Na sequência do desafio Escrever um flashback, que lancei aqui no site há duas semanas, decidi analisar um dos mais sensacionais flashbacks alguma vez escritos: o que marca o início do filme Era uma vez na América.
Este filme, realizado por Sergio Leone, tem como tema a máfia americana, e rivaliza em importância e qualidade com os Padrinho 1 & 2, Goodfellas ou Casino. Tem a particularidade de mostrar a máfia de origem judaica, por oposição às máfias italianas que os outros filmes mencionados tão bem exploraram.
O guião
O ideal seria rever Era uma vez na América antes de continuar a ler. O filme, que pode ser encontrado em alguns videoclubes, é uma magistral lição de cinema, que não cansa nunca apesar da sua longa duração.
O guião, segundo a IMDB, é assinado por Leonardo Benvenuti & Piero De Bernardi & Enrico Medioli & Franco Arcalli & Franco Ferrini & Sergio Leone. Curiosamente, a única versão do guião que se consegue encontrar na net, em inglês, vem assinada como English version by David Mills, que não é sequer mencionado na IMDB. Deve haver alguma explicação para esta discrepância, mas não a conheço.
Note-se ainda que é um guião inusitadamente longo, com 322 páginas e um formato invulgar: as cenas estão separadas por páginas, e têm as descrições puxadas para a esquerda, e os diálogos para a direita. É a primeira vez que encontro este formato, comum na televisão portuguesa, num guião de um filme.
A cena
O filme começa com um grupo de bandidos a tentar encontrar Noodles, o protagonista interpretado por Robert de Niro. Vamos de seguida ao seu encontro.
Noodles está num teatro chinês, nas traseiras reservadas aos fumadores de ópio.
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Quando o encontramos tem nas mãos um jornal onde se pode ler a notícia da morte de três contrabandistas de álcool.
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Tenta descansar mas o som de uma CAMPAINHA DE TELEFONE desperta-o. A campainha, contudo, toca apenas na sua mente.
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Noodles volta a fumar ópio com grande ansiedade. Quando olha para a chama da lamparina mergulha num FLASHBACK…
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…que o leva a um local onde um camião incendiado concentra as atenções de polícias, bombeiros e inúmeros mirones.
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Três corpos estendidos no chão, um dos quais calcinado, são identificados como os três homens que vimos na notícia do jornal. Ao longo de toda esta cena, a campainha do telefone continua a tocar insistentemente, o que cria um efeito de ansiedade muito perturbador.
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Noodles está no meio da multidão que assiste ao incêndio. Através do seu olhar entramos num FLASHBACK DENTRO DO FLASHBACK.
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Passamos então para uma festa onde os três contrabandistas estão ainda vivos, a celebrar o fim da proibição de venda de bebidas alcoólicas. A primeira imagem da festa é um bolo em formato de caixão. A campainha do telefone continua a tocar em fundo.
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Noodles também está com eles e beija o pescoço de uma personagem feminina, provocando-lhe um arrepio..
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Noodles isola-se no seu escritório…
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… e dirige-se a um telefone, mas não é esse telefone que está a tocar insistentemente. Noodles levanta o telefone e faz uma chamada…
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…para o Sargento P. Halloran, da polícia de Nova Iorque. Este, sim, é o toque de campainha que temos vindo a ouvir desde o início do flashback.
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Quando o sargento atende, interrompendo o toque da campainha, Noodles desperta violentamente no teatro chinês, terminando os dois flashbacks em simultâneo.
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O que é um flashback
Um flashback, ou analepse, é, segundo a wikipedia, “a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela interpolação de eventos ocorridos anteriormente. É, por tanto, uma forma de anacronia ou seja, uma mudança de plano temporal”.
Syd Field, num artigo recente sobre o uso desta ferramenta, tem uma interpretação um pouco mais estrita do termo. Segundo o autor o flashback é um salto temporal, mas sempre testemunhado do ponto de vista de um determinado personagem. Nesta concepção, um flashback é função de um personagem, e não do enredo. Ou seja, corresponde a uma memória, trauma ou narrativa do personagem, desencadeada por algum estímulo com que ele se defronta no decurso da acção.
A principal função do flashback seria então dar um salto no tempo, no lugar ou na acção, de forma a mostrar do ponto de vista de um personagem um evento emocional ou um conflito físico, ocorridos no seu passado, que ao serem recordados revelam alguma coisa importante sobre o seu carácter, ou fornecem informação essencial para a progressão da estória.
Se a mudança de tempo não corresponder a uma memória de um personagem, não deveríamos então falar em flashback, mas sim numa alteração da sequência temporal da narrativa.
