Não tenho devoção ou dedicação especial a nenhum género. Gosto realmente de todos. Há boas estórias bem contadas em todos os géneros, sabe? Só quero contar boas estórias e fazer um bom trabalho. — Angela Bettis
Cada filme, cada estória, além de um enredo próprio e de um conjunto de personagens distintos, tem alguns outros aspetos que a tornam numa criação única. Esta espécie de “ADN narrativo” nasce essencialmente da combinação de quatro elementos separados – as suas quatro “bases”: o Género, Tom, Tema e Estilo.
Género
Desde o tempo de Aristoteles que se classificam as obras de ficção por Géneros.
Um Género é uma categoria de filmes que partilham determinados elementos narrativos e estilísticos, que geram um conjunto particular de respostas emocionais da audiência. Podemos pensar neles como as categorias que um serviço de streaming poderia utilizar para organizar o seu catálogo.
No caso de Aristóteles, os géneros que ele identificava eram o Épico, a Tragédia e a Comédia, nomes familiares mas que tinham definições algo diferentes das que usamos hoje.
Nos nossos dias a maior parte das obras de ficção, especialmente os filmes, também encaixam em Géneros. A sua classificação varia com os estudiosos do assunto, mas alguns são facilmente reconhecíveis e consensuais: o Drama, a Comédia, a Aventura, o Terror, etc.
Consultando fontes tão diversas como a IMDB, sites diversos e a Wikipédia poderíamos chegar a uma lista como esta.
- Ação & Aventura
- Animação & Anime
- Comédia
- Crime & Mistério
- Drama
- Experimental
- Fantasia
- Ficção Científica
- Guerra
- Histórico
- Musical
- Romance
- Terror
- Thriller
Cada um destes Géneros tem Sub-Géneros que se afirmam com alguma autonomia: dentro do Terror, por exemplo, podemos identificar os Sub-géneros de Zombies, de Vampiros, de Fantasmas, de Possessões Demoníacas, de Gore, etc.
Alguns Sub-Géneros são tão importantes que poderia argumentar-se, sem dificuldade, que se tratam de Géneros próprios. É o caso, por exemplo, das Comédias Românticas ou dos Westerns, que em muitas listas aparecem individualizados. Uma fonte muito rica para perceber a variedade de Sub-Géneros existentes é a página da Wikipédia que lhes é dedicada.
É importante perceber bem os Géneros porque carregam consigo uma série de convenções bem estabelecidas que correspondem a certas expectativas das audiências. É preciso conhecer as convenções de cada Género antes de tentar escrever nele, caso contrário corremos o risco dos nossos leitores/espectadores se sentirem defraudados.
Por exemplo, se escrevermos uma comédia que não inclui nenhum momento engraçado, ou um filme de terror que não causa nenhum susto, é natural que quem pagou bilhete para o ver se possa sentir enganado.
Podemos apontar o caso da série de televisão The Bear, cuja nomeação para prémios na categoria de Comédia tem sido muito contestada. Quero deixar bem claro que considero The Bear uma série extraordinária, sendo mesmo uma das minhas favoritas. Mas também consigo compreender que um espectador que se sente para ver um episódio, esperando uma torrente de gargalhadas como teria num How I met your mother ou Uma Família Normal, possa sentir as suas expectativas defraudadas. Isso será evitado facilmente se a enquadrarmos num Sub-Género da Comédia, a “Dramédia” ou Comédia Dramática.
Também é importante conhecer as convenções e expectativas associadas a um determinado Género para as podermos desrespeitar intencionalmente.
Por exemplo, durante muito tempo os zombies nos filmes desse Sub-Género do Terror andavam devagar e de braços estendidos; nos filmes mais recentes temos assistido a uma vaga de zombies corredores. Antigamente eram mortos-vivos ressuscitados por algum fenómeno excepcional; hoje são pessoas comuns infectadas por vírus altamente contagiosos. Se o seu objetivo é escrever um filme de zombies deve estar bem familiarizado com todas estas variações, para escolher uma ou, quem sabe, inventar uma nova variação.
Também é útil conhecer bem as convenções dos Géneros para os poder combinar entre si. Há muitas combinações estranhas, recebidas com maior ou menor sucesso: Vampiros + Comédia = What We Do in the Shadows; Vampiros + Blaxploitation = Blacula; Vampiros + Romântico = Crepúsculo; Vampiros + Histórico= Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros, etc.
