Boas, sou um fanático pelo cinema de João César Monteiro e escrevo-lhe porque tenho uma dúvida. Como faço para descrever no guião a forma como quero que sejam filmados os planos? Numa cena de um filme a câmara muda constantemente de ângulo, mostra as personagens de lado, de frente, as duas só numa, etc. Cabe ao guionista descrever isso ou é uma função do realizador?
André
Olá André,
quanto à questão concreta que me coloca, a resposta é muito simples: é ao realizador (auxiliado pelo diretor de fotografia) que compete escolher os planos e ângulos necessários para contar cinematograficamente uma determinada cena. Colocados perante o mesmo trecho de um guião, João César Monteiro, Wim Wenders e Steven Spielberg escolheriam formas completamente diferentes de o interpretar visualmente, e nenhuma seria, de per si, melhor do que as outras. Seriam, isso sim, as mais adequadas ao estilo de cada um desses realizadores.
Isso não é contraditório com a necessidade dos argumentistas escreverem visualmente. O cinema é uma arte audiovisual, e essas duas componentes – som e imagem – devem começar a ser pensadas desde a fase da escrita do guião. Mas escrever visualmente não é o mesmo que tentar substituir-se ao realizador. Por exemplo, no final de "Sideways", o protagonista Miles decide abrir e beber sozinho, numa hamburgeria manhosa, a preciosa garrafa de vinho que tinha reservada para uma ocasião especial. Esta sua acção, contada sem palavras, sem diálogos, sem explicações, diz-nos "visualmente" tudo o que precisamos saber sobre o impacto que os eventos do filme tiveram em Miles. Ou seja, que a vida, como dizia John Lennon, "é o que acontece no intervalo dos nossos planos".
Isto não quer dizer que os guionistas não possam, em determinado momento, chamar a atenção para um determinado aspecto, pisando no território do realizador. Por exemplo, é frequente ver em guiões linhas como esta:
- CLOSE UP – A PONTA DA NAVALHA GRAVA AS INICIAIS JN.
Mas nada garante que o realizador vá respeitar essa indicação. Sei de alguns que, só por teimosia, fariam questão em arranjar outra solução para a cena, só para não "obedecer" ao guionista.
Pessoalmente acho mais útil e sensato descrever a cena de forma a que o realizador chegue naturalmente à solução de realização que nos parece mais adequada. Pegando no exemplo anterior, a nova versão poderia ser:
- João abre a navalha e entalha algo no tampo da secretária. São as iniciais JN.
É provável que um realizador, ao ler este trecho do guião, chegasse à conclusão que o close-up seria o plano certo para o ilustrar. Por isso o meu conselho é que os guionistas devem concentrar-se na escrita. Escrever um bom guião já é suficientemente difícil sem ter que brincar aos realizadores. Deixe para César (ou Wim, ou Steven) o que é de César.
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