Uma das regras mais universais e menos disputadas da escrita de guiões é que têm de ser escritos na 3ª pessoa do presente do indicativo. Indisputada, pelo menos até o argumentista e realizador Christopher Nolan ter uma palavra a dizer.
Segundo os testemunhos dos atores que trabalharam com ele no seu filme mais recente, o magnífico Oppenheimer, Nolan decidiu escrever esse guião na primeira pessoa.
Numa entrevista à Collider, Cillian Murphy, que interpreta o protagonista, explica a diferença:
Por exemplo, ele não diria, ‘Oppenheimer entra na sala e fala com Strauss.’ Ele diria, ‘Entro na sala e falo com Strauss.’ Foi assim que foi escrito.
Uma decisão intencional
A ideia de quebrar esta “regra” do formato dos guiões surgiu naturalmente a Christopher Nolan logo no início do processo de escrita. Ao fim de algumas páginas, sentiu que o formato tradicional parecia errado para o que pretendia, e resolveu testar a escrita na primeira pessoa.
O próprio autor explica a razão numa entrevista à revista Empire.
Na realidade escrevi na primeira pessoa, coisa que nunca tinha feito antes. Nem sei se alguém o fez antes. Mas a questão é que, nas cenas coloridas, que são o essencial do filme, tudo é contado do ponto de vista de Oppenheimer. É como se estivéssemos a olhar através dos seus olhos.
Mesmo assim, Christopher Nolan não estava seguro do resultado. Só depois de mostrar essas páginas de teste ao seu irmão guionista Jonathan Nolan, com quem já escreveu vários filmes, é que se sentiu suficientemente confiante para continuar a escrita nessa perspectiva original.
O autor confessa, noutra entrevista à revista Variety, que mesmo as descrições de personagens, de lugares e de ação foram escritas do ponto de vista de Oppenheimer.
É uma coisa estranha de fazer, mas era um alerta para mim de como queria fazer o filme. Era um alerta para todas as pessoas envolvidas no projecto, ‘Okay, este é o ponto de vista de cada cena.’
Na realidade, não foi Christopher Nolan o primeiro a fazê-lo.
Com uma pesquisa rápida descobri referências a pelo menos dois guiões, Passengers de G.J. Pruss, e A Many Splintered Thing de Chris Shafer & Paul Vicknair, que usaram a mesma técnica há já alguns anos. É provável que haja mais.
O que interessa, no entanto, é que este é, aparentemente, o primeiro guião escrito desta forma a ser produzido. E logo num dos filmes mais esperados e falados do ano.
Uma obra impressionante
Oppenheimer é uma obra impressionante em mais do que um sentido.
As suas três horas de duração distilam a complexidade da vida de um dos maiores cientistas do século XX, J. Robert Oppenheimer, o “pai da bomba atómica”, conforme descrita na biografia de Martin Sherwin e Kai Bird, American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer.
Filmado com câmaras Imax de 70mm e destinado a ser visto preferencialmente nos gigantescos ecrãs desse tipo de salas, em todo o seu esplendor de imagem e som, Oppenheimer é, para mim, um dos principais candidatos a ser nomeado num enorme número de categorias nos próximos Oscares.
Não me espantará nada se ele estiver entre as escolhas para Melhor Filme, Melhor Argumento Adaptado, Melhor Realização, Ator num Papel Principal, Ator e Atriz em Papéis de Suporte, e quase todas as categorias técnicas, como Fotografia, Edição, Desenho de Som, etc.
Se vai ganhar ou não, isso só o tempo o dirá. A Academia de Hollywood é como aqueles bandos de estorninhos que vemos a voar, movendo-se sempre com grande sincronia mas dando mergulhos e curvas nas direções mais inesperadas.
Quebrar regras
Christopher Nolan tem caracterizado a sua carreira de argumentista pela experimentação com estruturas narrativas pouco convencionais.
O seu primeiro filme de sucesso, Memento, era contado de trás para diante. A primeira cena narrava o fim da estória, e com cada nova sequência regressávamos um passo atrás no tempo.
Dunkirk também experimentava com o tempo, intercalando três estórias que se desenrolavam em períodos de duração diferente (a do soldado em alguns dias; a dos pescadores num dia; e a do piloto em pouco mais de uma hora) mas culminavam no mesmo momento.
Outros dos seus sucessos, como Interestelar ou Inception também jogavam com as cronologias da estória.
Não é pois de surpreender que Oppenheimer recorra igualmente a uma estrutura narrativa alternativa.
O filme está centrado no papel de J. Robert Oppenheimer no Projeto Manhattan e na criação do laboratório de Los Alamos, onde foi construída e testada a primeira bomba atómica. A explosão dessa primeira bomba de teste pode até, de certa maneira, ser considerada o clímax do filme.
A estória, no entanto, organiza-se à volta de duas audiências que acontecem anos depois desses eventos: uma do próprio Oppenheimer, com vista à avaliação dos seus privilégios de segurança nacional; e uma audiência no Senado do seu principal adversário, o senador Lewis Strauss, brilhantemente interpretado por Robert Downey Jr, onde é denunciada a responsabilidade deste na revogação dos referidos privilégios.
É através de flashbacks motivados pelo interrogatório de um e outro homem que a estória de Oppenheimer se vai revelando aos poucos, num puzzle complexo onde se cruzam dezenas de figuras secundárias, algumas delas desconhecidas do grande público e outras tão famosas como o físico Einstein ou o presidente Truman.
Esta estrutura é semelhante à que Aaron Sorkin escolheu para escrever A Rede Social e funciona igualmente bem aqui. Combinada com a opção de escrever as descrições na primeira pessoa, fazem de Oppenheimer um guião que estou ansioso por ler.
Infelizmente isso não é possível neste momento. Ao contrário dos restantes guiões de Christopher Nolan, o roteiro de Oppenheimer ainda não está disponível na rede. Mas acredito que, com a aproximação da próxima temporada dos Óscares, o estúdio Universal irá com certeza colocá-lo a circular como parte da sua campanha de relações públicas, como acontece todos os anos.
Conclusão
Robert Downey Jr. refere outro aspecto pouco convencional do guião de Oppenheimer: as cópias físicas eram impressas com tinta preta em papel encarnado. Em jeito de piada, o ator atribui a essa combinação poderes hipnóticos que Nolan usaria para atrair atores para o seu filme.
A explicação para a quebra de mais essa “regra” é, contudo, prosaica: tinta preta em papel vermelho dificultam as fotocópias, ajudando a manter a confidencialidade do projeto.
Já quanto à opção de quebrar a regra da terceira pessoa, temos de ter em conta que ela tem um preço. O próprio Cillian Murphy confessa que demorou um pouco a perceber o que era aquilo, para logo tomar consciência da enorme responsabilidade que lhe ia caber como protagonista.
Se o nosso nome for Christopher Nolan, tivermos um registo de sucesso atrás de sucesso, e estivermos a escrever um guião que nós mesmos vamos dirigir, esse preço é mais fácil de pagar. Caso contrário, devemos ponderar muito bem os prós e os contras de fugir a convenções tão bem estabelecidas como essa.
Há razões, históricas e práticas, para os guiões terem um determinado formato convencionado. Podemos, evidentemente, escolher ignorar algumas dessas convenções; mas devemos ser muito intencionais, claros e honestos com nós mesmos sobre as vantagens e desvantagens que isso pode acarretar.
Sobretudo, devemos evitar o que Robert Downey Jr., com alguma ironia, comentava numa entrevista: “Acho que agora todos os guiões vão ser escritos assim.”
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