Siga estas dicas no seu próximo guião e pode ter a certeza de uma coisa: ninguém esquecerá o seu talento natural para escrever diálogos (embora talvez não pelas melhores razões…).
1. Não ligue às características físicas, psicológicas e sociais dos seus personagens.
Porque é que um agricultor alentejano do século XVII não há de falar como um “gangsta” de Queens? Por acaso estava lá alguém para ouvir como é que essa gente falava?
2. Faça todos os personagens soar de forma igual…
E porque é que o seu cientista, a namorada dele, o assassino que o anda a perseguir e o velho sábio que o vai abrigar não hão de falar também todos como “gangstas”. É tão fixe.
3. …ou melhor ainda: todos iguais a si.
Pensando bem, porque é que há de ser como “gangstas”? Você demorou tantos anos a desenvolver um estilo próprio de falar, porque é que não o aproveita para “enriquecer” todos os seus personagens?
4. Já que estamos nisso, ponha-os sempre a usar palavras caras e raras.
E de preferência com muitas citações em latim pelo meio.
5. Não se preocupe com o ritmo…
Já reparou que toda a gente fala exatamente com o mesmo tom, ritmo, fraseado, cadência? Não?! Então tem que andar mais de transportes públicos.
6. …mas respeite sempre a ordem.
Um bom diálogo é como um bom jogo de pinguepongue: pergunta/resposta/pergunta/resposta… Qualquer alteração a esta ordem pode baralhar os espectadores com QI inferior a 50.
7. Use os diálogos para dizer o que o espectador está a ver…
Pode alguém estar distraído e não ter percebido bem a cena.
8. …o que os personagens estão a sentir…
Toda a gente sabe que os atores não gostam de interpretar sentimentos e emoções. Ajude-os com diálogos em que eles expliquem exatamente o que estão a sentir (“Oh, como estou aborrecido por me teres dado uma bofetada”).
9. …e o que você não sabe explicar de outra forma.
Para quê perder tempo a encontrar maneiras interessantes de passar informação se um personagem o pode simplesmente dizer. (“Pedro, tu que és meu cunhado mas eu não suporto, podes passar-me o sal?”).
10. Já agora, faça os seus personagens falar muito sozinhos…
Não há nada mais realista do que um personagem comentar consigo mesmo o comportamento de outro logo que este deixa o quarto. Para ganhar pontos extra: acrescente descrições detalhadas das expressões faciais, que é outra coisa de que os atores gostam muito.
11. …e de preferência em Voz Off.
Ah, a Voz Off (V.O.). É como o alho numa receita italiana: nunca é demais. Mesmo quando não faz falta, não acrescenta nada e não tem piada.
12. Escreva os diálogos tal como aprendeu nas aulas de filosofia…
Lembra-se? Tese, antítese, síntese, e tal. Tudo muito certinho e organizado por tópicos e subtópicos.
13. …ou tente copiar os do Big Brother.
Cheios de hmms, hãans, indecisões, trocas de rumo, zigues e zagues, reticências, alterações dos tempos verbais, mudanças de sujeito, calões, frases incompletas, murmúrios, palavras truncadas, meus, pás, palavrões. Enfim… a vida como ela é.
14. Copie o estilo do "guionista da semana".
O que é que interessa se o seu guião favorito desta semana é um thriller de ficção científica e você está a escrever um drama histórico? Com certeza dá para adaptar o seu estilo com sucesso.
15. Nunca leia os diálogos que escreveu em voz alta…
Os audiolivros é que são para ser ouvidos. Os guiões são para ser lidos. Ou não é?
16. …e sobretudo nunca, mas nunca, reescreva.
Você é um génio natural. Porquê submeter-se a essa indignidade que aflige todos os outros guionistas – a reescrita?
Se quiser colaborar para tornar este artigo mais divertido, deixe nos comentários alguns dos seus “maus diálogos favoritos”. Porque se pode aprender tanto com o mau como com o bom.
Muito divertidas essas dicas! Pelo que ando vendo na tv brasileira, vários roteiristas, produtores, diretores etc. têm seguido à risca (especialmente em novelas…). Uma das coisas que mais me irrita, quando por extremo acaso estou na casa de parentes e estes assistindo alguma novela, é ver o que foi citado na dica de número 10. Não tem nada mais artificial do que uma pessoa (“A”), por exemplo, ver a outra (“B”) mexendo num lugar onde tem algo escondido e ao deixar o recinto, a que viu o ato dizer: “ENTÃO É AÍ QUE ELA GUARDA TAL COISA…”, como se já não fosse óbvio pela expressão do artista (cara de espanto, olhos cerrados, ou algo que o valha…). Tais cenas são recebidas por mim como se subestimassem a inteligência do telespectador. Devo acrescentar que não sou grande fã de novelas por achar que elas são muito óbvias por si só e suas tramas, por mais enveredadas que sejam, não alteram os finais com casamentos, nascimentos, festas, contrapondo acidentes, prisões e mortes. Enfim, o bem INEVITAVELMENTE vencendo o mal…
Parabéns pela postagem, vou procurar não seguir as dicas!
Abraço.
Não é só na tv brasileira, de forma alguma. Até em grandes filmes se encontram por vezes alguns destes erros.
Por exemplo, “Gran Torino” que revi esta semana – um grande filme para todos os efeitos – começa com uns diálogos incrivelmente maus, de exposição pura, numa cerimónia religiosa.
Muito bom! Me diverti muito com essas valiosas “dicas”!
Hilariante, João!
Achei particularmente bem temperada a analogia com os alhos da gastronomia italiana :D
Mas fico a pensar se estas dicas não poderiam ser subvertidas para um bom sentido. Diálogos escritos segundo algumas destas “orientações” talvez fossem interessantes para uma comédia mesmo, mesmo nonsense…
Imaginemos um mecânico de fisionomia tipicamente africana, com sotaque à aristocrata do mississipi, a pontuar muy eruditos discursos com montes de frases em latim, enquanto fala com o seu patrão que responde com monossílabos e onomatopeias. Ou um hippy que assume constantemente o seu amor pela comida do mcdonald´s… Talvez haja aí qualquer coisa…
abraço!
É claro que todos esses personagens que referes nos teus exemplos podem ser escritos assim, contra “a corrente”. E desde que o sejam com intenção, coerência e talento até servem para dar um outro nível a um guião (ou apenas a uma cena). Há personagens secundários inesquecíveis exatamente por conta das suas idiossincrasias.
O que este artigo pretende alertar é para quando isso é feito não por opção consciente do guionista, mas por descuido, preguiça, ou mera falta de jeito…;-)
Claro, João. E, agora mais sério, creio que ele é útil exactamente por esses motivos :)
Não se esqueça nunca de pôr as pessoas a dizer «eu» quando falam de si próprias e «tu» quando falam com outras pessoas. Desde que os tratem por tu, claro. Não escreva nunca «Adoro-te», escreva «Eu amo-te» (sim, já agora, as personagens que digam regulamente que se amam). Outro exemplo: «Estou cheio de saudades, já não toco há bué» está mal; o correto é «Eu estou cheio de saudades, eu já não toco há bué» (não estou a inventar, é mesmo um diálogo duma série famosa).
Além disso, nunca escreva «És o maior» ou «Explica-me onde é que foste arranjar dinheiro para comprar esses sapatos» mas sim «Tu és o maior» e «Explica-me onde é que tu foste arranjar dinheiro para comprar esses sapatos». Os diálogos bons são os estrangeiros e eles nunca se esquecem dos pronomes. Por exemplo, um americano diria «I‘m a cool dad» e não «Am a cool dad», certo?
Boas dicas.Vou rever os guiões que estou a escrever neste momento para ver quantas vezes as segui. Obrigado.
Aproveito para mais umas dicas curtas:
1. Correção gramatical é mais importante do que diálogo credível, porque há que pensar na função didática do audiovisual.
2. Não esquecer de usar repetidamente o nome da pessoa com quem se está a falar.
3. Em televisão, usar bastante texto não essencial, para poder perfazer os minutos necessarios (por exemplo, depois de um treino, não basta o treinador dizer «Parabéns, muito eficiente»; é preferível «Eu notei que, no treino de hoje, estavas muito eficiente» (da minha série preferida para ilustrar maus diálogos).
4. Em cinema português, pelo contrário, não escrever mais de 40 páginas para uma longa metragem, para que o realizador possa deleitar-se com imagens paradas, inclusivamente das pessoas que falam.
Cinco minutos a ver televisão portuguesa são suficientes para mais uma série de lembretes importantes. Deixo apenas uma dica, que é fundamental e que me tinha escapado. Quando uma personagem está ao telefone e não se vê a pessoa com quem está a falar, a que está à vista deve repetir sempre o que a outra supostamente disse do outro lado da linha. Principalmente quando a outra faz perguntas.
«Uma peça no Teatro Nacional? … Ai é, com esse ator? … Se pode contar comigo? Claro que sim. Pode contar comigo. … Às oito no Rossio? Ótimo. Por mim, pode ser. … Se fica combinado? Por mim, fica combinadíssimo, sim.»
Já agora, eu escrevi reticências para dar ideia de que haveria conversa do lado de lá mas estão aqui a mais. Os atores, se forem dirigidos como deve ser, não darão tempo para haver conversa do lado de lá da linha.
Isto dos diálogos dá um curso inteiro de três meses, pelo menos…
Embora organizar esse curso, online? Quem sabe arranjamos alguns interessados entre os leitores do blogue…
Desafio tentador!… Lamento imenso ter perdido, numa formatação de disco, o livro de estilo que escrevi para uma telenovela. Mas, de facto, os maus exemplos na ficção portuguesa são tantos que não é extraordinariamente difícil compilá-los.
Esse curso online até pode ser uma óptima ideia, principalmente para quem quer apostar na escrita.
Estou escrevendo e uma historia e nela existem mais dialogos do que qualquer coisa onde mostrei a uma pessoa e ela me disse que gostou muito porque fez com que ela imaginasse ou melhor conseguisse visualizar todo o contexto do local e tudo mais mas estou em duvida porque gostaria de transformas esta historia em um roteiro e não em um livro onde estou um pouco perdido diante da quantidade de paginas que tenho que escrever para que possa ter um roteiro onde na verdade eu ja escrevi 124 paginas e estou ainda por terminar.
peço desculpas por meus erros de escrita mas e que estou tendo muita dificuldade em relação somente em como transformar a minha historia em um roteiro e se caso eu conseguir aprender a fazer isso em relação a historia não sei porque tenho muita facilidade para criar historias onde ja iniciei quatro historias e acredito que sejam muito boas mas para isso não cabe a minha pessoa dizer e sim a quem ira ler…
Olá João (onde quer que estejas!…)!
Olha, essa de não ligar às características físicas, psicológicas e sociais… tem muito que se lhe diga! Só por sarcasmo, gozo e sei lá que mais, eu colocaria na boca de um matumbo vocábulos que ele só domina por tanto ouvir o patrão dizer. Como respondeste a alguém, ao Berni Ferreira, só pode ser por desatenção do guionista. Valeu!
É claro que as dicas irónicas que dou acima devem ser filtradas caso a caso, pela criatividade do guionista.
Se quisermos criar um personagem claramente ignorante mas que usa no seu discurso “palavras caras”, se calhar até com uso errado, pode se uma solução divertida.
Também poderia ser interessante criar um personagem que esperaríamos ser ignorante, mas que na realidade é culto e usa um vocabulário erudito. Aí funciona a surpresa.
Mas ambas essas possibilidades resultam bem se forem decisões intencionais e motivadas do guionista.
O que seria errado, pela minha lógica, é fazer isso por descuido ou falta de preocupação com a realidade.
Oi! Dicas excelentes e divertidas, rs. Mas, fico realmente em dúvida em relação ao narrador (V.O.). Se o filme for um noir ou neo noir, por exemplo, que costuma ter essa narração do protagonista? Como podemos usar o V.O. sem que fique “feio”? Tô engatinhando nessa arte maravilhosa de escrever roteiros, tenho muitas dúvidas.
Abraços!