No início da semana passada lancei aqui no site um desafio de escrita: criar um flashback que fosse a continuação de uma cena que eu apresentei como 'mote'.
A resposta foi ainda melhor do que eu esperava: recebi onze propostas de flashbacks, uma das quais poucas horas depois do desafio ser publicado. O nível geral das propostas foi bastante elevado, e um leitor entusiástico escreveu mesmo um guião de vinte e oito páginas, em que o flashback se prolongava até uma conclusão da estória.
Enfim, foi um sucesso.
Durante este fim de semana estive a ler cuidadosamente todas as cenas, analisando e pontuando as componentes 'ideia', 'técnica', e 'diálogos'. Com base nessa pontuação uma delas destacou-se como melhor cena, embora muito perto das três outras propostas que ficaram no pódio.
Está pois na hora de anunciar os premiados.
Os premiados
Vamos lá então:
- Prémio Rapidez, é atribuído à proposta de Berni Ferreira, publicada ainda durante a madrugada do lançamento do desafio. Curiosamente, apesar da rapidez com que foi escrita, ficou numa das posições mais elevadas na grelha de pontuação.
- Prémio Melhor Cena, é para a primeira proposta de Nélia, uma cena simples, muito bem escrita, e com uma ideia engraçada.
- Criei ainda um Prémio Especial Entusiasmo para o guião enviado pelo Bruno Afonso, por email, com vinte e oito páginas de acção de pura série B, ingénua mas muito divertida.
Aos três premiados os meus parabéns. Espero agora que me enviem os vossos contactos e moradas para poder enviar os prémios. O Berni terá também de escolher entre o "Taxi Driver" e o "Blade Runner".
A todos os concorrentes o meu obrigado pela sua participação. Vou passar a criar regularmente mais desafios como este.
Não vou fazer comentários individuais a nenhuma das cenas propostas. Em vez disso, e para que todos os leitores possam beneficiar deste desafio, vou escrever na próxima semana mais um artigo sobre a escrita de flashbacks, que completará aquele que em tempos já publiquei e que pode ser lido aqui.
As cenas premiadas
Aqui ficam as cenas premiadas:
Prémio Melhor Cena
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EXT. PRAIA – DIA
Estamos no local da cena de abertura do filme: a mesma praia vazia, o mesmo mar bravo.
Uma prancha de surf vem dar à costa.
OSCAR (V.O.)
Porque é que os zombies iam venerar um humano vivo como eu?
No mar, uma cabeça emerge e volta a mergulhar. É Oscar. Parece que está apenas a mergulhar à procura de alguma coisa até o vermos de mais perto: está em apuros.
Oscar está a lutar para se libertar das ondas revoltas que o sugam para o fundo.
OSCAR (V.O.)
E foi então que percebi…
Debate-se furiosamente mas a cabeça volta a submergir. Por alguns momentos desaparece…
OSCAR (V.O.)
Não iam…
… até vir dar à costa, ao pé da sua prancha.
Ao lado da prancha, Oscar permanece imóvel, inanimado. Depois abre os olhos repentinamente e inspira. Senta-se e tosse, expele água. Oscar reclina-se para trás, inspirando e expirando de olhos fechados, tentando recompor-se de um grande esforço físico. Mais calmo, olha então para o mar.
Acompanhamos a partir de agora a cena inicial do filme. Sentado calmamente, observa o mar revolto à sua fente. Depois levanta-se, pega na prancha e caminha pela areia em direcção ao carro.
FIM DO FLASHBACK
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Prémio Rapidez
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INT. QUARTO DE HOSPITAL – NOITE
VITORINO, o pai de Oscar, consideravelmente envelhecido, pálido e magro, está deitado numa cama de hospital. Tem um tubo enfiado em cada narina. Um monitor de batimentos cardíacos emite PIPS regulares, acompanhando a sua respiração pesada.
Oscar, agora com 17 anos, está ao seu lado, de pé, a segurar-lhe a mão e a tentar sorrir. O resultado desse esforço é apenas uma expressão que parece ainda mais grave do que se não o fizesse.
VITORINO
Oscar… tens de saber uma coisa… Este segredo já dura há demasiado tempo. Consegues tirar-me o colar?
OSCAR
Tenta não falar, pai. O médico disse que não devias fazer esforços.
VITORINO
É importante, Oscar.
Oscar estende as mãos na direcção do colar do seu pai. Cuidadosamente, eleva-lhe um pouco a cabeça e retira do pescoço de Vitorino uma corrente, com uma chave na extremidade.
VITORINO
Vais saber o que fazer quando chegar o dia… Filho…
OSCAR
Sim, pai…
VITORINO
Sei que vais fazer a escolha certa. Procura na cave…
Vitorino não consegue terminar. Os seus olhos imobilizam-se. O monitor dispara, soltando um silvo contínuo, agudo.
Oscar agarra-se ao pai, tentando desesperadamente acordá-lo.
OSCAR
Pai! Acorda!
INT. QUARTO DE OSCAR – NOITE
Oscar, agora com 12 anos, está sentado no chão do seu quarto a brincar com legos. Começam a ouvir-se VOZES QUE DISCUTEM através da porta, que despertam de imediato a sua atenção.
O miúdo ergue-se lentamente e, hesitante, aproxima-se da porta do quarto. Abre-a lentamente. As VOZES aumentam de intensidade, mas as palavras continuam a não se perceber.