Destacaria ainda uma terceira possibilidade muito interessante: escrever o guião jogando com as convenções e as expectativas associadas ao seu Género, para as subverter.
É o caso de filmes de sucesso como O Sexto Sentido, Scream ou A Casa na Floresta, e de um monte de comédias burras, como os Scary Movies e congéneres.
Se o seu filme encaixa dentro de um género – por exemplo o Thriller, Sub-Género Serial Killers -, é importante ver as obras mais importantes desse género (como Badlands, O Silêncio dos Inocentes e Seven) antes de começar a escrever.
Veja e estude esses filmes (e os seus guiões, se os conseguir encontrar), com atenção e respeito, não para os copiar, mas para ter a certeza de que não defraudará desnecessariamente as expectativas dos seus espectadores.
Exercício: O seu guião encaixa em algum Género ou combinação de Géneros? Procure os filmes mais importantes dessa categoria e veja-os. Se encontrar os seus guiões na net, leia-os também.

Tema
O Tema é provavelmente o mais mal entendido elemento do universo de uma estória. No entanto é também um dos mais importantes.
O que é, então, o Tema de uma estória? Talvez seja mais fácil começar por dizer o que o Tema não é.
Em primeiro lugar, não é o assunto explícito da estória, a sua temática. O Tema de Os Salteadores da Arca Perdida, a existir um, não é a luta contra os Nazis. O Tema de O Padrinho não são os conflitos das famílias da Mafia pelo poder.
O Tema não é, também, a mensagem da estória, embora esteja mais próximo disso. Samuel Goldwin, um famoso chefe de estúdio americano, gostava de dizer que “Se querem enviar uma mensagem vão aos Correios“. O Tema é mais subtil do que a mensagem explícita que se possa tirar de um filme.
Finalmente, o Tema não é a premissa do filme. Normalmente até começamos a escrever sem ter uma ideia clara dos componentes temáticos do guião. Estes vão surgindo naturalmente no decurso do desenvolvimento da estória, da relação simbiótica que se vai construindo entre os personagens e o enredo.
O Tema não tem a mesma importância em todos os tipos de filme. Costuma ter mais peso em filmes dramáticos, que tocam questões morais e éticas importantes, e menos relevância nos filmes de aventura e fantasia.
Para muitos autores, o Tema é um conceito moral, ético ou filosófico que o filme implicitamente discute. Nesse sentido, os Temas dos filmes acima mencionados talvez fossem a importância do indivíduo e da coragem, nos Salteadores, e a primazia da lealdade familiar no Padrinho.
Obviamente, estas interpretações serão sempre subjectivas e refletirão tanto do intérprete como do objeto interpretado. Duas pessoas assistirão ao mesmo filme e verão nele um Tema ou Temas diferentes, de acordo com a sua própria estrutura moral e ética.
Por isso a minha visão do Tema toma esse aspecto em consideração.
Segundo John Truby, no livro The Anatomy of Story: 22 Steps to Becoming a Master Storyteller, “O Tema é a visão do autor de como agir no mundo. É a sua visão moral.“
A minha interpretação do Tema aproxima-se bastante desta: o Tema é a razão verdadeira e profunda porque um autor se interessa por uma determinada estória e não por outras. É a projeção da mundivisão do autor na sua estória.
Neste sentido o Tema é sempre uma opção inconsciente que tomamos no momento em que nos apaixonamos por uma certa premissa de estória, um personagem ou uma ideia de enredo, e decidimos desenvolvê-la num guião. O processo de escrita vai limitar-se a revelá-lo, pouco a pouco, em camadas sucessivas.
Não se preocupe, pois, em encontrar logo no início o Tema do seu guião. Se estiver a escrever uma estória que realmente lhe interessa, o seu Tema irá emergir natural e espontaneamente. Conforme for escrevendo vá estando atento às preocupações morais e éticas que possam ir sendo reveladas, e utilize isso numa fase de reescrita para afinar e tornar mais interessante o seu guião.
