Admito que é um título sensacionalista, destinado a atrair a sua atenção… mas infelizmente também é verdadeiro.
E é uma estória exemplar porque, no fim da sua leitura, espero que uma lição seja transmitida aos leitores, para seu benefício.
Mas, como todas as estórias, esta também deve começar pelo princípio.
E no princípio havia um guião chamado O Pedido, que escrevi há alguns anos atrás, e que foi há pouco tempo produzido, com um resultado que me deixou tremendamente satisfeito.
Antes desse sucesso houve, contudo, outros eventos um pouco menos nobres. Eventos com contornos daquilo que, num tom mais neutro, se poderia chamar de falta de ética e, em bom português, se designaria por trafulhice.
Esses eventos são particularmente tristes – e até preocupantes – porque envolvem estudantes universitários, jovens que estão a começar agora as suas carreiras de profissionais de audiovisual e de cinema.
Passo a explicar: antes da versão autorizada e oficial de O Pedido, produzida com meu consentimento pelo Coletivo Oriente-se, e que apresentei neste artigo, houve pelo menos três outras versões piratas, produzidas sem minha autorização a partir do mesmo guião.
Como é que isso aconteceu?
Esta situação só foi possível porque, em 2009, decidi publicar o guião original de O Pedido no site, para responder a alguns leitores que procuravam exemplos de um guião de curta-metragem.
É uma decisão de que não me arrependo.
O guião já foi baixado, até este momento, por 6632 pessoas, o que indica claramente que a sua publicação veio responder a uma necessidade de informação sentida por muita gente.
Na sequência dessa publicação fui contactado por vários leitores com pedidos de autorização para produzirem a curta-metragem. Na maior parte dos casos, senão em todos, eram estudantes que procuravam um bom guião (modéstia à parte) para os seus trabalhos universitários.
Recusei sempre esses pedidos, por duas razões: em primeiro lugar, porque achava que O Pedido poderia ter um dia uma produção profissional; mas também por considerar que estudantes de cinema devem ser capazes de escrever as suas próprias obras.
Acontece que houve outros estudantes que não acharam assim tão importante esse pequeno detalhe da autorização, apesar da minha Política de Direitos ser bem explícita.
Assim, em pelo menos três situações por mim identificadas, O Pedido foi produzido sem meu consentimento por estudantes de cursos superiores de audiovisual, no Brasil e em Portugal.
É grave. Ou melhor, grave, muito grave, e gravíssimo.
Um dos grupos, embora sem ter a minha autorização, ainda teve a decência mínima de me indicar como autor; outro grupo preferiu não referir qualquer autor; e um terceiro usurpou a autoria do guião, atribuindo-o a um dos participantes.
Que fique bem claro: além de falta de ética, e trafulhice, estes três casos configuram crime de violação do direito de autor, punível pela lei.
Não é por alguém ter disponibilizado uma obra para consulta na internet, para efeitos pedagógicos, que ela fica livre para pilhagem.
Mesmo que um autor ceda os direitos da sua exploração comercial a terceiros, à luz da propriedade intelectual a autoria continuará sempre a ser sua.
E muitos anos depois dele morrer a obra ainda vai continuar a ser dos seus herdeiros, e a estar protegida pela legislação dos direitos de autor.
Por todas estas razões, produzir uma obra alheia sem autorização do autor é crime.
Produzi-la sem indicar o nome do autor é crime, e cobardia.
E produzi-la atribuindo a sua autoria a outra pessoa é crime, cobardia, e uma baixeza intelectual.
O que é que eu devia ter feito?
Boa pergunta.
Se calhar, devia ter começado por ser menos inocente e não ter publicado O Pedido na net, essa selva onde às vezes parece que vigora a lei do vale-tudo.
Mas isso teria impedido o guião de chegar às mãos de milhares de leitores e estudantes.
