e interrupções. É bom parar de quando em quando, dar uma volta, fazer um pouco de exercício.
- E, finalmente, estabelecer um programa de recompensas para as metas atingidas e cumpridas. “Se escrever as quatro páginas, vou tomar um capuccino; se escrever todos os dias desta semana, compro um livro; quando terminar o guião, tiro um fim de semana na praia”, etc.
E no entanto…
Pode haver situações em que a procrastinação esteja a servir um propósito maior, ou seja, em que procrastinamos porque, realmente, ainda não estamos preparados para escrever este diálogo, terminar esta cena, começar este livro.
Nessas ocasiões, o tempo da procrastinação é uma oferenda que fazemos ao nosso subconsciente para este poder trabalhar calmamente, nos bastidores, na solução do problema em curso.
Podemos ocupar esse período trabalhando em outros projetos que estejam noutras fases de desenvolvimento, como recomendo num artigo sobre a “roda da criatividade“. Procrastinar não tem de ser sinónimo de preguiçar.
O truque é saber distinguir umas situações das outras – as que nascem do medo das que têm origem numa necessidade de pausa – e agir em conformidade.
Escrever nunca é fácil. Mas o primeiro desafio de um autor é combater a tendência para a procrastinação, todos os dias, sentando-se em frente do computador (ou do caderno, ou da máquina de escrever) e escrevendo.
Nota: Este artigo foi revisto e atualizado depois da sua publicação inicial
Não sou escritor profissional, apenas escrevo – pelo menos, para já – por carolice, porque dá-me prazer, porque tenho ideias que quero concretizar no papel. Problemas com procrastinação são raros porque quando me preparo para escrever já tenho uma ideia clara da estória – com um outline detalhado – e sinto-me motivado para seguir em frente e encaixar detalhes onde eles não existiam; é, no fundo, um processo de redescoberta da minha própria estória, como ela ganha corpo. É recompensador a grande maioria das vezes – por comparação com aquelas em que me sinto encalhado.
O processo de escrita é solitário, já todos o sabem, mas nem por isso tem de ser aborrecido de morte. O que resulta também comigo é compartilhar algumas ideias com outra pessoa que, pode ou não estar ligados ao projecto. Compartilhar algum pormenor da estória com um amigo próximo, namorada, esposa, pode estimular o processo criativo; às vezes uma ideia fraca torna-se boa, e uma boa torna-se má. Não será criar uma writers room – perdoe-se o exagero -, mas num jantar com amigos ou numa saída até a um bar, há sempre um tempinho para “atirar barro à parede”: o que agarrar, fica, com fortes probabilidades de vir a ser escrito, o que não agarrar, paciência, outra epifania surgirá no futuro.
A maior parte dos escritores, em qualquer parte do mundo, não são “profissionais”, no sentido de viver da escrita. Escrevem por carolice, como diz.
Mesmo quando conseguem vender uma obra isso não os “profissionaliza” automaticamente. Grande parte dos guiões produzidos em Portugal, por exemplo, não são escritos por guionistas profissionais, mas sim por pessoas que vivem de outras profissões.
Mas o “profissionalismo” tem outro significado possível: uma determinada atitude em relação à escrita, que o Steven Pressfield analisa em vários capítulos do livro referido no artigo. E o mais importante dessa atitude tem, precisamente, a ver com levarmos a escrita a sério, não nos deixarmos dominar pela procrastinação, sentarmos todos os dias o rabo na cadeira para escrever, e apreciarmos o processo, independentemente dos resultados (vender ou não vender, agradar ou não agradar aos outros, etc).
Segundo essa análise, Rafael, você parece-me bastante “profissional”.
Em relação ao segundo aspeto do seu comentário, já ouvi defender as vantagens das duas versões: falar das ideias ou não falar.
O falecido Blake Snyder, por exemplo, defendia que logo que temos uma ideia devemos testá-la, não só com os amigos, mas com toda a gente que encontramos na rua – o taxista, o empregado de café, o vizinho na fila da bilheteira do cinema, etc.
Outros autores, pelo contrário, afirmam perder o interesse numa ideia se começam a falar muito nela. “Gastam-na”, por assim dizer.
Eu, pessoalmente, sou mais desta segunda linha. Não gosto muito de falar das ideias antes de as escrever.
Como tantas outras coisas nestas lides da escrita, é realmente uma questão individual. O que funciona para uns pode funcionar ou não para outros. Cada pessoa tem de fazer as suas experiências e ver o que lhe é mais adequado.
Excelso, talvez me tenha explicado mal – muito provavelmente – sobre o segundo aspecto, sobre o processo de escrita não ser obrigatoriamente solitário e o autor poder “mandar à parede o barro”. Acho que uma das coisas que levam à procrastinação é os autores se acharem sós com as suas ideias, numa bolha que só deve ser a sua e se compartilharem alguma coisa vão estar a abdicar de algo crasso do seu ser. Se se criar uma racha na bolha e compartilhar qualquer coisa aqui ou ali, cria-se um nova atmosfera criativa.
Basta ver como as equipas criativas das séries de TV funcionam, – independentemente dos egos de cada um dos escritores – para concluir que quanto menos restrições houverem, melhor será a estória no global.
Talvez seja a nova “guerra” entre escrever para TV ou para cinema que ressurja. Jeremy Irons afirmou agora em Lisboa que a melhor escrita hoje é para TV. Talvez uma estória perfeita hoje em dia não necessite uma só pessoa, talvez necessite três ou quatro. Sinais dos tempos? É ilusão minha ou é possível a alfinetada no paradigma?
