Um documento que já circula na net há alguns anos, mas que só descobri agora, abre uma janela sobre a criação e produção de ficção televisiva no sistema norte-americano. Através de conselhos, críticas e comentários, o autor, Javier Grillo-Marxuach, revela-nos o funcionamento interno das equipas de escrita das séries de TV que tanto apreciamos.
O interesse desse texto, contudo, estende-se muito além do simples abrir da cortina sobre esse mundo fascinante.
Com base na sua experiência de várias décadas o autor inclui conselhos e ensinamentos de grande utilidade em qualquer ambiente laboral que implique trabalho em equipa.
O autor
Javier Grillo-Marxuach é um guionista e produtor americano, conhecido por ter colaborado em séries como Lost e The Witcher, entre muitas outras.
Ao longo da sua vasta carreira, o autor ter-se-á aparentemente cruzado com alguns Show Runners que não corresponderam às suas expectativas do que deve ser um líder de equipas criativas.
Essas experiências negativas levaram-no a escrever este documento, uma espécie de “manual de liderança para escritores”, a que chamou de 11 laws of showrunning; as 11 leis da criação/produção de séries de ficção.
Note-se que há duas versões do documento, a “simpática” e a “não tão simpática”. No fim deste artigo encontrará o link para a primeira; no fim do próximo artigo, deixarei a ligação para a segunda.
Mas primeiro…
O que é um Show Runner
No sistema de produção televisiva dos EUA, que tem sido adoptado em muitas partes do mundo, é raro uma série de televisão ser escrita apenas por uma pessoa.
O mais comum é que vários argumentistas distintos, com diferentes níveis de experiência, trabalhem em colaboração dentro daquilo a que se chama um writers’ room.
É nessa “sala de escritores” que são definidos colectivamente todos os passos da narrativa, tanto da trama global da série como de cada episódio individual. Só depois desse trabalho de equipa é que os autores passam à escrita dos guiões finais dos episódios.
Ao comando da equipa de escrita está uma figura cuja responsabilidade, como o nome indica, é manter o “show“, o espectáculo, em movimento: o Show Runner.
Normalmente, mas nem sempre, o Show Runner é o autor da ideia original da série, da sua bíblia de apresentação e do episódio piloto.
Nos Estados Unidos todos os anos milhares de autores apresentam outras tantas propostas aos financiadores, mas só alguns ganham as suas boas graças e são financiados. Quando um autor consegue, de alguma forma, convencer uma produtora, um estúdio ou um canal de televisão a apostar na sua ideia, e recebe a sua encomenda, torna-se o seu Show Runner.
Nesse momento deixa de ser apenas um escritor, um artista, e torna-se também um Produtor Executivo, a quem compete assegurar a transposição da sua ideia original para a realidade e garantir a qualidade do resultado final.
Cabe-lhe a ele, por exemplo, escolher os outros guionistas do seu writer’s room e conduzir todo o trabalho necessário para transformar o episódio piloto nos 6, 9, 12 ou mais episódios que vão compor a temporada inteira.
Mas as suas responsabilidades estendem-se ainda a muitas outras áreas: escolher os principais elementos da equipa técnica, incluindo os realizadores; selecionar os atores que vão encarnar os personagens que criou; supervisionar a direção de arte, cenários, guarda-roupa, pós-produção e efeitos especiais, som e banda sonora; e ainda toda uma miríade de detalhes que compõem uma produção televisiva.
Em última instância, o Show Runner é o responsável por a série ser terminada com qualidade, dentro do orçamento atribuído e no prazo acordado.
Infelizmente, nem todos os argumentistas têm o perfil certo para isso.
É aí que surgem os problemas que Javier Grillo-Marxuach observou e que o levaram a escrever este documento.
As onze leis do showrunning
É claro que mesmo o Show Runner mais competente, experiente e capacitado não está sozinho no seu trabalho. Atrás dele há uma enorme equipa de profissionais, geralmente muito competentes e bem pagos, cuja função é assegurar que o trabalho vai ser feito, e bem feito.
