1ª É raro contar uma história que aconteça num único dia. Portanto, temos que fazer referência a esta mudança. Como? Colocando sempre "mudança de dia"? Até agora tenho acrescentado ao cabeçalho de cena, por exemplo, "EXT. CASA DE CAMPO – DIA. DIA 3". Qual é a forma mais correcta?
2ª Quando uma história é contada tipo manta de retalhos (ora se está no presente, ora no passado recente que se estende até ao presente, ora no passado longínquo) o que se deve acrescentar no cabeçalho?
3ª No caso de haver uma personagem que, a meio da história, se fica a saber que tem outro nome. Ou seja, uma personagem com dois nomes. O que fazer? Escrever sempre com o nome verdadeiro? Com os dois nomes, por exemplo "SOFIA/MARÍLIA", antes das falas? Ou optar pela solução de escrever o nome correspondente a cada parte da história e deixar uma nota de rodapé a explicar a situação?
Luís
Luís, o melhor critério para qualquer dos casos descritos acima é pôr-se no ponto de vista do espectador do filme. Nunca esqueça que o guião que está a escrever é apenas a base de trabalho para criar uma obra concreta, um filme que vai ser projectado numa tela de cinema. Assim, por exemplo, não adianta acrescentar "dia 3" no cabeçalho da cena, se não tivermos encontrado formas cinematográficas, visuais, de mostrar ao espectador que estamos no dia 3. O mesmo se aplica nos outros casos: temos de encontrar formas específicas da linguagem do cinema para mostrar que estamos em diferentes períodos, ou para explicar metamorfoses dos personagens. Incluir essa informação no guião pode ajudar o leitor, mas não contribui em nada para o espectador.
Mas vamos ver as suas questões caso a caso.
Mudanças de dia
Talvez tenha visto a indicação de "DIA X" no cabeçalho de cenas de algum guião a que teve acesso. Essa indicação é frequente em guiões de televisão, e menos comum em guiões de cinema. Em qualquer dos casos, é normalmente acrescentada a posteriori pelo assistente de realização ou por um supervisor de guião, e destina-se apenas a facilitar a vida dos técnicos na fase de produção. Por exemplo, para garantir que o guarda-roupa vai prever um número suficiente de mudas de roupa para os diferentes dias da narrativa. É, pois, uma preocupação de produção, que não tem de ser sua. Obviamente, como guionista, é sua obrigação saber em que dia da narrativa cada cena se situa, mas não precisa de se preocupar em colocar essa informação no cabeçalho 1.
O importante é saber se é realmente necessário perceber que estamos no "dia x" da narrativa, e não no "dia y". Os espectadores normalmente não mantém uma cronologia muito apurada da sequência de dias. Sentem que há uma passagem de tempo na história, que há mudanças de dia, mas percebem isso através de indícios subtis – a sucessão intercalada de cenas de dia e de noite; mudanças de vestuário ou de caracterização dos personagens; mudanças de locais que implicam tempos de deslocação; aspectos particulares da história que obrigam a mudanças temporais; etc. A sua tarefa, como guionista, é ir jogando com estes aspectos para que, naturalmente, o espectador (e, obviamente, o leitor do guião) sintam que há essa passagem de tempo.
Usam-se por vezes montagens de cenas para dar noção da passagem de tempo. Em "Oficial e cavalheiro", por exemplo, há uma montagem de cenas de recruta, centradas à volta do percurso de obstáculos que os candidatos a oficiais têm de ultrapassar, que mostra simultaneamente uma passagem de tempo e a evolução do comportamento dos personagens. Em Notting Hill há uma cena célebre em que o personagem de Hugh Grant, através de efeitos especiais, passa por quatro estações do ano numa única caminhada contínua através de um mercado de rua.
Se for realmente importante para a história o espectador saber que estamos exactamente no dia 1, dia 2, dia 3, etc., podemos reforçar essa informação visual indicando o dia numa legenda, dentro da descrição da cena:
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EXT. AUTÓDROMO DO ALGARVE – DIA
Um MECÂNICO fardado com um fato de macaco impecavelmente limpo desce de um camião identificado com as cores da escuderia Maximum.
