Começo hoje uma nova série de artigos, complementares ao Curso de Guião. Nesta série vou analisar cenas famosas da história do cinema, exemplares do ponto de vista da escrita, explicando porque funcionam e dando sugestões de como aplicar a mesma técnica num guião.
Para começar da melhor forma escolhi uma das sequências mais conhecidas de sempre, retirada do guião de “Godfather”, escrito por Mário Puzzo e Francis Ford Coppola. Estou a falar da famosa cena do batizado do sobrinho de Michael Corleone, já perto do fim do filme.
A cena
A minha primeira recomendação, para melhor apreciarem este artigo, é que revejam o filme. Está disponível em qualquer clube de vídeo no mundo, e faz parte da colecção de muitos cinéfilos. O guião foi recentemente incluído na lista dos 101 melhores guiões de sempre da Writers Guild of America (uma lista obviamente enviezada para o cinema americano) onde ocupou o 2º lugar, logo a seguir a “Casablanca”.
Nesta sequência vamos assistir a uma série de acções narradas através de uma montagem paralela. Começamos por ver o início da cerimónia de baptismo do sobrinho de Michael Corleone. Esta cena vai sendo intercalada com imagens dos vários homens de mão dos Corleone, fazendo os seus preparativos para o que se percebe ser uma acção orquestrada. A música sacra e a liturgia em latim vão pontuando toda a alternância das cenas.
Chegamos assim ao momento fulcral da sequência, em que Michael Corleone responde, em nome do sobrinho, às questões que o oficiante lhe coloca: “Renuncias a Satanás? Renuncias às suas obras? Renuncias aos seus faustos?” E enquanto o novo padrinho vai respondendo “Renuncio”, nós vamos vendo em paralelo a sucessão de crimes que estão a ser cometidos para eliminar, de uma só vez, todos os inimigos da família Corleone.
No final da sequência, já à saída da igreja, Michael recebe a informação de que tudo decorreu de acordo com os seus planos.
Porque funciona
Esta longa sequência é uma aplicação perfeita dos princípios da montagem eisensteiniana. Os autores do guião poderiam ter optado por narrar sequencialmente cada uma das cenas individuais. Teríamos então, por exemplo, a cena do batizado, à qual se seguiria o assassinato nas escadarias, vindo depois a morte dos dois amantes, etc.
Ao optarem por utilizar uma montagem paralela os guionistas não se limitaram a mostrar-nos que as cenas ocorreram ao mesmo tempo (o que, se pensarmos bem, até é pouco verossímil). Mais do que isso, fizeram com que cada cena acrescente significado às restantes. Por exemplo, os gestos do padre têm eco nos gestos dos vários assassinos que se preparam. São os rituais próprios de uma celebração litúrgica, com os seus oficiantes, tradições e resultados.
Mas o efeito mais forte provém da comparação entre as promessas de renúncia ao mal que Michael vai proferindo e a realidade dos seus actos. O resultado final da cena é percebermos que Michael, no final desta “cerimónia” celebrada em vários lugares, tornou-se duplamente “padrinho”: do seu sobrinho, aos olhos da igreja católica; e do mundo do crime, aos olhos de todos os seus subalternos e inimigos.
A utilização da música e das palavras do oficiante como fio condutor de toda a acção conferem às várias cenas a unidade necessária para funcionarem como um todo coeso, que tem uma função prática e simbólica na narrativa, constituindo, neste caso, o seu clímax.
Outros exemplos
Esta mesma mecânica foi utilizada nos outros dois filmes da trilogia “O Padrinho”, mas aparece em muitos outros filmes, anteriores e posteriores.
Por exemplo, no filme “Cabaret”, de 1972, guião de Jay Presson Allen, há uma montagem paralela entre um número de dança no Kit Kat Klub e uma acção violenta dos nazis, exemplificando a sua ascensão ao poder.
Em “O Curioso caso de Benjamim Button” há múltiplas sequências narradas em paralelo, unificadas pela leitura do diário. Por exemplo, toda a sequência do início das viagens marítimas de Benjamin e da carreira de bailarina de Daisy.
Como aplicar
- Utilizar uma das cenas como fio condutor da sequência, organizando as restantes ao seu redor.