É frequente, por exemplo, que o Tema de uma estória acabe por ser abordado de formas diferentes por personagens diversos nas suas várias sub-tramas. Por exemplo, o filme Babel, de 2006, acompanha quatro núcleos narrativos, com ligações mais ou menos ténues entre eles. O que todos têm em comum é que mostram perspectivas diferentes sobre um mesmo Tema: a solidão humana.
Exercício: Tente identificar o Tema dos seus filmes favoritos, segundo estas definições. É fácil ou difícil? E da sua estória? Sente que há algum tema a querer emergir dela, ou ainda é cedo?
Tom
Aqui está outro conceito nem sempre bem entendido, por também ser difícil de definir: o Tom de um filme. No entanto, é um conceito extremamente importante de compreender.
No meu entendimento, o Tom é um contrato implícito entre o autor e a audiência sobre a consistência estilística e emocional da sua proposta de ficção.
A definição pode parecer semelhante à de Género, no sentido em que lida com as expectativas do espectador, mas tem duas diferenças importantes.
Em primeiro lugar, o espectador normalmente já tem uma ideia do Género do filme que vai ver antes de se sentar para o assistir. Isto nem sempre é verdade em relação ao Tom, que muitas vezes só começa a ser percebido durante a experiência do próprio filme.
Além disso, o Tom é uma forma de distinguir diferentes as características de filmes dentro do mesmo Género. A noite dos mortos-vivos, 28 dias depois e Zombieland são três excelentes filmes de zombies, mas todos têm tons completamente distintos que nunca confundiríamos.
O Tom de qualquer filme fica claramente definido nos primeiros minutos – e nas primeiras páginas do seu guião. A partir daí o guionista tem a responsabilidade de manter esse tom de forma consistente. Caso não o faça corre o risco de confundir e alienar a sua audiência.
Por exemplo, há filmes que misturam muito bem o tom mais sério e pesado característico de um drama com o tom geralmente mais leve de uma comédia, como é o caso de Silver Linnings Playbook. Mas essa flutuação tonal fica clara desde os primeiros minutos de exibição e o espectador aceita sem problemas o resultado da combinação.
Pelo contrário, um filme como Amour é quase totalmente desprovido de humor, o que os seus espectadores também entendem e aceitam sem problemas.
No entanto, se ao fim de uma hora de exibição, os autores removessem do primeiro exemplo todo o sentido de humor, ou começassem a introduzir piadas no segundo, correriam sérios riscos de perder o envolvimento emocional que tinham conseguido até aí com os espectadores.
É isto que acontece num bom filme dos anos 80, Selvagem e Perigosa, que começa por ser uma comédia romântica leve ao estilo da época e acaba por se transformar de forma algo inesperada num thriller bastante angustiante. Acredito que esta opção arriscada do autor, Jonatham Demme, não lhe tendo tirado qualidade, possivelmente tirou-lhe audiência.
Para tornar as coisas um pouco mais concretas podemos recorrer a um pequeno gráfico:?

Usando dois eixos Leve/Pesado e Realista/Fantasista obtemos quatro quadrantes nos quais podemos enquadrar praticamente todos os filmes de modelo clássico. Vejamos alguns exemplos:
• “Os Salteadores da Arca Perdida” – Leve e Fantasista
• “O Silêncio dos Inocentes” – Pesado e Fantasista
• “Juno” – Leve e Realista
• “Amour” – Pesado e Realista
Um exercício que costumo propor aos meus alunos de escrita de guião é o que chamo do “teste da frigideira”: se o herói do seu filme der com uma frigideira na cara de outro personagem, o que acontecerá a seguir?
O agredido cai de costas, abana a cabeça e exlama “WTF!” ? O agredido desmaia e o herói continua a sua missão sem hesitações? Há derramamento de sangue, ambulâncias, repercussões graves, arrependimento e lágrimas?
Cada uma destas soluções coloca o seu filme num quadrante distinto em termos de Tom. Uma escolha que, salvo motivo de força maior, deverá ser respeitado ao longo de todo o guião.
Exercício: Em que quadrante de Tom colocaria o seu filme? Reflita sobre isso e certifique-se de que o mantém nesse quadrante do início ao fim.

O Estilo
O estilo, no contexto da escrita de guiões, pode ser definido como a assinatura única do guionista, a forma como ele estrutura a narrativa, desenvolve os diálogos, constrói as personagens e manipula o ritmo.