Legenda: _Grande Prémio do Algarve 2010_
O homem contorna o camião e abre a porta traseira, revelando um carro de Fórmula 1 meio oculto na sombra.
Legenda: _Dia 1_
Um outro homem vem juntar-se a ele. É PEDRO (25), o piloto principal da escuderia.
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Mudanças de tempo
Muito do que disse no ponto anterior mantém-se válido. O fundamental é encontrar as maneiras visuais, cinematográficas, de ajudar o espectador a não se perder nos diferentes tempos narrativos.
A maneira mais imediata de o fazer é através da lógica intrínseca da história. Em "Babel" por exemplo, a própria narrativa se encarrega de nos fazer perceber quais as linhas narrativas que estão a decorrer em paralelo, e quais as que aconteceram em tempos distintos. Em outros filmes do mesmo autor, como "Amores perros" e "21 Gramas", a dificuldade inicial em estabelecer essa sequência faz parte do projecto narrativo. Só ao fim de um determinado tempo de imersão no filme é que o espectador começa a entender a ordem "real" dos acontecimentos que ali são narrados não-sequencialmente.
Compete pois ao guionista ir fazendo a gestão da informação que vai passando ao espectador, dando-lhe pistas para entender a ordem relativa dos acontecimentos narrados. Por exemplo, se numa cena vemos dois personagens numa situação de combate, e noutra cena vemos um desses personagens a rasgar uma fotografia dessa mesma situação, é óbvio qual das cenas aconteceu primeiro, mesmo que no filme sejam apresentadas na ordem inversa.
O guionista não é o único responsável por passar ao espectador essas mudanças de tempo. Em "Traffic", por exemplo, as várias linhas narrativas têm tratamentos fotográficos e de realização completamente distintos, que nos ajudam a fazer sentido dos saltos temporais e de enredo. Em "There’s something about Mary", o personagem de Ben Stiller é apresentado inicialmente como adolescente, com aparelho nos dentes, cabelo comprido e pose desajeitada. A passagem de tempo que se segue a essa sequência inicial (hilariante, por sinal) é indicada pela mudança do aspecto do personagem.
Como o leitor do guião não dispõe de todas as pistas visuais de que o espectador vai beneficiar, é comum o guionista ajudá-lo a situar-se no tempo, dando-lhe indicações mais explícitas no cabeçalho. Vejamos dois exemplos:
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EXT. CASTELO DE LISBOA – NASCER DO DIA (1147)
Um SOLDADO MOURO, barba por fazer, espreguiça-se encostado a uma das muralhas do castelo de Lisboa. Olha despreocupadamente para o horizonte e a sua expressão muda subitamente.
Legenda: _Lisboa, 1147_
Assustado, o homem corre para um sino, que FAZ TOCAR com insistência.
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INT. MASMORRA – DIA
Um homem, DIOGO, está deitado no chão sujo de uma masmorra escura. Tem a barba comprida, e o cabelo emaranhado e quase tão sujo como a sua roupa.
O seu olhar está fixo numa fenda na parede, junto ao tecto, que deixa entrar uma réstea de luz.
INT. TABERNA – UM MÊS ANTES
Uma janela ampla deixa entrar a luz do sol, iluminando uma empregada de seios generosos que transporta um jarro de vinho enquanto se desvia habilidosamente dos ruidosos clientes do estabelecimento.
A mulher pousa o jarro em cima de uma mesa de madeira polida por muitos cotovelos. Diogo, sem barba, limpo e elegante, agradece com um sorriso e enche o copo.
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Note-se que, em ambos os casos, há a preocupação de dar ao espectador, na descrição das cenas, pistas sobre as mudanças temporais, quer através de uma legenda, quer da descrição do personagem. No primeiro caso usamos uma legenda. No caso seguinte a sugestão é dada pela linguagem cinematográfica. Não basta colocar essas indicações no cabeçalho e esperar que o espectador, que não tem acesso ao guião, também as vá perceber.
Há um caso particular, a que já me referi noutro artigo: o dos flashbacks. Vale a pena ler o que escrevi sobre o assunto (e também aqui).