O meu site pretende ser uma ferramenta para levar informação sobre a escrita audiovisual a todas as pessoas a quem essa informação não chega por outras vias.
Se começar a censurar-me, por medo de que uns poucos abusem, são todos os outros que saem prejudicados. E eu não quero que isso aconteça.
Este guião ajudou até ao momento quase 7000 pessoas, e poderá vir a ajudar ainda muitas mais. Continuo a achar que foi uma boa decisão publicá-lo.
Portanto, a via da auto-censura está posta de parte.
Sendo assim, o que é que podia ter feito?
Já que a via preventiva não funcionou, podia talvez ter optado pela via punitiva. Pensei várias vezes nisso.
Uma opção seria envolver advogados e ir atrás dos meliantes. Sei que outras pessoas menos tolerantes do que eu o teriam feito sem a menor hesitação. E até sou casado com uma advogada, por isso nem me seria muito difícil ir por aí.
Outra possibilidade teria sido contactar as direcções das escolas que estes jovens frequentam, o que também não seria complicado. Os filmes estão disponíveis no YouTube, com as suas fichas técnicas completas e os prevaricadores perfeitamente identificados.
(Também poderia procurá-los um a um e aplicar-lhes os meus extensos e letais conhecimentos de kung fu, krav maga, ninjitsu e dominó.)
Mas ao refletir (e fantasiar) sobre todos estes cenários cheguei sempre a uma mesma conclusão: o mal está feito. E, espero eu, foi feito por miúdos mais mal informados do que mal formados.
São miúdos que estão a começar – no pé errado – uma longa via sacra onde vão ter de passar por muitas dificuldades, mas em que ainda vão a tempo de aprender algumas coisas sobre a ética profissional e o comportamento correto em sociedade.
Ir atrás deles para os punir, por muito satisfatório que fosse para o meu ego, não traria bem maior ao mundo.
Por isso penso que será mais útil escrever este artigo e partilhá-lo com todos os leitores do site.
Sei que entre estes leitores estarão outros jovens que sonham trabalhar em cinema, e que serão eventualmente confrontados com questões semelhantes.
Espero que este artigo os ajude a tomar as decisões certas quando isso for importante.
Quem sabe até algum dos meus assaltantes venha a ler este artigo e possa aprender alguma coisa com ele.
(Sim – estou a falar para ti. Não olhes para trás, não está mais ninguém na sala…)
Por isso quero terminar o artigo deixando aqui uma pequena lista de conselhos de ética profissional para jovens produtores, usando um formato de eficácia milenarmente reconhecida.
O Decálogo do Jovem Produtor
- Amarás o Cinema acima de todas as Artes, reconhecendo que é obra de múltiplos autores, todos merecedores do teu respeito.
- Não invocarás em vão o nome de um autor se ele não te der expresso consentimento para isso.
- Santificarás o teu filme procedendo com correcção em todas as etapas, desde a pré-produção ao dia da estreia (e para além dela…).
- Respeitarás o direito de autor e a propriedade intelectual conforme as leis em vigor e as boas práticas universalmente aceites.
- Não causarás danos patrimoniais ou morais às pessoas que te derem a honra de trabalhar contigo.
- Guardarás castidade na tua palavra e nos compromissos que assumires.
- Não roubarás guiões, da internet ou de qualquer outro lugar, para produzir sem autorização dos seus autores.
- Não levantarás falsos testemunhos nem indicarás créditos indevidos nas fichas técnicas dos teus filmes.
- Não pedirás aos autores para trabalharem de graça.
- Não desejarás o guião do próximo, se não tiveres condições para o pagar justamente.
Notas finais
Demorei muito tempo a escrever este artigo. Já tenho conhecimento desta situação há mais de um ano, mas senti necessidade de ter algum distanciamento para não me envolver em demasia.
Mesmo assim, não sei se encontrei o tom certo, nem se este é o melhor caminho. Uma parte de mim continua a sentir que esses meninos e meninas precisavam de uma lição mais séria.
