Avançar para o conteúdo

As 11 Leis dos Show Runners – 2ª parte

    Neste artigo termino a apresentação das “Onze Leis” da produção de séries de televisão – o showrunning – que Javier Grillo-Marxuach, um conhecido autor e show runner americano, publicou há alguns anos. Além de oferecerem uma janela interessante sobre o processo de escrita e produção vigente na TV americana e em boa parte do mundo, são conselhos úteis para qualquer líder de equipas criativas.

    Pode encontrar a primeira parte do artigo aqui.

    A Sexta Lei do Showrunning: Escreva e reescreva rapidamente

    Javier Grillo-Marxuach recorda-nos que os guiões não são apenas uma expressão da alma dos escritores, são também ordens de trabalho para toda uma enorme equipa:

    Sem um guião completo, ninguém pode decidir para onde vão levar os camiões com todas as luzes, câmaras e fatos, e por quanto tempo. Sem um guião, ninguém consegue perceber quanto vai custar fazer este episódio da sua série. Sem um guião, os atores não podem preparar-se para o seu trabalho em frente à câmara.

    É por isso fundamental agilizar todo o processo de escrita e reescrita, para eliminar demoras e atrasos desnecessários.

    O autor defende que um guionista competente não precisa de mais do que uma semana e meia para escrever o primeiro rascunho de um guião a partir de uma escaleta completa, desenvolvida em equipa no writers’ room.

    Aproveita ainda para criticar os show runners que colocam esses prazos aos seus escritores mas depois os violam quando são eles próprios a escrever (ou a reescrever os guiões de terceiros). Para Javier, essa dualidade de critérios destrói a moral da equipa e lança o caos na produção.

    Os guiões são a forma como se comunica com o elenco, a equipa, o estúdio e a rede. Escreva-os rapidamente, reescreva-os de forma impassível e eficiente.

    A Sétima Lei do Showrunning: Gira múltiplos objetivos com eficiência através da delegação de responsabilidades

    O autor esclarece que em qualquer momento de uma temporada o show runner tem de dar atenção a pelo menos seis estórias em diversas fases de desenvolvimento e produção: a estória em desenvolvimento no quadro do writers’ room, a estória em esboço, a estória que está a ser escrita, a estória que está em pré-produção, a estória em produção e a estória que está a ser finalizada na edição e pós-produção.

    Para conseguir dar atenção a todas essas tarefas em simultâneo o show runner tem de confiar nos seus escritores mais experientes. Javier Grillo-Marxuach compara-os, até, a apóstolos, prontos para espalhar o Evangelho do show runner por todos os cantos do domínio do seu programa.

    No sistema americano os escritores vão evoluindo ao longo de uma série de etapas profissionais, desde o escritor base da equipa de autores, até editor de estória, editor executivo de estória, co-produtor, produtor, produtor supervisor e co-produtor executivo.

    Dessa forma, cada equipa tem membros com variados graus de experiência a quem um show runner pode ir delegando tarefas de complexidade variada.

    Isso contribui não apenas para o libertar para as tarefas realmente essenciais – especialmente o trabalho criativo no writers’ room – mas é também uma forma de os ir preparando para, no futuro, poderem ser eles mesmos show runners das suas próprias séries.

    A Oitava Lei do Showrunning: resista à tentação das Tarefas sexy e vistosas

    Esta lei é uma extensão da anterior. Dentro do processo de produção há uma série de tarefas que são mais vistosas e atraentes do que as restantes. É muito mais sexy rever opções de elenco do que rever faturas de despesas; é muito mais atraente acompanhar a montagem de um episódio do que a montagem de um orçamento.

    Javier Grillo-Marxuach considera fácil um show runner cair na tentação de pensar que é essencial estar presente em todas essas tarefas, mas na realidade isso é prejudicial para o processo.

    Em primeiro lugar, porque, como já vimos, rouba tempo ao show runner para se dedicar à sua tarefa principal, que é cuidar de manter a sua visão nas estórias.

    Mas também porque rouba tempo, e oportunidade, para todos esses profissionais fazerem bem os seus trabalhos.

    O autor apresenta, como exemplo, a relação do show runner com o processo de montagem e pós-produção.

    Em vez de perder tempo na sala de montagem a ver em detalhe cada pormenor da edição inicial de um episódio, deve delegar esse acompanhamento ao autor do respectivo guião, que conhece essa estória em particular melhor que ninguém.

    O show runner deve depois assistir à primeira versão da montagem no seu gabinete (não na sala de edição), com o guionista e o editor, para lhes passar a sua opinião e notas de alterações.