Mudanças de nomes
A sua terceira questão é mais complicada, pois depende essencialmente das características específicas de cada história em que esse caso acontece. O critério mais válido, uma vez mais, é decidir o que queremos que o espectador e o leitor saibam a cada momento. Por exemplo, pode ser importante que o leitor saiba que dois personagens são na realidade um só, mesmo antes do espectador descobrir isso. Ou podemos querer que essa revelação seja uma surpresa quer para o leitor quer para o espectador. Disso depende a forma como vamos escrever as descrições no guião. Mas nunca, nunca, deve essa explicação ser dada como notas de rodapé.
Não é demais insistir que, para o espectador saber alguma coisa, nós temos de lhe dar essa informação de uma forma adequada à linguagem cinematográfica. Desde que isso esteja garantido, podemos ajudar o leitor do guião, fornecendo-lhe pistas e explicações adicionais.
Por exemplo, no guião de "A paixão de Shakespeare", a personagem Viola de Lesseps é apresentada como uma jovem da nobreza, apaixonada por teatro. Mais tarde ela volta a aparecer, numa audição para o papel de Romeo, disfarçada de Thomas. Vejamos como os guionistas, Marc Norman & Tom Stoppard, resolveram a situação 2:
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INT. THE ROSE THEATRE. GALLERY/STAGE/AUDITORIUM. DAY
[…]
WILL sits brooding alone for a moment. Then he realizes he is being addressed from the stage. ANOTHER ACTOR.
ACTOR
May I begin, sir?
WILL looks at the stage and sees a handsome young man, with a hat shadowing his eyes.
WILL
Your name?
VIOLA AS THOMAS
Thomas Kent. I would like to do a speech by a writer who commands the heart of every player.
WILL can hardly manage a nod.
VIOLA AS THOMAS
"What light is light, if Silvia be not seen,/What joy is joy, if Silvia be not by?/Unless it be to think that she is by/And feed upon the shadow of perfection."
It does not take four lines of "VALENTINE’S" speech to confirm for us, if confirmation be needed, that THOMAS is VIOLA. For WILL, amazement at hearing his own words soon gives away to something else. He is captivated. He has found his "ROMEO".
VIOLA AS THOMAS
"Except I be by Silvia in the night,/There is no music in the nightingale./Unless I look on Silvia in the day,/There is no day for me to look upon."
[…]
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Num guião que escrevi recentemente há um personagem chamado Francisco que, em criança, se chamava Aaron. Nas cenas no presente ele é sempre referido como Francisco, nas cenas situadas no passado como Aaron. E em apenas uma cena, no final, em que reencontra um personagem do seu passado, é referido como Francisco/Aaron. O guião, por sua vez, está escrito de maneira a deixar claro, desde o início, que Aaron e Francisco são a mesma pessoa.
Realmente, essas mudanças no tempo são quase sempre problemáticas, digo, quando se trata de estruturar uma ordem cronológica complexa. Problemáticas no sentido de saber conduzir o leitor (ainda um proto-espectador) ao, hum, sentido proposto e à sua unidade.
Há anos reviso um roteiro extremamente fragmentado em sua dimensão temporal, e nunca me satisfaço, nunca tenho certeza se as linhas narrativas que correm fora-do-tempo (cenas às vezes “geminadas” na linha-mestra, às vezes lhe antecedendo, como flashbacks externos, às vezes um vai-e-volta e uma inversão que é bom nem falar) seriam assim plenamente percebidas. Acho que já tentei de tudo: divisão em blocos com legendas (não explicativas, mas como sugestões de mudança) lhes iniciando, detalhes de caracterizações de personagens bem distintivas, e por aí vai. Mas a dúvida não me larga. Quando chegamos nos limites entre escrever o que se quer mostrar (numa árdua analítica) e produzi-lo (síntese, de fácil apreensão), que desgraça.
Mas taí, o tratamento fotográfico, como em “Traffic”, seria uma mão na roda, simples e eficaz.
(Ah, e até experimentei o roteiro na cronologia “natural”, mas… Puxa vida, João, não é que o enredo perdeu toda a graça? rs.)
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