Neste artigo concluímos a entrevista com o mestre Aguinaldo Silva, mergulhando um pouco mais a fundo nas responsabilidades de cada parte envolvida no processo de escrita de uma telenovela.
Aguinaldo Silva é um dos mais conhecidos e premiados autores de novelas no ativo, tendo escrito as obras de maior audiência no Brasil na década de 1980, Roque Santeiro, na década de 2000, Senhora do Destino, e na década de 2010, Fina Estampa.
Os Brindes
Em cada um destes artigos haverá um bónus, da autoria do próprio Aguinaldo Silva:
- a sinopse completa da premiada novela Império (quando ainda se chamava Falso Brilhante), já entregue no 1º artigo;
- uma escaleta da novela Fina Estampa, entregue no final deste 2º artigo;
- e, no 3º artigo, um capítulo completo dessa mesma Fina Estampa.
Entrevista (2ª parte)
João Nunes/Felipe Petruccelli: Um autor de novelas pode se dar ao luxo de ser escravo da inspiração?
Aguinaldo Silva: Inspiração é coisa de poeta – por isso existem tantos. O trabalho do roteiro, assim como o da literatura, exige, além do talento, que varia de acordo com a capacidade de cada um, muito sangue, suor e lágrimas, ou seja: “ó mar salgado, quanto de tuas lágrimas são lágrimas de roteiristas?”
A certa altura virou moda por aqui [Brasil] “denunciar” o salário dos novelistas, ou seja, dizer que eles ganhavam demais e isso era injusto. Essas pessoas ignoram o fato de que a Globo não paga só pelo trabalho do roteirista, mas pela sua exclusividade absoluta.
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JN/FP: Houve uma época em que os autores podiam trabalhar, entre colaboradores e pesquisadores, com grandes equipas. Contudo, de há uns tempos para cá, esse número ficou bastante restrito. No seu caso, em específico, isso prejudicou a dinâmica de trabalho?
AS: Não. Sempre trabalhei com pequenas equipes, porém formadas por pessoas em cuja capacidade e talento confio. Na verdade, os que escolho não se tornam apenas meus colaboradores, mas também meus amigos.
JN/FP: De um modo geral, os autores costumam dar liberdade para que os seus colaboradores façam sugestões sobre os rumos da trama, ou a função deles fica restrita ao desenvolvimento das escaletas?
AS: Sou meio ditador no trabalho, mas apenas porque acho que ele tem de ter um líder. Nas reuniões de trama incentivo meus colaboradores a dar sugestões, mas aceitá-las ou não é decisão apenas minha. Quanto às escaletas, não abro mão de fazê-las sozinho. Os colaboradores já as recebem prontas e com a indicação das cenas que vão escrever.
JN/FP: Nos casos em que há coautoria, existe um autor principal a quem sempre cabe a última palavra, ou ambos decidem tudo em comum acordo?
AS: A coautoria é sempre muito complicada, porque é preciso que os parceiros tenham confiança absoluta um no outro e que, durante o trabalho, renunciem aos próprios egos.
Nas vezes em que trabalhei assim, ou fui o autor principal – e nesse caso a última palavra era minha -, ou, apenas no caso de Vale Tudo, Gilberto Braga tinha esse direito, mas sempre sem deixar de vista que, no fim de contas, éramos uma equipe.
JN/FP: Como são distribuídas as funções e as responsabilidades dentro da sua equipa?
AS: É simples. Depois da reunião de tramas alguém indicado por mim faz o resumo de tudo que foi dito. A partir daí eu decido o que vai entrar e quanto, e monto as escaletas.
Daí distribuo as cenas – quem vai escrever o quê -, todos fazem isso e mandam tudo para o colaborador encarregado de montar o capítulo.
Este faz uma primeira revisão e o manda para mim, que faço a revisão final e dou o meu tom para que fique tudo uniforme.
Neste processo muitas vezes cenas são reescritas. Mas os colaboradores entendem que isso é um direito do autor responsável pela novela.
JN/FP: Falando especificamente das escaletas, há algum critério na distribuição delas? Por exemplo: “O colaborador X é bom dialoguista, então a revisão dos diálogos fica por conta dele”, ou ainda: “Já o colaborador Y desenvolve melhor as cenas de ação e manda muito bem nas cenas de ‘barraco’, vou deixar que escreva todas as cenas de briga”.
AS: Se o autor principal dá sempre as mesmas tramas para os colaboradores, a tendência é que eles se desinteressem das outras. Então, eu não nomeio ninguém para cuidar dessa ou daquela trama. A cada semana, os colaboradores só sabem que trama vão escrever quando recebem as escaletas.