As onze leis de Grillo-Marxuach focam-se, por isso mesmo, na relação que o Show Runner deve ter com todos esses profissionais, começando, obviamente, pelos argumentistas do seu writer’s room. E isso leva-nos à…
primeira lei do showrunning: Tudo gira à sua volta por isso pare de fazer tudo girar à sua volta
Com esta primeira “lei” o autor recorda aos Show Runners que a sua posição de prestígio já está assegurada por definição. É o projeto deles, onde são os reis, os maiorais, os bosses; por isso podem descontrair e dar espaço aos outros para se expressarem.
Se conseguirem criar um ambiente de confiança, de entusiasmo, de missão, e derem ao seus colaboradores autonomia para contribuirem criativamente, vão ter neles mais do que colaboradores; vão ter verdadeiros crentes, prontos para dar o melhor e ir mais além do que o seu dever.
Para isso, contudo, os Show Runners têm de ser capazes de responder a uma questão:
É suficientemente forte e seguro do seu talento e realização para aceitar a possibilidade de que outras pessoas – devidamente capacitadas por si – possam realmente realçar o seu génio… ou vai agarrar-se à ideia de que só você pode ser a fonte desse génio? A forma como responde a esta pergunta determina o líder que será.
segunda lei do showrunning: Conheça o seu show e diga a todos o que ele é
Como Show Runner, tem de comunicar a sua visão para que todos a compreendam e depois pregá-la, dia após dia, até à exaustão, até que todos a sintam na sua alma como um evangelho. E aqui está a melhor parte de comunicar com sucesso uma visão partilhada: os seus empregados vão adorá-lo por isso.
Grillo-Marxuach critica severamente os Show Runners que guardam para si, por medo, necessidade de controle, ou incapacidade de comunicação, a sua concepção do tom, da textura e da técnica da série.
Sem essa informação, e mesmo tendo acesso à bíblia e ao episódio-piloto, os outros escritores e colaboradores nunca irão acertar sozinhos exatamente no que o Show Runner espera e precisa deles.
A maior parte do trabalho de um Show Runner é comunicar informações a outras pessoas para que elas possam executá-las dentro de seu campo de especialização.
A última coisa que ele deve fazer é refugiar-se em cinco palavras: “Eu saberei quando o vir“. Isso é uma fuga à sua responsabilidade, que tem uma sequela na lei seguinte.
terceira lei do showrunning – Descreva sempre o caminho para o sucesso
“Descrever sempre um caminho para o sucesso” significa, na sua forma mais prática, “Não sair de uma reunião sem que todos saibam o que se espera que façam/entreguem a seguir.“
Este é um conselho que não se aplica apenas às equipas de escrita: líderes e gestores de todos os setores de atividade deveriam anotá-lo num Post It, para o colar num sítio onde o vissem a toda a hora.
Ao longo da minha própria carreira, em várias empresas e projetos, tive a confirmação desta “lei” que o autor nos recorda: também eu participei em muitas reuniões em que entrávamos com uma agenda vaga, discutíamos sem um propósito claro e saíamos sem objetivos definidos. Mas como tinham sido reuniões muito agitadas e debatidas, os seus organizadores até achavam que tinham sido produtivas.
Esse tempo perdido poderia ter sido melhor aplicado se cada um de nós, ao entrar na sala, soubesse exatamente o que ia discutir, e ao deixá-la tivesse uma noção clara do que tinha de entregar a seguir.
Cada diretiva clara que emite é uma dádiva porque alivia o seu pessoal do stress de ter de adivinhar os seus objectivos. Uma diretiva clara é uma indicação de confiança; é a sua forma de dizer: “Gastei tempo e esforço para descobrir o nosso objetivo. Agora reconheço que vocês têm os conhecimentos e os recursos necessários para resolver o processo“.
quarta lei do showrunning: Tome decisões cedo e com frequência
Para o autor, a aversão a tomar decisões é uma disfunção muito comum na gestão de equipas de escrita.
