Pode considerar-se como flashback eventos que supostamente ocorreram, mas são mentira na realidade da história? Por exemplo: um personagem está a responder a um interrogatório e os espectadores começam a ver os acontecimentos narrados; contudo, tratam-se de mentiras. Faço a mesma pergunta para o flash-forward. E há algum detalhe a incluir nos cabeçalhos das cenas para descrever algo que apenas “acontece” na mente de um personagem? – José
Alerta: este texto contém spoilers de 2 filmes.
José, o exemplo que você dá é, sem tirar nem pôr, a trama de Os Suspeitos do Costume, o filme de 1995 escrito por Christopher McQuarrie e realizador por Bryan Singer, que lançou a carreira dos seus autores. A obra teve um sucesso considerável e é um dos exemplos mais bem conseguidos de uma reviravolta final (end twist) surpreendente, ao nível da conclusão de outro clássico, O Sexto Sentido.
No fim de Os Suspeitos do Costume descobrimos que toda a estória que o personagem de Kevin Spacey, Verbal Kint, conta ao detetive Kujan, é apenas uma longa e imaginativa mentira destinada a desviar as suspeitas deste e incriminar um dos criminosos mortos na sequência de um assalto falhado.
O exemplo de Os Suspeitos do Costume
Se ler o guião, que pode encontrar aqui, verá que McQuarrie é muito discreto nas indicações das mudanças temporais. Faz apenas referência, nos cabeçalhos de algumas cenas, às mudanças entre o tempo presente e o que se passou algum tempo antes, desta forma:
INT. APARTAMENTO ESCURO – DIA – NOVA IORQUE – SEIS SEMANAS ANTES DO DIA PRESENTE
INT. SALA DE AUDIÊNCIAS – DIA – LOS ANGELES PRESENTE
EXT. ESQUADRA DA POLÍCIA – NOITE – NOVA IORQUE – SEIS SEMANAS ANTES
Mas a estória está tão bem estruturada e a narrativa é tão clara quanto às mudanças de tempo que provavelmente nem isso seria necessário.
O que o autor não faz, porque destruiria todo o projeto narrativo, é dar qualquer indicação de que o que está a ser contado por Verbal Kint não é a mais pura verdade.
Seria como se, no guião de O Sexto Sentido, o autor M. Night Shyamalan alertasse no início o leitor para o facto do psicólogo estar morto e ser apenas mais um dos fantasmas que o seu paciente vê.
Como escrever então essas cenas?
Sobre a forma correcta de escrever um flashback, já escrevi um artigo bastante esclarecedor, “Como Escrever um Flashback” . A solução que aí indico não é a única forma de o fazer, mas é uma opção testada e que funciona.
Também já escrevi outro artigo sobre a forma de indicar mudanças e saltos temporais que não sejam estritamente flashbacks. Este caso é o que se aproxima mais do exemplo acima referido, Os Suspeitos do Costume.
Respondendo mais especificamente à sua questão, eu diria que, estritamente, uma mentira não poderia ser considerada um flashback, porque este deve mostrar algo que aconteceu. Mas na prática, para efeitos técnicos de escrita, a distinção é irrelevante (não o é para efeitos dramáticos, obviamente).
No filme Rashomon, de Akira Kurosawa, diferentes personagens contam versões diferentes de um mesmo evento que testemunharam. Por serem contraditórias entre si, nem todas podem ser verdadeiras. Como tal, são consideradas como flashbacks ou não?
É indiferente como lhe chamemos; o que interessa, para efeitos da escrita do guião, é que fique claro para o leitor que nessas sequências saímos da ordem temporal “normal”.
Assim, para tornar a cronologia mais clara para os leitores do guião, é aconselhável indicar explicitamente as mudanças de tempo.
Isso pode ser feito indicando que se trata de um flashback ou flashforward, como explico no primeiro artigo mencionado.
INT. CASA – DIA (FLASHBACK)
ou
FLASHFORWARD – INT. CASA – DIA
Em ambos os casos, podemos indicar o regresso ao presente narrativo com uma indicação de:
FIM DO FLASHBACK
ou
REGRESSO AO PRESENTE.
Outra forma de indicar a mudança de tempo é indicando datas, concretas ou relativas (como no exemplo de Os Suspeitos do Costume). Por exemplo:
EXT. CAMPO DE ALCÁCER-QUIBIR – DIA (4 DE AGOSTO DE 1578)
ou
INT. PALÁCIO REAL – SALÃO – NOITE (DOIS MESES ANTES)
As duas formas (flashback/datas) podem ser combinadas:
FLASHBACK – EXT. TAPADA DE MAFRA – DIA (1577)
Todas estas opções são válidas e podem funcionar melhor num caso ou noutro, dependendo das circunstâncias concretas da estória. E haverá com certeza outras formas de as descrever, igualmente corretas.
O importante é garantir que os leitores do guião nunca se percam na sequência dos acontecimentos. Qualquer forma de escrever a cena que torne clara a sequência temporal será, pois, válida.
Estas indicações temporais podem também aparecer no próprio filme, na forma de legendas. Por exemplo, o fabuloso filme Mank, recentemente lançado na Netflix, identifica os flashbacks usando legendas com a exacta forma como eles são escritos no guião. Dado que é um filme sobre um guionista e o processo de escrita de um dos guiões mais famosos de sempre, essa solução faz todo o sentido.
Mas as indicações temporais podem nem sequer aparecer no filme, porque a linguagem cinematográfica tem outros recursos visuais e sonoros para passar essa informação.
Por exemplo, uma mudança de luz, de decoração, de vestuário e de maquilhagem, podem ser o suficientes para o espectador saber que houve uma mudança temporal.
E a questão da mentira?
Quanto a explicar, ou não, que se trata de uma mentira, tudo depende da intenção dramática do autor.
Se quisermos que o espectador do filme saiba que é uma mentira, será bom também indicá-lo explicitamente ao leitor do guião.
Mas se, pelo contrário, quisermos que isso seja uma surpresa para o espectador, então seria errado estragar a mesma surpresa ao leitor, revelando-a no guião.
Cada autor terá de avaliar, em cada momento, o que é mais favorável à sua estória.
Quanto à imaginação…
Finalmente, em relação à última parte da questão, também já abordei o tema no artigo “Como Escrever um Sonho“.
Na prática, indicar uma fantasia, ou sonho, ou voo de imaginação, pode ser feito com uma solução muito semelhante à da escrita de um flashback. Por exemplo:
FANTASIA – INT. SALA DE AULAS – DIA
ou EXT. CÉU ESTRELADO – NOITE (SONHO)
Termino com uma das minhas citações favoritas, que se aplica que nem uma luva a todas estas dicas e sugestões:
“Absorve o que é útil, elimina o que é inútil e adiciona o que é especificamente teu.” – Bruce Lee
Boas escritas.