JN/FP: O Aguinaldo e a sua equipa trabalham juntos num mesmo espaço? Se sim, como é esse espaço? Se não, como vocês interagem?
AS: No Brasil, cada membro de uma equipe de roteiristas escreve em sua própria casa. Antes, quando não havia computador nem celular e as comunicações falhavam era um drama. Era um trabalho insano, hoje bem mais facilitado pelo progresso. Mesmo assim, naquela época foram escritas as melhores novelas.
JN/FP: O modelo de sala de roteiristas, muito utilizado no desenvolvimento de séries, funcionaria na escrita de novelas?
AS: Sim. Eu trabalhei numa sala de roteiristas, aí em Portugal, durante a produção de Laços de Sangue, da qual fui supervisor. Esse método é bem mais dinâmico, sem dúvida.
Mas é preciso uma aplicação – ou concentração – que, no Brasil, acho que os roteiristas não têm. Aqui o líder do grupo tem que controlar os outros o tempo todo, do contrário a reunião de trabalho vira um patacoada.
Além disso o maior inimigo desse trabalho de bastidores – a elaboração do texto da novela – é o disse-me-disse, a fofoca. Às vezes é preciso certo rigor para manter a situação sob controle.
JN/FP: A maioria dos autores possui hábitos notívagos e não segue um modus operandi, mas parece que você se impõe uma disciplina bem mais rígida. Poderia nos descrever como é a sua rotina de trabalho?
AS: Quando estou escrevendo novelas acordo às 5h30m, às 7h já estou no computador, primeiro turno até 11h30m, pausa para o lanche e o sono da tarde – de 13 às 15h -, volta ao trabalho até 18h30, pausa para fazer meu próprio jantar (não abro mão disso), ver a novela no horário, depois ligar para o diretor e falar sobre o capítulo do dia, cama, uma hora de leitura até que à meia-noite apago.
Isso, dia após dia, sem falhar um só… E rezando para não adoecer porque, mesmo doente, terei que continuar seguindo essa rotina.
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JN/FP: Quanto tempo demora todo o processo de escrita, desde a sua primeira ideia até que escreva a palavra “FIM” no último script?
AS: Em média dois anos.
JN/FP: E cada etapa? Quantos scripts devem ser apresentados por semana, e qual seria a maior dificuldade enfrentada por um autor durante este processo?
AS: Imagine um fábrica de pizzas: cada capítulo é uma delas. O autor tem que produzir seis por semana, a produção tem que produzir seis por semana e a emissora tem que exibir seis por semana. Isso durante no mínimo 60 semanas. Simples assim.
JN/FP: Há tempo para rescritas? Quem as faz?
Correções de percurso são importantes demais para que o autor principal as delegue aos colaboradores. Aconteça o que acontecer na novela cuja equipe lidera a responsabilidade é sempre dele.
JN/FP: Durante décadas a Globo usou um modelo de macro (template) do Word para que os autores escrevessem os seus guiões. De há uns anos para cá, passou a usar uma versão do Final Draft especialmente desenvolvida para a emissora. Como foi essa transição – sentiu alguma dificuldade? E qual desses dois programas mais lhe agrada?
AS: Seja qual for o modelo o que importa é que sempre fui capaz de digitar mais de 60 palavras por minuto se for o caso.
JN/FP: Você já ganhou dois Emmys de Melhor Novela, o que o credencia como um dos melhores autores do mundo.
Do alto dessa autoridade, que conselhos daria a quem pretende tornar-se um escritor de novelas? Afinal, existe um caminho das pedras? E o que conta mais, resiliência ou sorte?
AS: Não sou de dar conselhos, mas daria um: vivam!
Adquiram a experiência que só quem nos dá é a vida. Se você não viveu e conviveu, não aprendeu. Por mais que seja ficcionista lhe faltará a base para produzir histórias que pareçam reais, ou mais reais até que a própria vida.
JN/FP: Para concluir, muito obrigado pela sua boa vontade em participar deste interrogatório, digo, entrevista (risos). Algo mais que gostaria de acrescentar?
AS: Sim: muito obrigado.
A 3ª parte desta série de artigos será publicada neste site na próxima semana.
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Luiz Felipe Petruccelli, carioca, é um historiador, pesquisador, professor e dramaturgo. Entre as suas obras contam-se as peças Faces e Mercado Amoroso, e a longa-metragem Gosto de Fel, em fase de finalização, escrita em coautoria com Beto Besant. Felipe também colaborou na sinopse da novela O Sétimo Guardião, de Aguinaldo Silva, exibida pela Rede Globo de Televisão, e escreveu diversos pilotos de séries de ficção. É leitor de longa data deste blogue.