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Luís Campos explica pausa do Festival Guiões

    Há vários anos que acompanho e ajudo a divulgar as sucessivas edições do Festival Guiões, um dos poucos eventos que se dedicam à promoção da escrita audiovisual no espaço lusófono. Foi por isso com choque que recebi a notícia de que o Guiões iria entrar num período de pausa sem data marcada para o seu regresso.

    O meu espanto e preocupação, seguramente partilhados por muitos guionistas/roteiristas de língua portuguesa, levou-me a contatar de imediato o Luís Campos, criador, mentor e promotor do Festival durante a sua década de atividade.

    O Luís, que acompanho desde antes do Guiões como guionista, realizador e produtor, teve a simpatia de responder sem demoras às questões que lhe coloquei. Espero que as suas respostas ajudem a esclarecer os motivos da sua decisão, que deve ter sido das mais difíceis que tomou.

    O crónico problema de sustentabilidade chegou a um ponto que não permite continuidade do atual modelo. – Luís Campos

    Entrevista com o LuÍs Campos

    João Nunes: Qual o balanço que fazes de uma década de atividade do Guiões?

    Luís Campos: O balanço é globalmente positivo, foram 10 edições que permitiram implementar atividades e oportunidades muito significativas para quem procura escrever cinema e audiovisual lusófono, dar a conhecer novos talentos e ajudar a lançar excelentes profissionais no ramo.

    O festival procurou sempre conjugar a competição de guião com iniciativas de conexão com a indústria internacional, mas também mantendo um forte compromisso com atividades de cariz formativo, sempre com o objetivo de contribuir para o aprimoramento da escrita de cinema e audiovisual lusófono e para a internacionalização da criatividade em língua portuguesa. Foram mais de 1350 candidaturas recebidas em 10 anos de festival, o que perfaz uma média superior a 135 guiões/projetos recebidos em cada edição.

    Se por um lado estes números demonstram uma enorme vitalidade na criação lusófona, por outro também são reveladores de que existe muito talento à espera de encontrar a merecida oportunidade para iniciar caminho profissional num meio que é muito fechado ao surgimento de novas vozes. Dos vários guiões que foram distinguidos ou que passaram pelo festival, alguns foram posteriormente produzidos e premiados nos principais festivais do mundo, o que é indicador da qualidade das obras recebidos e promovidas no âmbito do GUIÕES.

    Chegamos ao fim da primeira década com a convicção de que o GUIÕES deu um importante contributo para o desenvolvimento do cinema e audiovisual lusófono, mas também cientes que ainda estará muito por se fazer no sentido da representatividade geográfica e na capacitação do setor.

    JN: Quais as principais dificuldades que enfrentaste durante esse percurso?

    LC: O festival nasceu de uma iniciativa pessoal e as primeiras quatro edições não contaram com qualquer apoio financeiro, sendo organizadas num registo totalmente voluntário e muito familiar. A sua tipologia muito específica não permitia concorrer às principais linhas de apoio público nacional (se por um lado era considerado um festival de cinema e não se enquadrava nas linhas da DG Artes, por outro não era um festival de exibição/competição de filmes e portanto não tinha enquadramento no apoio a festivais do Instituto do Cinema e Audiovisual).

    O setor privado, que foi recorrentemente consultado para patrocínios e apoios, nunca demonstrou interesse na iniciativa por considerá-la de “nicho” e distante dos objetivos de comunicação das respetivas marcas. Algumas parcerias estratégicas e apoios não financeiros permitiram a existência do festival nessa sua primeira vida.

    A partir da quinta edição, e perante a criação da linha de apoio Ad-Hoc do Instituto do Cinema e Audiovisual, tornou-se possível concorrer a apoios financeiros públicos e o festival teve a felicidade de obter apoios anuais nesse concurso do ICA para todas as edições subsequentes. Ainda que o montante de apoio obtido não tenha permitido atingir o objetivo de profissionalização da estrutura organizadora do GUIÕES, tornou possível a realização de novas edições em serviços mínimos com algumas das atividades desejadas e propostas.

    Diria que a principal dificuldade enfrentada nesta década foi uma dificuldade de escala. Não nos foi possível crescer de forma sustentada como idealizámos e isso acaba por influenciar tudo aquilo que é possível fazer quando o festival continua a ser organizado de forma voluntária e em paralelo às nossas vidas pessoais/profissionais.

    A pouca representatividade territorial também deixa um amargo de boca, uma vez que a lusofonia não é apenas constituída pelo Brasil e Portugal (proveniência da larga maioria das candidaturas recebidas) e nos foi sempre muito difícil conseguir difundir e promover as atividades do festival pelos demais países lusófonos. Confesso que também foi sempre difícil apelar ao interesse e participação de guionistas e produtoras de Portugal, apesar do festival acontecer em solo nacional desde a sua criação (São João da Madeira na sua primeira edição e Lisboa a partir da segunda edição, mudança que foi feita precisamente para estar mais próximo da maioria dos potenciais profissionais portugueses interessados).

    O festival foi sempre desenvolvido com muito cuidado e carinho pelo ofício da escrita e da produção audiovisual, mas infelizmente não conseguiu gerar tanta atractividade dos profissionais nacionais como de outras geografias.

    JN: E os principais motivos de satisfação?

