Revi recentemente no cinema, em cópia digital restaurada, um dos grandes filmes de Stanley Kubrick, Barry Lyndon. É uma experiência que recomendo vivamente – o filme resistiu admiravelmente à passagem de quatro décadas e pede para ser visto numa tela gigante.
Uma leitura de um artigo do excelente site Cinephilia & Beyond pode ajudar a perceber o porquê deste fascínio duradouro, que faz com que Barry Lyndon seja, por exemplo, um dos filmes favoritos de Martin Scorcese.
Quando saí da pequena sala do Cinema Ideal vinha (inevitavelmente…) a pensar no seu argumento e, mais especificamente, na forma da sua linha dramática. É uma típica estória de ascensão e queda, e possivelmente um dos melhores exemplos desse tipo de narrativa.
Stanley Kubrick, que além de produzir e dirigir o filme também escreveu o seu guião – e noutro formato aqui – adaptado de um romance de William Makepeace Thackeray, acabou até por dividir o filme em dois atos devidamente separados por um intervalo (previsto de origem e não enfiado à força para vender pipocas): um primeiro ato que corresponde à ascensão, seguido de um segundo ato dedicado à queda.
As formas das estórias segundo Kurt Vonnegut
Com isto lembrei-me de um vídeo do escritor Kurt Vonnegut, sobre o qual já escrevi aqui no blogue. Nesse vídeo ele disseca a forma de algumas estórias populares, arrancando grandes gargalhadas da sua audiência.
Infelizmente o vídeo disponível na net tem só 4 minutos e cobre apenas uma parte da sua dissertação. (Se alguém souber de um link para o vídeo completo, por favor partilhe nos comentários.)
Um infografismo disponibilizado na net há alguns anos por mayaeilam faz um resumo das diversas formas das estórias, na perspectiva de Kurt Vonnegut.
Por sinal, a ascensão e queda não está entre os tipos de estórias aqui grafados, embora a forma Velho Testamento esteja próxima. O trabalho não teve bases científicas, mas era um tema querido a Kurt Vonnegut, que regressou a ele várias vezes. O autor refere na sua autobiografia que, quando estava na universidade, quis escrever uma tese sobre o tema mas não teve autorização “porque era muito simples, e parecia demasiado divertido“.
A dissertação completa não chegou a existir mas alguns investigadores universitários resolveram levar a ideia até ao fim, aplicando-lhe as potencialidades dos computadores, conforme o próprio autor tinha previsto.
As formas das estórias segundo a Big Data
Logo no início do vídeo Kurt Vonnegut diz que “não há razão para que as formas das estórias não possam ser introduzidas num computador. São belas formas.“.
Pois foi isso exatamente o que um grupo de investigadores das Universidades de Vermont e Adelaide fez agora com recurso a computadores e a um programa de Inteligência Artificial especialmente desenvolvido para o efeito.
Conforme os autores do estudo explicam, na apresentação do paper prévio que publicaram:
“Os avanços na capacidade dos computadores, no processamento de linguagem natural, e na digitalização de textos permitem-nos agora estudar a evolução de uma cultura através dos seus textos, usando a lente da big data. A nossa habilidade em comunicar depende em parte de uma experiência emocional partilhada, com estórias que frequentemente seguem trajetórias emocionais distintas, formando padrões que têm significado para nós. Neste trabalho, classificando os arcos emocionais para um conjunto de 1.737 estórias da coleção de ficção do do Projeto Gutenberg, encontrámos um conjunto de seis trajetórias básicas que formam os blocos constituintes das narrativas complexas.”.
(Nota: Big Data é a análise computacional de grandes quantidades de dados correlacionados de forma a extrair novas informações.)
É de realçar que os investigadores não partiram de formas pré-definidas. Foi o próprio programa de IA que identificou, a partir dos dados introduzidos, as seis formas básicas mais frequentes.
E quais são as formas das estórias, os arcos emocionais identificados pelo sistema? Temos então:
1. Da dificuldade ao sucesso (ascensão)
Exemplo:
2. Da riqueza à pobreza (queda)
3. Homem num buraco (queda e ascensão)
4. Ícaro (ascensão e queda)
5. Cinderela (ascensão, queda e ascensão)
6. Édipo (queda, ascensão e queda)
Conclusão
O .pdf do estudo já publicado pode ser consultado aqui. Nas suas conclusões os autores fazem uma previsão atrevida:
A nossa abordagem pode ser aplicada na direção oposta: nomeadamente começando com o arco emocional e ajudando à geração automática de estórias cativantes. Os arcos emocionais das estórias podem ser úteis para ajudar a construir argumentos e para ensinar o senso comum a sistemas de Inteligência Artificial.
Será que é nesse caminho que seguimos? Rumo a um futuro em que também os autores serão substituídos por máquinas capazes de gerar “estórias cativantes”?
É assustador pensar que isso poderá acontecer, e a maior parte de nós achará que a simples ideia é um absurdo. Mas há alguns anos também achávamos impossível que um carro pudesse autoconduzir-se em estrada, e hoje estamos muito perto de ver isso acontecer.
O que lhe parece: os guionistas e escritores têm os dias contados? Deixe a sua opinião nos comentários abaixo.