Eu posso confirmar que não é só aí que essa dificuldade existe; já conheci muitos líderes que sofrem do mesmo problema e pelos exatos motivos que o autor identifica:
É o resultado de uma insegurança compreensível: quando tomamos uma decisão, o mundo sabe qual é a nossa posição. Quando dizemos “é isto que eu quero“, tornamos claro o nosso gosto e a nossa opinião: o mundo vai julgar-nos.
Um bom líder não tem medo desse julgamento, porque confia na sua capacidade de tomar boas decisões, no momento certo, com base na informação disponível.
Não podemos ficar à espera de ter toda a informação necessária para decidir com toda a certeza, por várias razões:
- em primeiro lugar, por mais informação que se reuna, nunca é suficiente para garantir a certeza absoluta;
- além disso, o prejuízo de atrasar demasiado uma decisão é normalmente superior ao benefício que a informação adicional acrescenta;
- há também um efeito em cadeia: o tempo perdido a tomar uma decisão é tempo que vai faltar a outras pessoas para fazerem o seu trabalho com qualidade;
- e, finalmente, a indecisão mina a confiança da equipa na nossa capacidade de liderança, de gestão do projeto. Essa desconfiança, se acumulada, pode ter efeitos letais.
Isto não quer dizer que se devam tomar decisões por impulso, sem ponderação, à toa. Obviamente que escolher a casa em que vamos morar exige mais informação e tempo do que escolher o almoço, e devemos ter uma noção muito correta do ponto de equilíbrio mais adequado para cada situação.
Mas um bom líder sabe que uma decisão 80% certa no momento exato é normalmente melhor do que uma 100% perfeita mas fora de prazo.
Javier reforça esse ponto com uma metáfora curiosa:
O seu trabalho é fazer com que as ideias ganhem vida. O primeiro passo é comprometer-se. Comprometer-se cedo. Comprometer-se frequentemente. Faça do compromisso o mesmo que respirar: mais vale fazê-lo agora, porque acabará por ter de o fazer.
quinta lei do showrunning: Não exija um produto final na fase da ideia
Javier Grillo-Marxuach chama a atenção para um paradoxo que encontrou com alguma frequência: muitos Show Runners que, por necessidade da sua função, demonstram uma capacidade fabulosa de expressar em palavras as suas próprias ideias, têm ao mesmo tempo uma grande dificuldade em entender as ideias dos outros.
Isto leva-os, no melhor dos casos, a exigir que as ideias lhes sejam apresentadas com um nível de detalhe e acabamento exagerado, para se sentirem seguros quanto ao caminho proposto.
E, no pior cenário, leva-os a recusar ou a reescrever totalmente estórias e guiões, por não os terem entendido devidamente.
O autor atribui isso à falta de experiência desses Show Runners, que são atirados para as funções de liderança sem terem tido uma subida gradual na hierarquia dos writer’s rooms. Só anos e anos a ouvir, discutir, criar e apresentar estórias a outros Show Runners criam essa capacidade de entender imediatamente uma estória apenas pelo seu esboço geral.
Essa é uma capacidade essencial para um Show Runner. Mas se não é o seu ponto forte, mesmo assim há sempre uma solução:
A resposta é a confiança. É preciso ter fé que os profissionais que contratámos saberão executar na página o que está em falta no seu esboço. Confiar que o escritor que lhe propõe uma cena em que duas pessoas se conhecem de forma memorável e divertida (o que se chama um “meet-cute”) saberá como o escrever no guião, dado o tempo suficiente.
Conclusão
Na segunda parte deste artigo apresentarei as outras seis “leis” do showrunning.
Mas se quiser ir adiantando a leitura, aqui segue a “versão simpática” do documento original:
Versão Simpática: http://okbjgm.weebly.com/uploads/3/1/5/0/31506003/11_laws_of_showrunning_nice_version.pdf
No próximo artigo, segunda parte, incluirei o link para a versão “não tão simpática”.