    Competirá em seguida ao escritor do episódio verificar se todas essas notas são respeitadas na segunda versão da montagem.

    Só depois destas etapas serem concluídas deverá o show runner voltar a ver o episódio para, então, como Javier diz, “fazê-lo brilhar“.

    Se você se encontrar repetidamente “a procurar o programa” na pós-produção, provavelmente perdeu-o na sala dos escritores.

    “Não há problema; resolve-se na montagem…”

    A Nona Lei do Showrunning: Espere diferentes níveis de competência da sua equipa.

    Como vimos antes, numa equipa de escrita há autores com diversos níveis de experiência e habilidades. Javier Grillo-Marxuach defende que um show runner competente não deve exigir mais de cada um do que aquilo que ele está habilitado para dar.

    Por exemplo, de um escritor de nível de produtor executivo com vinte e cinco anos de experiência deve-se exigir muito mais do que de assistente que acabou de ser promovido a escritor da equipa base. Isto parece óbvio mas, aparentemente, é esquecido por muitos show runners (e chefes de outras equipas criativas em todos os ramos de atividade).

    Forneça à sua equipa informações precisas e específicas sobre o que deseja, e feedback construtivo sobre o como e o porquê (e, sim, dizer-lhes O QUE escrever também conta – não pense que eles vão ressentir-se por lhes indicar exatamente como quer que a cena pareça/soe) e verá uma melhoria significativa de guião para guião.

    O autor alerta também para o perigo de confiar cegamente nas ideias de pessoas de fora da equipa. Apesar de nas disciplinas criativas se acreditar que “a melhor ideia vence, independentemente de onde veio”, é preciso gerir isso com cautela para não criar tensões e problemas desnecessários.

    Finalmente, Javier alonga-se sobre as formas de lidar com as “maçãs podres” que podem surgir dentro de qualquer equipa. Ele classifica-as em três categorias:

    1. O “Doutor Não”: Um escritor que responde à maioria das ideias que não são suas com um “isso é péssimo“.
    2. O “Sequestrador”: Às vezes, os “Doutores Não” ultrapassam a linha e tornam-se “Sequestradores”, recusando-se a deixar a sala avançar até que as suas objeções sejam abordadas.
    3. O Político/Manipulador/Insultador: Refere-se àqueles que, por falta de sensibilidade, desejo de serem ouvidos e apreciados, ou simplesmente por malícia, usam informações divulgadas no fórum aberto da sala de escritores para magoar, minar ou ridicularizar publicamente os outros escritores.

    Além de identificar estes causadores de problemas, o autor aponta cinco tipos de respostas possíveis, nenhum deles fácil ou confortável, mas apesar disso indispensáveis:

    1. Devolver o problema ao “Doutor Não”: “Quem critica, compra.” Se alguém aponta um problema, mas não oferece uma solução, perde o direito de falar.
    2. Confrontar os problemas cedo, de frente e com sinceridade: Se alguém está constantemente a interromper a sala, isso deve ser-lhe referido com firmeza e, de preferência, em privado.
    3. Discutir o problema com o subordinado mais próximo: O show runner pode pedir ao escritor mais experiente da equipa, o seu braço direito, para lidar com a situação de uma das formas descritas acima e reservar assim a sua intervenção para um último recurso.
    4. Exílio: Alguns guionistas são tão incorrigíveis nos problemas que causam que é necessário encontrar um uso melhor para o seu talento. Escritores que se saem bem na página, mas mal no writers’ room, podem ser utilizados para escrever e reescrever rascunhos, sendo mantidos afastados da sala.
    5. Despedir – Por vezes, não há outra maneira de contornar a situação que não seja remover a “maçã podre” da equipa. Isso deve ser feito de forma rápida e compassiva, mas apenas depois de serem acertado todos os passos com o departamento de Recursos Humanos, para evitar problemas futuros.

    A hierarquia não é uma palavra suja nem o sinal de uma mente antiquada que resiste à mudança e à inovação. Quando aplicada corretamente e mantida com cuidado, a hierarquia é o colete à prova de balas que permite que cada membro da sua equipa alcance o seu potencial máximo sem ser despedaçado pelos tiros.

    A Décima Lei do Showrunning: Entregue boas e más notícias depressa e com frequência.

    Os programas de TV são incubadoras naturais para o tipo de dramas que surgem quando forçamos uma centena ou mais de pessoas temperamentais a trabalhar em estreita comunhão sob a pressão de um trabalho intenso realizado sob grande stress.