É a maneira como o guionista decide contar uma estória, escolhendo o que mostrar, o que esconder e o que sugerir. O estilo não é apenas uma questão de técnica; é uma questão de visão. Um guião com estilo não se limita a descrever ações e diálogos; cria um mundo, uma atmosfera, uma sensação.
Um exemplo clássico de estilo é o de Quentin Tarantino. Os seus guiões são conhecidos pelos diálogos afiados, cheios de referências culturais e um ritmo quase musical. Em Pulp Fiction, por exemplo, os diálogos parecem dançar, criando uma tensão que é ao mesmo tempo cómica e perturbadora.
Outro exemplo é o de Charlie Kaufman, cujos guiões, como Eternal Sunshine of the Spotless Mind, exploram a complexidade da mente humana com uma estrutura narrativa não linear e uma profunda introspecção psicológica.
O estilo está, pois, intimamente ligado à visão do guionista. Um guião não é apenas uma ferramenta para contar uma estória; é uma expressão da maneira como o guionista vê o mundo.
Por exemplo, os guiões de Wes Anderson, muitas vezes escritos em colaboração com Owen Wilson, são marcados por um humor subtil, uma estética visual distintiva e uma sensibilidade quase melancólica. Alguns destes aspetos estão mais ligados ao estilo da realização do filme, que no caso de Wes Anderson tem características facilmente reconhecíveis, mas muitos outros aspetos já emergem na leitura dos guiões.
Em The Grand Budapest Hotel, o estilo de Anderson é evidente na forma como ele equilibra o absurdo com a ternura, criando um mundo que é ao mesmo tempo fantástico e profundamente humano.
Por outro lado, os guiões de Aaron Sorkin distinguem-se pelo seu ritmo acelerado e diálogos inteligentes, quase como uma partitura musical. Em The Social Network, Sorkin usa o diálogo não apenas para avançar a trama, mas para revelar as complexidades das personagens e as tensões subjacentes à estória. O estilo de Sorkin é uma dança de palavras, onde cada frase é cuidadosamente coreografada para criar impacto.
No entanto, o estilo não se limita ao que é dito; também se manifesta no que não é dito.
O silêncio, o subtexto, o que fica por explicar – tudo isso faz parte do estilo de um guionista. Um exemplo notável é o guião de Lost in Translation, escrito por Sofia Coppola. Aqui, o silêncio é tão importante quanto o diálogo.
As pausas, os olhares, os gestos – tudo contribui para criar uma sensação de solidão e ligação ao mesmo tempo. O estilo de Coppola é subtil, mas poderoso, criando uma narrativa que é mais sentida do que explicada. E tudo conflui para a cena final, acerca da qual ficaremos para sempre a especular sobre o que é dito ao ouvido da protagonista.
Em última análise, o estilo na escrita de guiões é o que transforma um texto numa obra de arte. É o que diferencia um guião de uma lista de instruções. O estilo é a identidade do guionista, a sua maneira única de ver e contar estórias. É o que faz com que um guião seja não apenas lido, mas sentido.
Exercício: Escolha uma cena do seu guião e reescreva-a ao estilo de um guionista que admira. Como seria essa cena escrita pelo Tarantino? Pelo Wes Anderson? Pelo Sorkin? Preste atenção ao ritmo, ao diálogo, ao subtexto. Este exercício não só o ajudará a desenvolver o seu estilo, mas também a compreender melhor as escolhas dos guionistas que admira.
Conclusão
Muitas das decisões que definem o “ADN” de um guião nascem de forma inconsciente, emergindo naturalmente da experiência e visão do autor, das características da estória que quer contar, e do próprio enredo e personagens que vai desenhando.
Mas não custa nada, de vez em quando, ir-lhe lançando um olhar mais focado e intencional. Neste artigo já dei algumas boas razões para isso, mas há uma que considero ainda mais importante: quanto mais soubermos sobre o nosso guião, mais bem preparados estaremos para a etapa inevitável que sempre se segue ao first draft: a reescrita, onde a estória assume finalmente a sua última e melhor versão.
Termino sugerindo alguns dos excelentes vídeos do site Studio Binder para saber um pouco mais sobre as quatro bases do ADN de um guião: Género, Tema, Tom e Estilo.