Para percebermos melhor a diferença, analisemos dois casos diferentes: na cena em análise neste artigo estamos claramente na presença de um flashback. É a notícia no jornal (e possivelmente o ópio) que traz à memória de Noodles a morte dos três companheiros e, no segundo flashback, a sua possível implicação na mesma.
Num filme como Memento, por outro lado, há saltos temporais na sequência da narrativa, mas não são motivados por estímulos ou memórias de um personagem. Nesse caso o protagonista caracteriza-se precisamente por não ter memória; por ser incapaz de experimentar um flashback. A interrupção da sequência temporal faz-se, pois, por uma opção estrutural da narrativa, e não como um flashback puro, na acepção referida por Syd Field.
O mesmo se poderia dizer em filmes como Babel ou Amores Perros, ou muitos outros que usam narrativas não-lineares. Apesar de estes saltos temporais serem por vezes descritos no guião como flashbacks, não o deveriam ser nesta definição mais estrita.
Porque funciona
O flashback escolhido para este artigo é perfeito em todos os aspectos. O que o faz então funcionar tão bem?
Em primeiro lugar, o toque da campainha, que cumpre três funções: unifica toda a sequência; cria um clima de enorme tensão emocional; e descodifica o sentido do flashback, quando percebemos finalmente a quem pertence o telefone que está a tocar.
Em segundo lugar, a inserção de um segundo flashback dentro do primeiro, terminando os dois em simultâneo, confere à sequência uma grande originalidade e eficácia.
Em terceiro lugar, a completa ausência de diálogos: toda a informação, de personalidade e de enredo, é passada de forma puramente visual, demonstrando um apurado domínio da linguagem essencial do cinema.
Em quarto lugar, a quantidade de informação que é passada, e a economia com que isso é feito: quem morreu; como morreu; a presença de Noodles no local do acidente; o fim da proibição; o carácter especial da relação de Noodles com uma personagem feminina; a relação próxima de Noodles com os três mortos; a maior importância relativa de Max dentro dos três sócios; e o possível envolvimento de Noodles na sua morte.
Finalmente, a preocupação colocada pelos guionistas nas transições entre as cenas. A transição do teatro chinês para o primeiro flashback é feita através de um motivo visual comum: a chama da lamparina converte-se na luz de um poste de iluminação que ilumina o cenário do acidente.
Já a transição para o segundo flashback é feita por afinidade conceptual: passamos da visão dos três mortos estendidos no chão, para um bolo em forma de caixão que celebra o enterro da Proibição.
Outros exemplos
O flashback é uma ferramenta narrativa muito usada no cinema. Os exemplos são inúmeros, e assumem formas muito diferenciadas.
Syd Field, no artigo referido, destaca os flashbacks muito curtos, enigmáticos, que caracterizam o filme A identidade Bourne, e que correspondem a um uso mais contemporâneo da ferramenta.
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Em Juno como já mencionei aqui noutro artigo sobre o mesmo tema, a utilização é semelhante: a protagonista vê um sofá abandonado e recorda brevemente uma tarde de sexo com o pseudo-namorado.
Já em Titanic ou, num exemplo ainda mais marcante, O Mundo a seus pés, o flashback é usado de forma mais clássica. No primeiro caso Rose vê o esquisso que a retrata, recuperado do navio afundado, e recorda a noite em que Jack o desenhou, e toda a estória do naufrágio.
No segundo caso o jornalista Thompson entrevista sucessivas testemunhas da vida de Charles Kane. Toda a narrativa é organizada numa sucessão de longos flashbacks narrativos.
Um último exemplo, retirado também de Era uma vez na América. Depois de um salto temporal de 35 anos no futuro, em que reencontramos Noodles muito mais velho, temos uma cena em que este espreita por um buraco numa parede. Isso traz-lhe recordações ainda mais antigas, levando-o a um flashback longo em que recorda o mundo duro da sua infância e a forma como conheceu Max.
Como utilizar
O flashback é bem utilizado quando serve para transmitir informação que não possa ser melhor transmitida de outra forma.
Para escrever um flashback, na definição mais estrita aqui proposta, devemos:
- Definir bem qual o personagem a que o flashback se refere – quem está a regressar no tempo;
- Apresentar claramente qual o estímulo, no presente narrativo, que desencadeia a memória, dando início ao flashback;
- Ter particular cuidado nas transições entre as cenas, encontrando pontos comuns, visuais ou conceptuais, que as liguem entre si;
- No caso dos flashbacks curtos, privilegiar a linguagem cinematográfica pura, recorrendo o menos possível aos diálogos;
- Ser o mais económico possível na transmissão da informação;
- Ter particular cuidado no uso da voz off, não a usando para repetir o que está a ser mostrado;
- Tentar encontrar um elemento unificador e identificador. Isso muitas vezes é deixado ao cuidado do realizador/diretor de fotografia/editor, que usam efeitos fotográficos (cor, velocidade, ritmo, etc) para diferenciar os flashbacks do resto do filme. Contudo, se conseguirmos encontrar formas mais orgânicas de o fazer – o toque da campainha, na cena em análise, está já descrito no guião – estamos a dar uma enorme mais valia à estória.