- Seleccionar as cenas de forma a que funcionem como comentário às restantes, reforçando o seu valor simbólico e acrescentando-lhe significado.
- Explorar os elementos visuais paralelos entre as várias cenas.
- Explorar os contrastes e as semelhanças formais ou de acção entre as várias cenas.
- Usar música, palavras, sons, como uma forma de unificação de toda a sequência.
- Privilegiar os elementos visuais puramente cinematográficos para fazer avançar a narrativa, evitando/minimizando os diálogos.
Para terminar, deixo aqui o excerto do guião original correspondente à sequência descrita.
[fountain]
INT DAY: NERI’S APT. (1955)
ALBERT NERI moves around in his small Corona Apartment; he pulls a small trunk from under his bed. He opens it, and we see in it, nearly folded, a New York City Policeman’s uniform. He takes it out piece by piece, almost reverently. Then the badge, and the identification card; with his picture on it. Slowly, in the solitude of his room, he begins to dress.
INT DAY: MICHAEL’S BEDROOM (1955)
MICHAEL and KAY are getting dressed for the christening in their room. MICHAEL looks very well; very calm; KAY is beginning to take on a matronly look.
INT DAY: MOTEL ROOM (1955)
In a Long Island motel.
ROCCO LAMPONE carefully disassembles a revolver; oils it, checks it, and puts it back together.
EXT DAY: CLEMENZA’S HOUSE (1955)
PETER CLEMENZA about to get in his Lincoln. He hesitates, takes a rag and cleans some dirt off of the fender, and then gets in, drives off.
EXT DAY: CHURCH (1955)
The Church.
Various relatives and friends are beginning to gather at the Church. They laugh and talk. A MONSIGNOR is officiating. Not all of the participants have arrived yet.
CONNIE is there, with a beaming CARLO. She holds the infant; showing him off to interested people.
EXT DAY: U.N. PLAZA (1955)
NERI walks down the sidewalk in the neighborhood of the UN Building. He is dressed as, and has the bearing of, a policeman. He carries a huge flashlight.
EXT DAY: MOTEL BALCONY (1955)
LAMPONE steps out onto the little balcony of a Sea-Resort Motel; We can see the bright, neon lit sign advertising “ROOMS FACING THE SEA–VACANY”.
INT DAY: CHURCH
The Church.
CONNIE holds the baby; the MONSIGNOR is speaking; KAY and MICHAEL stand side by side around the urn.
PRIEST
(to MICHAEL)
Do you pledge to guide and protect this child if he is left fatherless? Do you promise to shield him against the wickedness of the world?
MICHAEL
Yes, I promise.
EXT DAY: FIFTH AVE.
NERI continues up the 55th St. and Fifth Avenue area. He continues until he is in front of Rockefeller Center. On his side of the street, he spots a limousine waiting directly across from the main entrance of the building. Slowly he approaches the limo, and taps on its fender with his nightstick.
The DRIVER looks up in surprise.
NERI points to the “No Parking” sign.
The DRIVER turns his head away.
NERI
OK, wise guy, you wanna summons, or you wanna move?
DRIVER
(obviously a hood)
You better check with your precinct.
NERI
Move it!
The DRIVER takes a ten dollar bill, folds it deliberately, and hands it out the window, trying to put it under NERI’s jacket.
NERI backs up, letting the bill fall onto the street. Then he crooks a finger at the DRIVER.
Let me see you license and registration.
EXT DAY: MOTEL BALCONY
LAMPONE on the motel balcony spots a Cadillac pulling up. It parks. A young, pretty GIRL gets out. Quickly, he returns into the room.
INT DAY: HOTEL STAIRS (1955)
CLEMENZA is climbing the back stairs of a large hotel. He rounds the corner, puffs a little, and then continues upward.
INT DAY: CHURCH
The Church. Close on the PRIEST’s fingers as he gently applies oil to the infant’s ears and nostrils.
PRIEST
Ephetha…be opened…So you may perceive the fragrance of God’s sweetness.
EXT DAY: ROCKEFELLER CENTER (1955)
The DRIVER of the limousine in front of Rockefeller Center is arguing with NERI.
Now the DRIVER looks up.
WHAT HE SEES:
TWO MEN in topcoats exit the building, through the revolving glass doors.