    LC: O contributo positivo que o festival gerou na vida de guionistas lusófonos, com inúmeras histórias de sucesso, é um grande motivo de satisfação. Os projetos que o festival ajudou a revelar e conectar com produtoras lusófonas e internacionais, que posteriormente conseguiram obter financiamento e ser produzidos, confere sempre um sentimento de missão cumprida.

    O amplo reconhecimento que o festival conquistou no meio, sobretudo no território Brasileiro, é um forte motivo de orgulho tendo em conta a história do festival e a forma subfinanciada com que sempre persistiu. Conquistar o posicionamento do festival no panorama da indústria internacional, com cada vez mais representantes do setor interessados em descobrir o catálogo anual do GUIÕES e acompanhar as atividades do festival (processo no qual a parceria com o CIEC – Centro de Informação do Europa Criativa e o AICEP – Portugal Global foram determinantes), também é algo muito satisfatório e elucidativo do potencial que ainda estará por cumprir através do festival.

    As várias parcerias desenvolvidas ao longo desta década também permitiram fortalecer laços e estimular sinergias positivas para o crescimento do setor, nomeadamente com festivais como o MOTELX, a MONSTRA, o FESTIN.

    Sinto que quem se cruzou com o festival ganhou um carinho especial pelo conceito e pelas atividades propostas, o que me deixa muito feliz a título pessoal. O GUIÕES é uma espécie de família que foi sempre crescendo de forma orgânica porque as pessoas acreditam na força das histórias e na importância que a narrativa tem para o progresso da nossa sociedade e para o contínuo desenvolvimento da nossa espécie.

    As vencedoras, finalistas e jurados presentes no Festival em 2017 (o Luís é o primeiro a contar da direita, eu sou o quarto).

    JN: Que motivos te levaram a decidir por esta pausa no Guiões?

    LC: O crónico problema de sustentabilidade chegou a um ponto que não permite continuidade do atual modelo. A alteração de circunstâncias nas nossas vidas pessoais (eu e a Ana Almeida, que somos um casal e responsáveis pela produtora Matiné, fomos pais recentemente), o que exigiu uma redefinição de prioridades e uma gestão mais rigorosa do nosso tempo e do nosso investimento, impossibilitando a continuidade da realização do festival de forma voluntária.

    A necessidade de dedicação a outros projetos profissionais que viabilizam a sustentabilidade da empresa (estamos neste momento a finalizar uma longa-metragem e a preparar uma série que iremos filmar em breve) forçou este interregno do GUIÕES.

    No fundo é uma decisão semelhante às que no passado já nos levaram a forçar pausas noutras atividades promovidas por nós como o PLOT Script Lab ou o DRAMA.pt. Acreditamos muito na força e no potencial destas iniciativas, mas infelizmente não temos meios para conseguir manter tudo de pé como gostaríamos e na vida por vezes o racional sobrepõe-se ao emocional e precisamos tomar decisões que não são fáceis.

    Também sentimos que o conceito do GUIÕES precisa de se reformular e reinventar para continuar a crescer e ser cada vez benéfico e atrativo para o setor, para agregar mais e ser mais justo em termos de representatividade e oportunidades de visibilidade geradas. Uma pausa é sobretudo uma oportunidade para pensar em como evoluir.

    JN: Tens algum calendário ideal para a retoma das atividades?

    LC: Não sabemos ainda quando voltaremos, mas tentaremos regressar mais fortes e mais abrangentes. Talvez passe a ser um evento de periodicidade bianual ou que apenas regresse daqui por alguns anos, noutro contexto e de outra forma. É uma pausa por tempo indeterminado.

    JN: O que poderemos sonhar para um Festival Guiões 2.0?

    LC: Que possa continuar a ser uma plataforma de promoção de talento, fomento de novas conexões e oportunidades de negócio e de celebração da criatividade lusófona. Com novas ideias, propostas e desafios, pensando sempre no futuro e no progresso. Que continue a impactar muitas vidas pela positiva e que continue a estimular novas vozes e o surgimento de novas narrativas.

    JN: Obrigado, Luis. Desejo-te muita sorte e sucesso na produtora e muitas felicidades para a tua família. E faço votos para que o Guiões regresse mais depressa do que imaginas, e ainda melhor, com mais apoios, iniciativas, concorrentes e participantes.

    Comunicado do Festival Guiões

    Até breve

    Após uma impactante primeira década (2014-2024) de celebração da diversidade narrativa da lusofonia, o GUIÕES iniciou uma pausa nas suas atividades por tempo indeterminado.

    Por seguirmos com a convicção da relevância dos objetivos do festival e por acreditarmos que o GUIÕES ainda está longe de atingir o seu pleno potencial, tomámos a decisão de fazer um interregno para melhor repensar os caminhos futuros do festival e das formas que estarão ao nosso alcance para melhor contribuir para o contínuo desenvolvimento do cinema e do audiovisual de Língua Portuguesa. Não sabemos quando será o regresso do GUIÕES, mas seguramente voltará mais forte.

    Obrigado a todas as pessoas e entidades que têm apoiado, acompanhado, participado e promovido as atividades propostas pelo GUIÕES. O espaço que o GUIÕES já ocupa nos corações dxs guionistas lusófonos é muito reconfortante e um grande combustível para continuarmos esta missão.

    Tem sido uma história muito bonita de escrever, com muitas páginas ainda por preencher.

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