Há hoje essa teoria de que a melhor escrita audiovisual do momento é para televisão. Eu não a subscrevo inteiramente.
A escrita para tv, como começou a ser entendida essencialmente depois da série Hill Street Blues, permite fazer coisas que o cinema, por limitações de tempo, não possibilita. Isso é um facto.
Há um limite para o desenvolvimento de personagens e enredo dentro das baias das duas horas de um filme normal.
Os escritores de séries como Os Sopranos, The Wire, Mad Men, etc, pelo contrário, têm uma temporada inteira – vinte e tal horas – para explorar a fundo os seus personagens. Se pensarmos que o horizonte dessas séries, muitas vezes, se alarga até para além dos limites da temporada, isso dá uma ideia das riqueza das possibilidades.
O que não quer dizer que não estejam também a ser escritos muitos bons filmes. Não podemos é comparar o melhor de um meio com o pior do outro.
Quanto à aplicação disto ao seu caso pessoal, com certeza que deve aproveitar.
Se para si funciona bem trocar ideias com os seus amigos no café, força nisso. A ideia nem sequer é novidade – as tertúlias de café são uma tradição que contribuiu para grandes movimentos literários e artísticos. Por exemplo em Portugal, com os “vencidos da vida” no café Tavares, no fim do século XIX, e com os surrealistas do café Gelo, no século XX; em França, na Belle Époque e entre as duas guerras; nos Estados Unidos, com o “círculo vicioso” do famoso Hotel Algonquim – etc.
Quando pessoas interessantes se reúnem em ambiente de liberdade criativa, as ideias tendem a surgir. Aproveite sem remorsos.
Olá João, tudo bem?
Sou roteirista e como não disse guionista, você deve ter percebido que sou brasileira também.
Sempre acompanho seu blog, seus artigos são excelentes, mas esse em especial, tocou em ponto delicado, o medo, o pai da procrastinação.
Me tocou tanto que fiz um post no meu blog inspirado no seu.
Vou deixar o link para que você, se quiser claro, possa dar uma olhada.
Obrigada
http://fredoyoubrokemyheart.wordpress.com/2012/04/18/sobre-o-medo-sessao-01/
Tatiana, gostei muito do seu artigo. Bem sincero, e tocando em tantas coisas que são comuns a todos os guionistas/roteiristas.
É engraçado referir o medo do sucesso, porque é uma das coisas que o Steven Pressfield também fala no seu livro. O sucesso num determinado projeto tem esse efeito colateral de colocar a fasquia mais alto.
Todo o mundo (incluindo nós próprios) fica à espera que o próximo trabalho seja, no mínimo, tão bom como esse, e de preferência melhor.
E a pressão aumenta, e o medo cresce na proporção, e a Resistência – sob a forma de procrastinação ou com outros sintomas ainda piores – ataca com mais força ainda.
É uma luta nova todos os dias, mas é isso que torna as profissões criativas tão estimulantes.
Perfeito! Eu, como muitos, acredito, ainda padeço com o fato de que escrever não é, ainda, minha ocupação primária. Trabalhar de 8h as 17h todos os dias e ainda chegar em casa e dar atenção a família, assistir a um seriado na TV, um jogo… É muito difícil mesmo. E até quando se arranja algum tempinho, o resultado alcançado fica aquém do esperado por conta de tantos afazeres e preocupações do dia-a-dia relacionados principalmente ao trabalho. Difícil…
Olá, João. Mais uma vez, venho comentar um post seu, dando voz à minha experiência pessoal que se cruza com o que escreveu em alguns pontos.
Não sou da área das letras mas retiro um prazer enorme da escrita. Desde que me conheço que invento histórias ou relato acontecimentos. “Pequenas” histórias e “pequenos” relatos, mais precisamente. E porquê? Porque sei que escrever um romance ou uma biografia ser-me-ia impossível! Iria procratinar todos os dias e, depressa, cansar-me do projeto inicial. E, claro, a frustação seria enorme. Então, opto por pequenos textos que envio, regularmente, para cncursos e que, volta e meia, são premiados. Sabe a pouco. Na verdade, sabe a muito pouco. Mas protejo-me. A única altura da vida em que melhorei um pouco foi quando tive um blog ativo durante cerca de ano e meio. Começou por brincadeira mas as centenas de visitas diárias e os feedbacks positivos ajudavam-me a vencer a inércia. E, ainda assim, os textos eram sempre curtos.
Conheço bem todas as dicas que aqui sugere. Uso-as para não procrastinar no trabalho, por exemplo ;)
Obrigada por mais este texto muito interessante.
Continue!
O seu texto foi um tiro certeiro em todas as minhas dúvidas. É certo o medo paira, mas o desafio de terminar e ser feliz com o meu resultado é uma incógnita. Talvez por isso eu pense mais do que aja. E o tempo passa.
Como sempre, algo de muito valor para acrescentarmos á nossa rotina de “trabalho”! Parabéns!
Amei muito este texto! E ele diz o que eu precisava “ouvir”. Escrevo para teatro e sempre me acontece isso. Tenho medo de concretizar algumas ideias, colocá-las no papel, mas quando começo, tudo dá certo. É engraçado isso tudo. Vou seguir o site. abraços.
É muito mais comum do que imaginamos ;-)
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