Oscar atravessa a porta para o
CORREDOR,
que começa a percorrer em pontas de pés, tentando fazer o mínimo de barulho possível.
Enquanto desce as escadas para o hall, a discussão torna-se gradualmente mais perceptível. A primeira é a voz do seu pai.
VITORINO (O.S.)
Você não pode fazer isto! Estamos a falar do meu filho, porra!
ESTRANHO (O.S.)
Não é só o seu filho! Ele é o escolhido! Ele é o líder! Não pode continuar a impedi-lo de cumprir o seu destino!
Oscar consegue agora ver, através das barras do corrimão das escadas, o seu pai, que conversa com um homem de sobretudo e casaco, voltado de costas.
VITORINO
Ele é um só um menino! Uma criança! O meu filho é um ser humano!
Neste momento, o tom de voz do Estranho torna-se mais baixo, mais calmo, mais confiante.
ESTRANHO
Sabe bem que isso não é verdade.
O pai de Oscar esconde a cabeça entre as mãos. Quando se prepara para continuar a discussão, percebe finalmente que o seu filho está a assistir à discussão.
VITORINO
Oscar! O que é que estás a fazer a pé? Já para a cama!
(para o Estranho)
E você, saia já daqui! Saia desta casa e não volte mais!
Oscar desaparece a correr pelas escadas acima.
ESTRANHO
Eu saio, não se preocupe. Mas não se esqueça… Não pode adiar eternamente o inevitável.
INT. QUARTO DE OSCAR – DIA
Oscar, agora com oito anos de idade, está deitado na cama, debaixo de um monte de mantas, com um tremómetro na boca, a ler uma banda desenhada.
A sua mãe, VITÓRIA, entra no quarto, carregando uma bandeja com um copo de leite e bolachas de chocolate. Aproxima-se do filho, sentando-se sobre a cama. Faz-lhe uma festa no cabelo.
VITÓRIA
Então? Como vai o meu menino?
Vitória retira cuidadosamente o termómetro da boca de Óscar, em cujo rosto surge imediatamente um sorriso apagado.
OSCAR
Acho que estou na mesma.
Enquanto Vitória observa o termómetro, um pedaço de pele cai do seu rosto, dando lugar a um buraco através do qual a carne se tornou visível.
OSCAR
Mãe? Também estás doente?
VITÓRIA
Doente como?…
Óscar estica a mão para o rosto da mãe, incrédulo. Toca-lhe directamente na ferida recente. Dois dos seus pequenos dedos estão agora cobertos de sangue, que exibe perante o olhar de Vitória.
VITÓRIA
Esquece isto, Oscar! Não aconteceu nada, foi só uma brincadeira parva. Esquece isto, estás a ouvir?
Vitória ergue-se de rompante e sai do quarto a correr.
FIM DE FLASHBACK:
EXT. PARQUE DE ESTACIONAMENTO – NOITE
Voltamos ao presente. Oscar está exactamente na mesma posição, ainda completamente absorto. Os zombies continuam a venerá-lo como muçulmanos voltados para Meca ao final do dia. Andreia começa a sacudi-lo violentamente.
ANDREIA
Oscar? Oscar! O que é que tu tens?
Com um piscar de olhos e um abanar de cabeça, Oscar regressa finalmente à realidade.
OSCAR
Acho que a minha mãe era um zombie…
ANDREIA
Estás parvo? Não dizes coisa com coisa!
No rosto de Oscar, há agora uma expressão de pânico.
OSCAR
Andreia… Será que eu sou um zombie?
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Prémio Entusiasmo (cena final)
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EXT. – PONTE 25 DE ABRIL – MADRUGADA
Os zombies seguem o seu líder, Oscar, pela ponte. Condutores estupefactos abrandam para ver a procissão, mas a maioria pensa que se trata de evento cultural e, simplesmente, apitam. Zénia e Dr. Fausto estão abraçados, e são permanentemente empurrados pela espingarda do cientista mais velho. Andreia e o cientista mais novo estão a poucos metros de Oscar. Oscar é acompanhado pelo Vladimir que nas suas mãos transporta a máquina que atrai os zombies.
VLADIMIR
Já estamos a meio da ponte. Chegou o momento de dares a ordem fatal.
OSCAR
Não sei se sou capaz.
VLADIMIR
Basta apontares lá para baixo, para o rio.
Oscar está a chorar mas obedece a Vladimir. Os Zombies lentamente tentam transpor a protecção da ponte, o primeiro, um gordo, queda-se na beira da ponte mas, finalmente, joga-se lá para baixo. Os outros seguem-lhe devagar. Alguns viram-se para Oscar com uma expressão triste, mas não põe em causa a ordem do seu mestre. Um a um os zombies caem pela ponte abaixo até não sobrar nenhum.
VLADIMIR
Já caíram todos. Fizeste a coisa certa, rapaz.
Oscar abraça Andreia e beija-a na boca carinhosamente. Chega a polícia.
FIM
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Todas as outras cenas podem ser lidas nos comentários do artigo original.
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:D Obrigado! Espero que os outros leitores gostem também! Fico à espera de mais desafios. Isto é bom pra não procrastinar e sermos obrigados a escrever.
Parabéns aos vencedores. A cena vencedora realmente merece, é muito boa. Simples e reveladora.
E obrigado pelo desafio, é um bom estímulo para escrevermos. Espero que haja mais desafios semelhantes no futuro.
Quero aproveitar para agradecer João Nunes pela iniciativa do concurso. Um grande obrigado!
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