Mas também sei que a desonestidade intelectual, no longo prazo, conduz a becos sem saída. Se não aprenderem sozinhos esta lição, a vida se encarregará de lhes ensinar.
Uma nota muito importante: quero deixar bem claro que a curta-metragem O Pedido produzida pelo Coletivo Oriente-se do Rogério Nagai, e dirigida pelo Pablo Pinheiro, teve a minha autorização, colaboração e bênção. Obrigado, amigos!
Não vou divulgar as outras versões piratas, mas se o leitor tiver curiosidade facilmente as encontrará buscando O Pedido no YouTube. Vai ver que são muito mázinhas, o que confirma uma observação minha de longa data: a desonestidade anda geralmente de mãos dadas com a incompetência.
Consulta ao leitor
Termino com uma pergunta: além das vias acima referidas – justiça, escolas, kung fu e este artigo pedagógico – que outras opções me recomendaria para lidar com o tema?
Tendo em atenção que abomino cruzadas públicas e linchamentos virtuais nas redes sociais, por favor deixe a sua opinião nos comentários abaixo.
Não fazer nada. Como diria aquela menina que morreu com cancro, aceita e sorri.
Estudantes de cinema usarem guiões de terceiros sem autorização? Estudantes de cinema incapazes de escrever um guião original para um trabalho escolar? Larápios, preguiçosos e incompetentes; é a estes a quem compete formular o amanhã criativo?
Boa tarde. Tendo os recursos (e o tempo disponível) recorrer à justiça deve ser sempre a opção – a única opção. Não só como medida punitiva mas principalmente como medida preventiva. Uma medida que ajuda todos aqueles que escrevem e gostam de escrever e que forçosamente vêm na internet um meio de divulgação dos seus trabalhos e igualmente uma oportunidade de entrar no meio. A minha opinião é isso mesmo, uma mera opinião e não uma critica. Deixo também um obrigado por tornar disponível os seus guiões. Algo muito raro de acontecer em português. Principalmente em português de Portugal. Abraço!
Boa noite!
Neste assalto de que foi vítima, enquanto alguns alunos parecem ter claramente agido com ingenuidade sem terem a noção real do impacto da utilização de um guião sem autorização consentida do autor num trabalho “meramente” académico, outros já atuaram com evidente consciência menos bem-intencionada dos seus atos ao apoderarem-se da autoria de um guião que não lhes pertence.
Mas com ou sem conhecimento da lei e da ética, com ou sem intenção de profanar os direitos de terceiros, todos eles não deixaram de ter agido incorretamente e isto faz-me pensar que algo deverá ser feito a montante. E, nesse sentido, poderá valer a pena contactar as escolas para informar os professores – não com o intuito de punir alguém (afinal, todos têm o direito de errar) mas, sim, de dar a conhecer àqueles que têm nas suas mãos a exigente tarefa de formar indivíduos profissionais e socialmente integrados que a mensagem não está a passar na sua plenitude. E, como tal, é importante refletir sobre este tema e quiçá apostar mais na qualidade das disciplinas de “Direito” e de “Ética” para que não restem dúvidas quanto à forma correta de agir, mesmo que seja num trabalho “meramente” académico. E talvez até as manobras de chico-espertice, manifestadas na preguiçosa e intolerável arrogação de falsas autorias, possam ser travadas no ponto de origem porque todos queremos uma sociedade mais justa, onde o respeito pelo outro não seja uma mera obrigação mas uma condição essencial para se Ser Pessoa, tão natural como respirar.
Obrigada por disponibilizar os seus guiões e fica, desde já, o meu apelo para que nunca deixe de o fazer, mesmo depois de ter vivido uma experiência como esta. A sua partilha é uma importante contribuição para catapultar sonhos que contam histórias e que podem fazer toda a diferença no metro quadrado de alguém.
Obrigado.