    Javier Grillo-Marxuach recorda-nos que, invariavelmente, o drama surge dos segredos, que compara a um veneno tanto mais perigoso quanto mais o show runner estiver envolvido nesses segredos.

    O autor recomenda ao chefe da equipa que “Torne a honestidade o seu negócio, o controlo de rumores a sua vocação secundária e a transparência completa o seu objetivo final.

    E termina com uma grande tirada: “Guarde o drama para o ecrã.

    Segundo o autor, a pior posição para um líder é ser o portador de más notícias que todos já conhecem, por isso vale a pena expor cedo, com tato e frequentemente qualquer informação que ajude a velocidade e eficiência da criação.

    Mais importante ainda, se essa informação expuser o show runner como a causa de um erro, o melhor é deixar o orgulho de lado e assumir a responsabilidade imediatamente.

    Em resumo, quando todos conhecem a verdade, ninguém pode ser surpreendido pela sua chegada. Quando ela vem de si, ninguém pode dizer que você perdeu o controle.

    A Décima Primeira Lei do Showrunning: Partilhe o crédito pelo sucesso até ao excesso

    Javier Grillo-Marxuach termina as suas “Onze Leis” com uma ideia que de certa forma se liga com a primeira Lei: “Nunca perca uma oportunidade para destacar como o trabalho de outra pessoa o fez parecer bem.

    Recordo que a mencionada Primeira Lei afirmava que “Tudo gira à sua volta por isso pare de fazer tudo girar à sua volta“. Em consequência disso, o show runer não perde nada ao partilhar o crédito.

    A validação da sua primazia chega semanalmente na forma do maior cheque na folha de pagamento, o maior escritório na suite, o lugar de estacionamento mais próximo da porta da frente e o crédito de Produtor Executivo nos títulos principais de cada episódio do programa… juntamente com o cartão da sua empresa de produção após os créditos finais.

    Javier destaca ainda que o crédito nunca se esgota e pode, por isso, ser atribuído liberalmente.

    Quanto mais crédito o show runner der, mais crédito receberá. Não só por ser um génio que soube contratar pessoas tão capazes para a sua equipa mas também, e isto é ainda mais crucial, por ser um show runner que defende os seus escritores.

    O outro lado dessa capacidade de defender os escritores é não os usar como desculpa para os problemas que surgem (mesmo quando a culpa for efetivamente deles).

    Há poucas coisas que um show runner pode fazer que sejam menos dignas da sua posição do que atirar um membro da equipa para baixo do autocarro.

    O autor aconselha que, quando o show runner for pressionado para entregar um guião que ainda não está pronto, deve simplesmente informar que “Ainda há trabalho a fazer” sem se defender ou desculpar com as incapacidades dos seus escritores.

    Estes saberão apreciar devidamente tanto a partilha de elogios quanto a defesa face a críticas.

    Conclusão

    Javier Grillo-Marxuach termina o seu manifesto recordando-nos que, na sua experiência, a liderança é onde os show runners mais frequentemente falham.

    Como show runner, a sua realidade é que você é um profissional de nível sénior: alguém que ganha mais por produzir um único episódio de televisão do que a maioria dos americanos ganha em um ano, e que conquistou o poder de se entregar ao seu pior lado ou aspirar ao seu melhor.

    Apesar desta última afirmação não ser verdadeira em Portugal (mesmo os melhores show runners portugueses não ganham mais por episódio do que a maioria dos portugueses ganha num ano) tudo o resto que estas “Onze Leis” preconizam pode ser aplicado vantajosamente nas nossas incipientes salas de escritores.

    Afinal de contas, em Portugal como nos Estados Unidos, todos os profissionais que trabalham em equipa, e especialmente nas áreas criativas, gostam de ver as suas identidades respeitadas, o seu trabalho valorizado e o seu contributo reconhecido.

    Um líder criativo faz tudo isso.

    Termino deixando aqui a ligação para a segunda versão do documento de Javier Grillo-Marxuach, a “versão não-simpática” (a “versão simpática” foi publicada em anexo à primeira parte deste artigo).

    É um texto mais extenso e com críticas mais explícitas a alguns dos show runners tóxicos com que Javier Grillo-Marxuach teve de lidar ao longo da sua ascensão nas fileiras dos guionistas de televisão até ao lugar cimeiro que hoje ocupa.

    Versão Não tão simpática

    http://okbjgm.weebly.com/uploads/3/1/5/0/31506003/11_laws_of_showrunning.pdf

    Imagem: Cowboy Bebop, série da Netflix de que Javier Grillo-Marxuach foi co-produtor executivo.

    Deixe um comentário

    O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

    Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.