O filme The Matrix , de 1998, é uma das melhores obras de ficção científica de sempre, cheio de momentos surpreendentes e inovadores. O visual icónico dos seus protagonistas, os grafismos esverdeados sobre fundos negros, os recursos técnicos inéditos como o “bullet time“, ou a ideia de que vivemos dentro de uma realidade virtual – a Matrix que lhe dá o nome – ajudaram a consolidá-lo como uma referência inescapável não apenas no universo cyberpunk mas no imaginário contemporâneo.
No entanto, nenhuma cena deste grande filme se entrincheirou tanto na cultura pop como a que escolhi para o artigo de hoje. Pílula vermelha ou pílula azul? É aqui que o meme nasce.
Escrito por Lana and Lilly Wachowski (que na altura se chamavam Larry and Andy Wachowski), o guião de The Matrix é um daqueles textos que é obrigatório ler para perceber os mecanismos do cinema comercial de Hollywood. Focado, dinâmico, sempre em progressão, cheio de conflito, pejado de grandes cenas e momentos surpreendentes, é um mecanismo dramático quase perfeito. É também um excelente exemplo da aplicação da Viagem do Herói ao cinema .

A cena que selecionei para este artigo dos Grandes Diálogos corresponde precisamente a um dos momentos chave dessa popular estrutura dramática. Depois de encontrar o Mentor (Morpheus), o protagonista Neo é convidado a fazer uma escolha: atravessar o primeiro limiar para o “mundo extraordinário” ou regressar ao “mundo normal”. Como sempre, a tradução, com todas as suas deficiências e limitações, é da minha responsabilidade.
[fountain]
INT. QUARTO 1313
Do outro lado do quarto, uma FIGURA ESCURA espreita pelas janelas altas veladas por rendas envelhecidas. Ele vira-se e o seu sorriso ilumina o quarto. Um RUGIDO abafado de TROVÃO abana o velho edifício.
MORPHEUS
Finalmente.
Veste um casaco preto longo e os seus olhos são invisíveis por trás das lentes espelhadas redondas dos óculos. Avança para Neo e apertam as mãos.
MORPHEUS
Bem-vindo, Neo. Como certamente adivinhaste, eu sou o Morpheus.
NEO
É uma honra.
MORPHEUS
Não, a honra é minha. Por favor. Vem. Senta-te.
Acena a Trinity e ela sai por uma porta para um quarto contíguo. Sentam-se frente a frente em cadeirões de couro avermelhado rachado.
MORPHEUS
Imagino que neste momento te sintas um pouco como a Alice, rebolando aos trambolhões pelo buraco do coelho.
NEO
Pode dizer-se que sim.
MORPHEUS
Consigo ver nos teus olhos. Tens o olhar de um homem que aceita o que vê porque está à espera de acordar.
Um sorriso, fino como uma lâmina, enrola os cantos dos seus lábios.
MORPHEUS
Ironicamente, não estás longe da verdade. Mas estou a adiantar-me. Consegues dizer-me, Neo, porque razão estás aqui?
NEO
És o Morpheus. És uma lenda. A maior parte dos hackers dariam a vida para te conhecer.
MORPHEUS
Sim. Obrigado. Mas acho que ambos sabemos que há mais do que isso. Acreditas no destino, Neo?
NEO
Não.
MORPHEUS
Porque não?
NEO
Porque não gosto da ideia de não estar no controle da minha vida.
MORPHEUS
Sei exatamente o que queres dizer.
Uma vez mais, aquele sorriso de cortar vidro.
MORPHEUS
Deixa-me então dizer-te porque estás aqui. Vieste porque sabes alguma coisa. O que sabes, não consegues explicar, mas consegues senti-lo. Sentiste-o toda a tua vida, a sensação de que há algo errado com o mundo. Não sabes o que é, mas está lá como uma farpa na tua mente, deixando-te louco. Foi esta sensação que te trouxe até mim. Sabes do que estou a falar?
NEO
Da Matrix?
MORPHEUS
Queres saber do que se trata?
Neo engole em seco e acena afirmativamente.
MORPHEUS
A Matrix está em todo o lado, à nossa volta, até aqui neste quarto. Podes vê-la pela tua janela ou na tua televisão. Podes senti-la quando vais trabalhar, ou à igreja, ou pagas os impostos. É o mundo que foi puxado para cima dos teus olhos para te cegar da verdade.
NEO
Que verdade?
MORPHEUS
De que és um escravo, Neo. Como todos os outros, nasceste em cativeiro, mantido dentro de uma prisão que não podes cheirar, saborear, ou tocar. Uma prisão para a tua mente.
O COURO RANGE quando ele se inclina para a frente.
MORPHEUS
Infelizmente, não é possível explicar o que é a Matrix. Tens de ver por ti mesmo.
Morpheus abre as mãos. Na direita está uma pílula vermelha. Na esquerda, uma pílula azul.
MORPHEUS
Esta é a tua derradeira oportunidade. Depois disto, não há volta atrás. Escolhes a pílula azul e a estória acaba. Acordas na tua cama e acreditas no que quiseres acreditar.
As pílulas nas suas mãos abertas são refletidas nos óculos.
MORPHEUS
Escolhes a pílula vermelha e continuas no País das Maravilhas e eu mostro-te até quão fundo vai o buraco do coelho.
Neo sente a suavidade das cápsulas com as mãos húmidas.
MORPHEUS
Lembra-te que tudo o que te ofereço é a verdade. Nada mais.
Neo abre a boca e engole a pílula vermelha. O sorriso de Gato de Cheshire regressa.
MORPHEUS
Segue-me.
[/fountain]
Pode ver a cena aqui: