No artigo anterior desta série dedicada à linguagem Fountain vimos as dez regras básicas que nos permitem escrever a maior parte dos guiões neste formato.
No artigo de hoje vamos aprofundar um pouco mais a sintaxe desta linguagem, vendo os detalhes da aplicação destas regras básicas e indo um pouco mais além.
A página de título
A página de título é sempre a primeira página num guião. Num documento Fountain ela não aparece como uma página à parte, mas sim como um conjunto de metadados nas primeiras linhas do documento. Os programas de conversão usam estes metadados para gerar a página de título.
A informação da página de título é opcional mas, a existir, tem de estar num bloco exatamente no início do documento. Este bloco terá várias linhas, para os vários elementos de metadata que o constituem: título, autor, etc.
Os elementos de metadados são indicados no formato “Chave: Valor da chave”.
A primeira parte, a Chave, é o nome do elemento; a segunda, o Valor, é o seu conteúdo, que aparecerá no guião convertido.
As chaves podem incluir espaços (por exemplo “Draft date”), mas têm de terminar em dois pontos (:).
Os valores que queremos atribuir a cada chave vêm a seguir aos dois pontos.
As principais chaves reconhecidas pelo formato Fountain são as seguintes (sempre em inglês):
- Title – o valor que lhe atribuirmos, escrevendo-o a seguir aos dois pontos, será o título do guião (por exemplo “O Pedido”);
- Credit – o valor será o tipo de crédito a atribuir (por exemplo “Guião de” ou “Argumento adaptado por”);
- Author (ou Authors) – o valor será o nome do autor ou autores (por exemplo “João Nunes” ou “Izaías Almada & João Nunes”);
- Source – o valor será o crédito do material original (por exemplo “Adaptado do romance de Ferreira de Castro”;
- Draft date – o valor será a data da versão (por exemplo “Abril 2000”);
- Contact: o valor será o contato do guionista ou produtora (por exemplo “omeuemail@gmail.com”).
Não é obrigatório colocar todos estes elementos de metadata, mas para gerar uma página de título completa é recomendável que pelo menos o Title, Credit, Author e Contact sejam indicados.
Podemos colocar outros pares de metadata no formato “chave:valor”, para nossa informação pessoal, mas não serão reconhecidos na conversão para o formato guião. Por exemplo “Registo IGAC: 12/2000”.
Os valores de uma determinada chave podem ficar na mesma linha dessa chave ou ser distribuídos pelas linhas seguintes. Neste caso deverão entrar depois de três espaços ou uma tabelação, para ficarem corretamente alinhados.
Podemos também usar asteriscos e traços inferiores para sublinhar ou destacar elementos dentro dos valores.
No fim dos elementos introduzem-se dois parágrafos para que seja reconhecida uma quebra de página na conversão.
Vejamos então um exemplo de uma página de título escrita em Fountain:
Title: A SELVA
Credit: Guião original de
Authors: Izaías Almada & João Nunes
Source: Adaptado do romance de Ferreira de Castro
Draft Date: Junho de 2000
Contact:
omeuemail@gmail.com
Tel. (+351) 1234 56789
Morada Rua Tal e Tal
Registo IGAC: 12/2000
Na conversão para o formato de guião estes elementos dariam origem a uma página título como a seguinte:
Os elementos essenciais da linguagem Fountain
Vejamos agora mais detalhadamente como se devem utilizar os diferentes elementos de escrita de guião, de forma a cobrir os casos menos evidentes de cada um deles.
Cabeçalhos
Como já vimos em artigos anteriores um Cabeçalho tem normalmente três elementos: a indicação de INTerior ou EXTerior; o LOCAL onde a cena se passa: e se é no período de DIA ou de NOITE.
Por exemplo:
EXT. CASA DE CAMPO – SALA – NOITE
Em Fountain um Cabeçalho é qualquer linha de texto que comece por um dos elementos indicados a seguir:
- INT
- EXT
- INT./EXT
- INT/EXT
- I/E
Uma linha de Cabeçalho deve ser precedida por pelo menos uma linha em branco e sempre seguida por outra linha em branco. Não é obrigatório ser escrita em maiúsculas, mas isso é recomendável para ser mais facilmente identificada como Cabeçalho.
Dica avançada: Cabeçalhos Secundários
Pode “forçar” os programas de conversão a reconhecer um cabeçalho que não comece pelos elementos referidos começando a linha com um ponto final (.).
Isto é útil, por exemplo, para os Cabeçalhos Secundários, que não começam com os elementos identificativos (INT., EXT:, etc).
Veja este exemplo:
EXT. PALÁCIO – JARDIM – DIA
Os convidados estão espalhados pelos bem cuidados jardins do Palácio.
.JUNTO À PISCINA
Pedro e Inês passeiam de mãos dadas junto à imensa piscina.
Neste exemplo, “EXT. MANSÃO – JARDIM – DIA” é reconhecido automaticamente como um cabeçalho, porque começa com EXT.. Já o cabeçalho secundário “JUNTO À PISCINA” tem de ter um ponto final (.) antes para ser identificado como tal. (Nota: se não tivesse o ponto no início da linha esta seria identificado como um Personagem, e a linha de texto seguinte como Diálogo).
Na conversão para o formato de guião o ponto final desaparece. A cena aparecerá assim formatada corretamente:
Se a seguir a este ponto final inicial não vier um carater alfanumérico mas sim outro ponto final a linha já não será reconhecida como cabeçalho. Isto permite começar uma linha de Acção com três pontos (…) sem correr o risco de ser mal interpretada. Vejamos o exemplo seguinte:
Alice cai a grande velocidade pelo túnel escuro até que de repente…
INT. CAVERNA DE ALGODÃO
…aterra no chão fofo de uma enorme caverna de algodão.
Depois de convertido, ficará assim:
Dica avançada: Numerar Cabeçalhos
Os Cabeçalhos podem ser numerados (embora não automaticamente). São considerados números de cena quaisquer carateres alfanuméricos (incluindo traços e pontos) colocados a seguir a um cabeçalho, entre símbolos de cardinal (#). Por exemplo, todas as linhas seguintes são reconhecidas como Cabeçalhos numerados:
INT. CASA – DIA #1#
EXT. RUA – NOITE #23A#
INT./EXT. – CAMPO – DIA #110-B#
I/E – ESTRADA – CARRO – DIA #44.#
e apareceriam assim depois de convertidos:
Os Cabeçalhos de estilo europeu
Nos guiões europeus, incluindo muitos portugueses e brasileiros, utiliza-se uma convenção ligeiramente diferente para escrever os Cabeçalhos. Nesta convenção a indicação DIA ou NOITE segue imediatamente a seguir ao INT. ou EXT.
Um cabeçalho neste estilo ficará assim:
EXT. NOITE – RESTAURANTE
O Fountain reconhece perfeitamente este formato de Cabeçalho, pois os elementos essenciais não mudam: começa com EXT. ou INT., é escrito em maiúsculas e tem linhas vazias antes e depois.
Ação
Conforme já vimos em outros artigos a seguir a um Cabeçalho vêm normalmente parágrafos de Ação , nos quais se descreve o que pode ser visto e ouvido no filme.
Em Fountain, qualquer parágrafo de texto normal, que não seja reconhecido como outro elemento (Cabeçalho, Personagem, Diálogo…) é classificado como Ação ou Descrição de cena.
A sintaxe Fountain respeita as quebras de linha que nós introduzirmos com parágrafos. Se decidirmos criar cinco parágrafos entre duas linhas de acção, ou só um, é assim que vai aparecer na formatação final. Normalmente introduzem-se duas quebras de linha entre cada parágrafo de Ação. Por exemplo, assim:
INT. RESTAURANTE – NOITE
Um restaurante médio – não parece muito caro – com a sala meio cheia.
Jaime, de olhos baixos, come uma mousse de chocolate com colheradas minúsculas, como se quisesse retardar o mais possível o seu fim.
No entanto uma descrição escrita da seguinte forma também seria correta:
O homem encosta-se à beirada do prédio. Olha para baixo.
Alto.
Muito alto.
Respira fundo, fecha os olhos e dá um passo em frente.
Dica avançada: Tabelação da Ação
Nos parágrafos de Ação as tabelações e espaços iniciais também são reconhecidos e mantidos na formatação, permitindo indentar um parágrafo. As tabelações são convertidas em quatro espaços. Dessa forma podemos escrever um parágrafo de Ação como o seguinte exemplo:
Personagem
Num guião a apresentação dos diálogos dos personagens é uma combinação de dois elementos: os nomes dos Personagens, e os Diálogos em si.
Em Fountain é considerada um nome de Personagem, e formatada como tal, qualquer linha escrita inteiramente em maiúsculas, que tenha uma linha vazia antes e uma linha de texto a seguir. No exemplo seguinte, JAIME e ANABELA são reconhecidos como personagens:
INT. COZINHA DE ESCRITÓRIO – DIA
Jaime está agora em frente de uma mulher, ANABELA.
JAIME
Pensei muito, mas é isto que eu sinto: queres ser a minha mulher?
Anabela pondera por um instante.
ANABELA
Não.
Este trecho apareceria assim no guião:
As extensões acrescentadas a seguir ao nome do personagem, como (V.O.) ou (OFF) também têm de ser escritas em maiúsculas.
HOMEM #1 (O.S.)
Por favor! Peço a vossa atenção!
Os nomes de personagens têm de ter pelo menos uma letra. “Nº22” é reconhecido como personagem, mas “22” não.
Diálogo
Qualquer linha de texto que venha imediatamente a seguir a um Personagem ou Parênteses é reconhecida e formatada como Diálogo.
JAIME
Queres casar comigo?
Não fica satisfeito com o resultado. Tenta de novo.
JAIME
Queres casar comigo?
É possível partir linhas dentro de um Diálogo, ou incluir intencionalmente linhas vazias, embora isso não seja comum. Este procedimento é descrito com mais detalhe na secção dedicada às Quebras de Linha, num artigo futuro.
JAIME
Dás-me o prazer…
não…
a honra…
dás-me a honra e o prazer de casar comigo?
Este monólogo será apresentado assim no guião convertido:
Dica avançada: Diálogo duplo
Quando dois personagens falam ao mesmo tempo usa-se o Diálogo duplo. Em Fountain este é formatado colocando um acento circunflexo/carat (^) isolado a seguir ao nome do segundo personagem. Por exemplo:
Jaime e Anabela falam apressadamente, sobrepondo-se um ao outro.
JAIME
Queres casar comigo?
ANABELA (O.S.) ^
Queres casar comigo?
Sorriem, atrapalhados mas satisfeitos.
Este exemplo seria formatado assim:
O acento circunflexo tem de ser o último carater da linha de Personagem.
Parênteses
Parênteses são linhas de texto, colocadas – surpresa – entre parênteses, que dão indicações de tempo, ação, expressão ou entoação no contexto de um Diálogo. Por exemplo:
(pausa)
(irónico)
(fazendo adeus)
(sussurrando)
Em Fountain os Parênteses são qualquer linha de texto que venha a seguir a uma linha de Personagem ou Diálogo e esteja entre parênteses.
JAIME
Queres casar comigo?
(pausa)
Queres casar comigo?
(pausa)
Não… São as palavras.
Depois de convertido para o guião ficará assim:
Transição
Uma Transição é uma linha de texto em que se define como passamos de uma cena para outra. Por exemplo:
CORTA PARA:
DISSOLVE TO:
Para uma linha ser reconhecida e formatada como uma Transição em Fountain tem de ser escrita em maiúsculas, precedida e seguida por uma linha vazia, e terminar em TO: como CUT TO: ou DISSOLVE TO:
Como em português as transições que usamos não terminam em TO: teremos de usar uma alternativa, começando a linha de transição com o símbolo de maior do que (>). Por exemplo, assim:
>FADE IN:
INT. CASA DE BANHO – DIA
Um homem fala para a câmara. É JAIME, 28 anos, magro e mortiço.
No guião este bloco de texto aparecerá assim:
Conclusão
Neste segundo artigo dedicada à análise da linguagem Fountain vimos com maior detalhe a escrita dos elementos essenciais de um guião.
Pode encontrar a primeira parte do artigo aqui
Agora, resta passar à prática e aplicar estas dicas na escrita do seu guião. Porque, como não me canso de referir, só se aprende a escrever, escrevendo.
Obrigado, seu artigo está me ensinando muito.
Fico feliz. Boas escritas.