É possível escrever um argumento a partir de um personagem de cinema já existente? A minha dúvida maior é sobre os direitos autorais deste personagem. Vou citar somente um exemplo: o filme Exterminador do Futuro. É possível criar uma estória a partir de algum personagem do filme? — Patrícia
Patrícia, possível é, mas não vai conseguir vendê-la a ninguém se não tiver adquirido os direitos anteriormente.
Um caso em que isto acontece é aquilo a que se chama fan fiction.
São estórias escritas pelos fãs de filmes, livros, séries de tv, personagens, tomando como base esses materiais originais. A fan fiction é normalmente publicada na net em blogues, foruns, etc, sem fins comerciais. Os donos dos direitos normalmente não se incomodam, porque a fan fiction não os prejudica financeiramente e até é uma forma de divulgação e publicidade dos seus conteúdos originais.
Um bom exemplo é o Star Treck, que já inspirou centenas de obras de fan fiction.
Outro caso, também frequente, é o hábito, existente principalmente nos Estados Unidos, de escrever argumentos especulativos baseados em séries de televisão conhecidas.
Os autores escrevem estes argumentos como "cartão de visita" para mostrar a sua habilidade, imaginação e técnica de escrita. Nesse caso um argumentista poderia, perfeitamente, escrever um argumento para a série Terminator: The Sarah Connor Chronicles e usar todos os personagens da série: Sarah, o Exterminador, etc.
O que acontece é que tanto num caso como no outro estes argumentos nunca serão vendidos ou comercializados. Esse não é o seu objetivo. No primeiro caso são escritos por gozo e como homenagem aos conteúdos originais; no segundo, são uma demonstração da qualidade dos autores.
Para escrever um argumento de cinema ou televisão utilizando personagens pré-existentes terá de negociar esses direitos com o seu detentor atual. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o próprio Terminator. O quarto filme da franquia no cinema foi escrito, desenvolvido e produzido por novos produtores, que adquiriram os direitos da franquia aos produtores originais.
Nenhum produtor comprará um argumento seu baseado em personagens existentes se não lhe conseguir provar que tem os direitos sobre esses personagens.
Um caso curioso e, de certa forma, excecional, sobre o qual já escrevi aqui no blogue, é o de um filme chileno chamado Tony Manero, que usa como título o nome do personagem de John Travolta em Saturday Night Fever.
A diferença é que não usa o personagem, mas apenas o nome. O título refere-se à obsessão que o protagonista do filme, um personagem original e autónomo, tem pelo Tony Manero do filme original.
Mesmo assim acredito que só passou por ser um pequeno filme chileno de pouca divulgação internacional. Se tivesse sido desenvolvido nos Estados Unidos é quase certo que o estúdio que lançou o filme original não teria autorizado.
Em última instância, deixo aqui o aviso que faço sempre nestas questões: em caso de dúvida consulte um advogado, porque a lei de direitos de autor é complicada e varia de país para país.
Atualização: um leitor comentou a utilização do personagem literário Dorian Gray no filme Liga dos Cavalheiros Extraordinários (que por sua vez era a adaptação de uma novela gráfica do mesmo nome).
É verdade, mas isso deve-se ao fato desse personagem ter caído no domínio público, ou seja, os seus direitos já não pertencerem a ninguém em particular.
Foi isso que permitiu, por exemplo, adaptar O Crime do Padre Amaro ao cinema. Já no caso da minha própria adaptação d' A Selva os direitos tiveram de ser negociados com os descendentes do autor do romance, Ferreira de Castro.
Assim, podemos acrescentar um terceiro caso de utilização de personagens pré-existentes – quando as obras em que eles foram criados tiverem entrado no domínio público.
Boas,
Mas por exemplo se um argumentista quiser agarrar numa premissa de um outro guião, sem copiar nomes, locais e dados relevantes, e no inicio do filme colocar, ”Baseado na obra de…” não terá de adquirir quaisquer direitos, correcto?
Errado. Se é baseado numa obra que não esteja no domínio público, tem de negociar os direitos. Por vezes os autores cedem-nos por simpatia, como é o caso de “Os Condenados de Shawshank” que o Stephen King deixou o Frank Darabont adaptar por um dólar (se não me falha a memória). Mas teve de formalizar essa cedência num contrato para o estúdio aceitar. Volto a repetir: cada caso é um caso e so um advogado se poderá pronunciar corretamente. Mas se é adaptação, baseação, inspiração, o que quiser, numa obra pré-existente, em princípio terá de obter primeiro os direitos.
Obrigado pelo esclarecimento, tinha uma ideia diferente sobre essa questão…Eu pensava que bastava dar apenas os créditos de onde teríamos tirado a ideia, isso surgiu porque aqui há uns tempos escrevi uma curta-metragem inspirada no Halloween, de John Carpenter, uma estória completamente diferente, e durante a minha pesquisa deparei-me com inúmeras curtas-metragens que utilizavam a mesma premissa do Halloween, e por isso pensei que não fosse preciso pedir autorização. O meu guião em nada é parecido com o original, a não ser a primeira cena, que escrevi em género de homenagem ao John Carpenter, e foi essa a única razão pela qual coloquei o ”Baseado em…” nos créditos iniciais, acha que eu teria algum tipo de problema se filmasse essa curta metragem?
As curtas metragens como a que fala são um pouco uma versão vídeo da “fan fiction” que refiro acima. São produções pequenas, sem grandes pretensões comerciais, para divulgar na net ou em ambientes restritos, que não levantam normalmente grandes objeções aos estúdios e produtores. Mas quanto mais “decalcada” for do objeto original maior é o risco.