Não é preciso dizer que fiquei desiludido com a terceira parte do Homem Aranha; toda a gente ficou. Tão desiludido que decidi escrever um artigo sobre o papel exagerado que as coincidências têm na estória, quer para desencadear os eventos quer para os resolver. Infelizmente o grande John August (outro fã desapontado…) adiantou-se e escreveu um artigo exactamente sobre isso, cuja leitura recomendo vivamente.
Mas há um aspecto que ele não referiu e que eu acho que vale a pena mencionar. Lajos Egri, no livro "The art of dramatic writing", expõe um princípio seminal da boa escrita dramática, a que chamou a unidade dos opostos.
A unidade dos opostos
O que é a unidade dos opostos? É a necessidade de criar as condições certas para que protagonista e antagonista estejam de alguma forma presos um ao outro, e não possam limitar-se a virar costas e abandonar a luta. Se eu estiver num café vazio e a pessoa ao meu lado estiver a fumar um Cohiba, posso simplesmente mudar de mesa; mas se o café estiver cheio, eu estiver à espera de alguém e o fumo me estiver mesmo a incomodar, terei de pedir-lhe para apagar o charuto. O conflito é inevitável. Se protagonista e antagonista estiverem – metaforica ou realmente – acorrentados um ao outro, à maneira dos gladiadores romanos, a confrontação, além de inevitável, é mais dramática.
Exemplos? Em "Os condenados de Shawshank" Andy está preso e os seus antagonistas (alguns outros presos, os guardas e o director) também estão confinados aquele espaço e vida; em "Die Hard" McLane não pode fugir da torre Nakatomi porque a mulher é refém dos criminosos; em "Os salteadores da arca perdida" Indiana Jones quer a mesma arca que os rivais nazis e os seus colaboradores; em "Toy Story" Woody e Buzz são ambos brinquedos de Andy e têm de disputar a sua preferência.
Em todos estes casos, protagonistas e antagonistas estão presos uns aos outros porque têm os mesmos objectivos ou objectivos diametralmente opostos; e não podem encolher os ombros e seguir a sua vida noutro lugar qualquer porque o que está em jogo é demasiadamente importante.
A falsa unidade dos opostos
Apliquemos então este princípio ao "Homem Aranha 3". Será que os três conflitos principais obedecem a esta unidade dos opostos? Aparentemente, sim: Peter e Harry são amigos de infância e Harry (o novo Duende Verde) quer vingar a morte do pai, cuja culpa pensa ser de Peter (o Homem Aranha); Peter quer punir o culpado da morte do tio, que atribui a Marko (o Homem Areia); e Peter tem de disputar uma mesma oportunidade de emprego com Brock, levando a que mais tarde este queira vingar-se dele sob a forma de Venom. Os motivos para a unidade dos opostos parecem ser fortes: amizade e vingança, no primeiro caso; vingança, no segundo; e disputa pelo mesmo objectivo, seguida de vingança, no terceiro.
Mas é aqui que entra a questão do abuso das coincidências, que neste caso foram a muleta encontrada pelos autores para resolver a segunda e a terceira destas estórias. A primeira, que passa no teste, já vem dos filmes anteriores.
Vejamos então: Flint Marko escapa da prisão e, por acaso, vai cair no meio de uma experiência científica que o transforma no Sandman; por acaso faz a sua primeira grande aparição no dia e local em que o Homem Aranha vai receber as chaves da cidade; e por acaso Peter é informado exactamente nessa altura que foi ele, Marko, o assassino do seu tio; já agora, também é por acaso que o Aranha descobre que a água tem o poder de transformar o Homem Areia numa espécie de Homem Lama, inofensivo…
O caso de Brock ainda é mais gritante: o jovem fotógrafo recém-chegado disputa o lugar de Peter no jornal; por acaso, está apaixonado por uma colega de Peter, com quem este vem a ter um breve flirt. Quando falsifica uma fotografia e é desmascarado por Peter, Brock perde o emprego e fica a odiar o seu rival; por acaso entra na igeja onde o Homem Aranha está a tentar livrar-se do ser simbiótico que se colou a si; por acaso descobre que Peter Parker é o Homem Aranha; e, por um acaso ainda maior, é a ele que o simbionte se cola, transformando-o no terrível Venom. Como não podia deixar de ser, também é por acaso que o Homem Aranha descobre que os sons fortes podem ser usados para derrotar este novo e poderoso inimigo.
Conclusão
Aqui, como em tantas outras coisas, os fins não justificam os meios. Ou seja, é má escrita recorrer a todo o tipo de truques – neste caso, um exagero de coincidências – para conseguir alcançar o objectivo louvável da unidade dos opostos.
As coincidências fazem parte da vida, e podem fazer parte das nossas estórias. Mas raramente será possível fazer os espectadores engulir mais do que uma ou duas grandes coincidências por filme. As coincidências mais aceitáveis (e por vezes até inevitáveis) são as que acontecem no início da estória e contribuem para a pôr em movimento. É por acaso que McLane está na torre Nakatomi quando esta é tomada de assalto; mas se isso não acontecesse não haveria "Die Hard".
Também é aceitável usar uma ou outra coincidência para complicar a vida ao protagonista, embora com cuidado para não exagerar. Mas quanto mais a estória avança, menos o guionista deve usar a sorte e o acaso para fazer progredir o enredo. E, acima de tudo, deve evitar como à peste recorrer às coincidências para resolver os problemas do protagonista: "Olha, que sorte – alguém deixou uma pistola carregada nesta gaveta. Vem mesmo a jeito…"
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Não que a triologia toda abuse de coincidências e as pessoas se identifiquem com o horrível Parker de Maguire por ser um loser… E não que os três filmes sejam longas propagandas de brinquedos infantis, tal qual os dois Quartetos Fantásticos e Vingadores.