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Perguntas & Repostas: em que ordem devo escrever as cenas?

    O meu roteiro começa com uma cena que será a última, e a partir desta cena começa a estória. Devo começar a escrever o roteiro com a cena final, ou escrevo a estória na sequência normal e na montagem é que se muda isso? — Anderson

    Anderson, a regra é sempre a mesma: deve escrever o seu roteiro exatamente como quer que o filme seja. Se a sua sensibilidade de autor lhe diz que a estória ganha em drama começando com a cena final, então é assim que deve estar no roteiro.

    Uma das coisas que faz mais confusão às pessoas é a diferença entre enredo e estrutura. Já falei sobre esse tema no curso de guionismo, e convido-o a ler esse artigo com atenção. Mas, resumindo, o enredo é o conjunto de momentos dramáticos que o guionista considera essenciais para contar a sua estória; a estrutura define o peso e ordem com que esses momentos dramáticos são apresentados ao espectador.

    Vejamos alguns exemplos esclarecedores: em O Discurso do Rei, vencedor do último Oscar de Argumento Original, a estória é contada com uma estrutura clássica, convencional, de três atos: exposição, complicação, resolução. Os eventos dramáticos que compõem esta estória – as suas cenas – são apresentados na mesma ordem temporal em que ocorrem na realidade.

    Já em A Rede Social, outro guião vencedor dos últimos Oscares, a estória começa por ser contada de uma forma convencional, com uma estrutura linear e clássica. A certa altura, contudo, começam a ser intercaladas cenas – flash-forwards – retiradas do futuro dramático do protagonista.  A partir daí toda a estória vai sendo contada saltando de uma linha temporal para a outra, com esta segunda linha a ser progressivamente mais importante.

    Em Michael Clayton, filme que analiso no mesmo artigo do curso, a estória começa com um evento dramático que marca a transição do 2º para o 3º ato. Depois temos um flashback de algumas semanas, que nos leva ao início da sequência de eventos que conduziram até esse evento. Quando voltamos novamente à cena inicial temos uma nova perspetiva dos acontecimentos. A partir daí a estória continua linearmente até ao seu clímax e resolução.

    Cães Danados opta por outra estrutura. O filme começa numa cena que define o presente dramático. Segue-se uma importante elipse, que nos oculta o evento dramático principal, e saltamos para um momento algumas horas depois. A partir daí, através de flashbacks e dos diálogos e ações dos personagens, vamos reconstruindo os eventos que nos foram ocultos pela elipse inicial.

    Filmes como Pulp Fiction ou Amores Perros, por outro lado, optam por uma estrutura completamente diferente, mais "baralhada". Além de terem vários enredos a correr simultaneamente, as cenas vão sendo apresentados fora da sua ordem temporal natural. Para o espectador a estória vai sendo composta como um puzzle, com cada cena a lançar uma nova luz sobre as anteriores, ampliando o seu sentido e melhorando a sua compreensão.

    Um caso radical é o de Memento, em que os eventos dramáticos que compõem o enredo são apresentados precisamente no sentido inverso em que aconteceram na realidade. A primeira cena do filme é a última cena do enredo, e assim sucessivamente – no fim de cada cena saltamos para a cena imediatamente anterior, construindo a estória de trás para diante.

    O que todos estes exemplos têm em comum é que estas opções estruturais já estavam definidas nos guiões originais. Os roteiristas consideraram que esta sequência de apresentação dos eventos dramáticos melhorava o impacto e a apreciação da estória, e foi dessa forma que a escreveram. É isso que você deverá também fazer: definir qual é a estrutura certa para apresentar o seu enredo, e escrever o seu roteiro dessa forma.

    Mais tarde, na montagem, o diretor e o editor até poderão ter uma opinião diferente, e optar por outra solução. Mas agora as cartas estão nas suas mãos, e é você quem dita as ordes. Aproveite bem e escreva a estória como acha que é melhor.

    Sugiro que leia guiões que optaram por soluções estruturais não convencionais. Além dos referidos, tem em português o de Cidade de Deus, que é um bom exemplo. Procure-o na net; não deve ser difícil de achar.

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