Conclusão: o flashback, quando bem utilizado, pode contribuir de forma significativa para a riqueza de um argumento. Cabe-nos nós, guionistas, garantir logo no guião essa boa utilização.
Óptimo artigo, João. Achei-o extremamente interessante, complexo e completo.
Contudo, creio que não faz referência a uma das potencialidades do flashback: gerir a tensão dramática, no sentido de ocultar ou revelar informação ao espectador no momento correcto. Ressalvando, claro, os cuidados importantes que se devem tomar para a utilização deste instrumento não parecer forçada ou uma solução de recurso. O que não belisca em nada a qualidade do artigo, que é, de facto, muito boa.
Agora convinha era que eu fosse ver o filme, que nunca vi… Enfim, há sempre tanto para ver…
Abraços a todos
berni
Boa contribuição. Em minha defesa posso argumentar que essa gestão de informação, aspeto tão importante que até tenho um artigo do curso previsto só sobre isso, encaixa dentro de uma das duas funções referidas: a de fazer avançar o enredo.
É o caso, por exemplo, dos sucessivos flashbacks em Duplicity, escrito por Tony Gilroy, em que a cada novo recuo descobrimos mais alguma coisa e toda a estória ganha uma nova interpretação.
No filme 007, Casino Royale, o que pensa do flashback que completa o início do filme e como o classifica? Penso que foi uma boa forma de dar a conhecer a personagem. E nunca tinha sido feito antes.
Cumprimentos e continuação de bom trabalho.
Estela, não estou recordado desse flashback. Pode fazer uma pequena descrição dele, e explicar porque diz que nunca foi feito antes?
Olá, João.
Bem, recordar… Só enviando o link do youtube.
http://www.youtube.com/watch?v=Gvr6uRvESvM
Uma pequena ressalva. Nunca foi feito antes… na saga James Bond. Penso que é a primeira vez que entramos na cabeça do personagem. Como avalia este flashback?
Para curiosidade, aqui fica a versão da mesma cena, sem cortes.
http://www.youtube.com/watch?v=HNvzNWuzI9Y
Cumprimentos.
Apesar de eu ter ganho, há uns anos atrás, um passatempo do Unibanco que me deixou na posse de uma caixa especial com todos os DVD’s do James Bond (estávamos ainda na época pré-Daniel Craig), não sou um especialista na série. Se me diz que é a primeira vez que entramos na cabeça do personagem, acredito.
No caso concreto deste James Bond 2.0, a sequência inicial para que chama a atenção ilustra bem a diferença entre verdadeiros e falsos flashbacks, de que Syd Field fala.
Toda a sequência a preto e branco decorre no passado relativamente à estória principal do filme, que vem depois do genérico. Mas a primeira cena, no escritório, não deve ser considerada um verdadeiro flashback. É um prólogo que, ilustrando a passagem de James Bond à categoria double-o, estabelece as bases para a narrativa que vem a seguir.
Já a cena da luta na casa de banho, encaixada dentro desta sequência, é um verdadeiro flashback na acepção defendida por Syd Field, pois é motivada pelas recordações de James Bond, despertadas pela pergunta que o seu interlocutor lhe coloca.
Em termos de execução, este flashback tem um feeling moderno. É uma cena relativamente curta, rápida – mais flash do que back. Caímos no meio da acção (in medias res), já com a luta a decorrer.
Já a versão extendida, que também indica no seu comentário, tem um estilo mais clássico, com princípio (no jogo de cricket), meio (perseguição no hotel) e fim (combate na casa de banho). Para os efeitos pretendidos, acho que foi correcto optarem pela versão mais curta na montagem final.
Fico à espera do artigo. O tema é um dos que mais me interessam no que toca a quaisquer formas de ficção e será certamente mais uma excelente adição ao blogue. Se a coisa correr bem, poderá ser também pretexto para discussões saudáveis, relevantes e construtivas.
Mais do que isto, só me apraz acrescentar um muito ansioso “yummy… venha ele!”
Abraços
Um exemplo familiar e uma explicação pormenorizada foi quanto bastou para ficar esclarecida sobre o assunto. Obrigada, João. :)
João, quanto o formato do guião, ele ter os diálogos puxados à direita e as descrições à esquerda, existe uma explicação muito simples: este é o guião à italiana. Eles explicam isso nos extras da edição especial em DVD.
Obrigado pelo esclarecimento.