Foi revelada recentemente a imagem da escaleta que o guionista Paul Schrader usou durante a escrita do filme A Costa dos Mosquitos. É uma pequena janela aberta sobre o processo criativo de um dos melhores guionistas americanos de sempre, e um favorito pessoal.
Durante o processo de escrita os guionistas produzem e usam múltiplos tipos de documentos, como as loglines, sinopses e tratamentos.
Os mais úteis, para mim, são os outlines, ou escaletas, em português.
Como já escrevi antes, há dois tipos de escritores, que eu designo de jardineiros e paisagistas. Aqueles que, como eu, pendem mais para o campo dos paisagistas, têm de ter uma ideia muito clara do resultado pretendido, e do caminho para lá chegar, antes de passar à escrita do guião propriamente dito.
A escaleta é a ferramenta mais indispensável para isso, na minha opinião.
Já tentei escrever sem ter antes feito uma escaleta, mas nunca deu bom resultado. Ao fim de algum tempo sinto-me perdido e, inevitavelmente, volto atrás e acabo sempre por fazer algum tipo de outline antes de poder continuar.
A escaleta de A Costa dos Mosquitos
Todos sabemos como é difícil ter acesso aos documentos originais de trabalho de guionistas profissionais, que nos podem mostrar um pouco como as suas mentes criativas passam à ação.
É por isso muito curioso, e revelador, analisar a escaleta que Schrader usou durante a escrita de uma das versões do guião de A Costa dos Mosquitos.

Algumas conclusões saltam à vista:
- É críptica – É praticamente impossível entender seja o que for pela leitura das linhas (“Semper savages…”?), o que é absolutamente normal. A escaleta é uma ferramenta individual e íntima, que serve apenas as necessidades do seu autor. É um auxiliar de memória. Desde que o autor entenda o que lá está escrito, a sua função está cumprida.
- É escrita à mão – É possível que hoje o autor já use alternativas digitais, que não eram acessíveis nos anos 80, quando escreveu este filme, mas também é possível que não. Eu, por exemplo, oscilo entre as duas opções. As versões digitais, como o Notion, online, ou o Scrivener, têm a vantagem da flexibilidade na fase de planeamento da estória. Mas nada substitui uma folha de papel escrita que pode estar sempre à mão e ser riscada e anotada com incomparável facilidade.
- Usa duas cores – A caneta azul foi, possivelmente, usada na elaboração da escaleta; a vermelha durante a sua utilização. Usar cores distintas com significados diferentes acrescenta uma nova camada de informação.
- Escreve e risca – Percebe-se que Schrader foi rasurando as linhas da escaleta à medida que ia escrevendo as cenas. Percebo-o perfeitamente; poucas coisas são tão satisfatórias como a sensação de marcar como terminada a escrita de uma cena. E num processo tão duro e complicado como é a escrita de um guião, essas pequenas fontes de satisfação são absolutamente essenciais para manter a motivação.
- Numeração – Normalmente não é necessário fazer a numeração de uma escaleta. No outline de Schrader vemos em algumas linhas números, sequenciais mas com saltos (94, 96, 97, 99…), que parecem ser uma numeração, mas não é clara a forma como ele os usa.
- Dimensão das cenas – Parece também que o autor indica, com algum detalhe, a dimensão das cenas, por exemplo 2 1/2 (duas páginas e meio) ou 1 1/4 (uma página e um quarto). Como em alguns pontos há duas colunas com esses números, uma escrita a azul e outra a vermelho, e os valores nem sempre coincidem, é possível que ele indicasse a azul o objetivo de escrita, e a vermelho a contagem final real.
Outras escaletas de Paul Schrader
Uma busca na web permite encontrar imagens de outros outlines de Paul Schrader, para os filmes American Gigolo, Raging Bull e A Última Tentação de Cristo. São a prova de que ele é, realmente, um adepto da escaleta como ferramenta de trabalho.
Provam, ainda mais, que a escaleta não é, como tantos acusam, uma forma de limitar a criatividade dos autores.
Se um argumentista como Paul Schrader, com o currículo invejável que ele tem, a usa com tanta consistência, é porque ela pode ser muito útil – desde que seja adequada à personalidade de quem a usa.



Conclusão
Autores tão celebrados como Paul Schrader usam a escaleta como ferramenta de preparação da escrita.
E você, caro leitor: costuma usar escaletas? Qual é a sua avaliação dessa ferramenta? Tem alguma dica para partilhar?
Deixe a sua opinião nos comentários abaixo.
Via => NoFilmSchool
Caro João Nunes
Creio ser a escaleta um instrumento imprescindível, e gostaria de partilhar consigo a forma personalíssima que adoto, utilizando os quadros do programa “Powerpoint” para organizar as cenas a partir das primeiras ideias que vão para o papel na forma de argumento. De um para outro, alimentam-se mutuamente, até que a “paisagem” esteja clara o suficiente para iniciar o tratamento.
Grande Abraço,
Angelo Dourado (Um de teus muitos admiradores no Brasil)
Viva Ângelo, o PP parece-me ser uma possibilidade muito interessante. Consegue fazê-lo funcionar de uma forma prática e intuitiva? Como é o seu processo?