NERI opens up fire, trapping BARZINI in the shattering glass doors. The doors still rotate, moving the dead body of BARZINI within them.
INT DAY: CHURCH
In the Church–the VIEW on MICHAEL. The PRIEST hands him the infant.
PRIEST
Do you renounce Satan.
MICHAEL
I do renounce him.
PRIEST
And all his works?
MICHAEL
I do renounce them.
INT DAY: MOTEL MURDER (1955)
LAMPONE, backed up by two other MEN in his regime, runs down the iron-rail steps, and kicks in the door on Room 7F. PHILIP TATTAGLIA, old and wizened and naked, leaps up; a semi-nude young GIRL leans up.
They are riddled with gunfire.
INT DAY: HOTEL STAIRS (1955)
CLEMENZA, huffing and puffing, climbs the back stairs, with his package.
INT DAY: CHURCH
The PRIEST pours water over the forehead of the infant MICHAEL holds.
PRIEST
Do you wish to be baptized?
MICHAEL
I do wish to be baptized.
INT DAY: HOTEL ELEVATOR MURDER (1955)
CLEMENZA, out of breath, climbs the final few steps.
He walks through some glass doors, and moves to an ornate elevator waiting shaft.
The lights indicate the elevator has arrived.
The doors open, and we see a surprised CUNEO standing with the dapper MOE GREENE.
CLEMENZA fires into the small elevator with a shotgun.
The PRIEST hands a lighted candle to MICHAEL.
PRIEST
I christen you Michael Francis Rizzi.
Flash bulbs go off. Everyone is smiles, and crowds around MICHAEL, KAY, CONNIE…and CARLO.
[/fountain]
Boa explicação ;)
Excelente!
Olha, muito bom o teu blog, gosto muito, vez e outra apareço aqui, faz um tempo já que o leio, porque comecei a me interessar por roteiro (sou brasileiro), sempre adorei cinema, enfim, eu tenho uma pergunta: eu conheço dois estilos de roteiro, aquele que você define as câmeras e aquele que é só “açao”, qual você acha o melhor? Porque eu to meio em duvida (depois que vi o roteiro de Citizen Kane, ainda não vi o filme [estou morrendo de vontade], mas sei que é o “melhor”, e eles optaram [ou talvez nem tinham opção na época] pelo tipo de roteiro que se define a câmera, e deu no que deu (um dos mais, senão o MAIS bem elogiado filme de todos os tempos)… eu não vi o roteiro de Casablanca, mas pelo visto usa aquele tipo de roteiro do Citizen Kane [alias, acho que o próximo artigo dessa coluna devia ser do C. K.]).
Obrigado pela atenção, aguardo a resposta…
P.S.: Ainda vou ler o artigo, por isso não comentei sobre ele.
A diferença que refere é entre o guião (roteiro) “literário” e o guião de rodagem. O segundo, de rodagem, é feito em colaboração com o realizador (diretor, no Brasil), já depois de o filme estar em produção, e inclui todos esses detalhes para ajudar a equipa a perceber o trabalho que vai ser feito.
O guionista, enquanto trabalha sozinho na escrita, deve concentrar-se no primeiro, o guião “literário”. O objectivo deste é descrever a história, a acção, os personagens, sem muita preocupação com a parte técnica. Nesta fase é um erro incluir ângulos ou movimentos de câmara (a não ser de uma forma muito subtil, e apenas se for mesmo essencial para a narrativa). O guionista tem é de se preocupar com os aspectos dramáticos e narrativos da sua história, de forma a criar o guião mais envolvente e claro possível, e deixar os aspectos técnicos para mais tarde. Há até quem recomende que neste guião de rodagem nem sequer se devem numerar as cenas.
Note ainda que hoje, muitas vezes, nem se faz o guião de rodagem, ou então é feito por técnicos da equipa de produção, sem envolver o guionista.
Entendido, muito obrigado (ou seja la como vocês falam aí, hehe).
Muito bom o artigo, continue…
Pingback: Flashback 2009 | joaonunes.com
Pingback: Perguntas & Respostas: acções simultâneas
Pingback: JOÃO NUNES | Francis Ford Coppola | Como Francis Ford Coppola adaptou "O Padrinho" | escrita, Francis Ford Coppola, guião, O Padrinho, roteiro, técnica |