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P & R: como combinar um telefonema com ações paralelas

    Eu gostaria de saber qual a maneira mais correta de descrever no roteiro uma sequência onde há um diálogo longo AO TELEFONE entre dois personagens em locações diferentes, enquanto, ao mesmo tempo, acontece uma ação paralela em cada uma das locações (com outros personagens) sem que os personagens ao telefone percebam. – Narcival

    Narcival, que me lembre nunca escrevi uma cena como a que descreve na sua questão.

    Em casos tão particulares como este não há regras rígidas. Vale o que for mais adequado para tornar perfeitamente compreensível o que queremos que se veja na tela.

    Aconselho a leitura de dois artigos anteriores deste blogue, sobre a escrita de telefonemas, e a descrição de ações paralelas.

    O seu caso será resolvido com uma combinação inteligente destas duas técnicas.

    Vejamos um exemplo (fictício e um pouco estúpido ;-) de como isto poderia resultar num guião.

    [fountain]

    INT. RESTAURANTE GUSTEAU – NOITE

    O chef Linguini tem o telefone entalado entre o ombro e a bochecha, e fala enquanto mexe lentamente a sopa.

    LINGUINI
    Não adianta vir cá. Estamos cheios até Abril, e deixámos de aceitar reservas em Janeiro.

    INTERCALA COM:

    INT. CASTELO NA TRANSILVÂNIA – AO MESMO TEMPO

    A chuva bate na vidraça de uma janela entreaberta. Um fio telefónico entra pela janela…

    …segue pelo chão e entra para dentro de um caixão funerário entreaberto. O Conde fala para um telefone antiquado.

    CONDE
    Tem a certeza, Linguini? É que eu estou com umas saudades daquele vosso prato de galinha com sangue… como é que se chama?

    LINGUINI (V.O.)
    Arroz de cabidela?

    CONDE
    Esse mesmo. Vá lá, rapaz. Se você quiser consegue-me uma vaga.

    INT. RESTAURANTE GUSTEAU

    Linguini deita alguns temperos para a panela e prova.

    LINGUINI
    Eu gostava muito, conde. A sério que gostava.

    NO LAVATÓRIO DA COZINHA – AO MESMO TEMPO

    O rato Remy desliza pela bancada do lavatório em cima de um sabonete, sem ser visto por Linguini.

    CONDE (V.O.)
    Têm é de reduzir no alho. Da última vez estava um pouco forte demais para o meu gosto.

    Enquanto desliza Remy vai recolhendo folhas de ervas aromáticas diversas plantadas em pequenos vasos.

    DE VOLTA A LINGUINI

    O chef sorri e abana a cabeça.

    LINGUINI
    Não é com comentários negativos que me consegue convencer. Eu já conheço esses truques de psicologia invertida.

    INT. CASTELO NA TRANSILVÂNIA

    O Conde sorri também, apanhado.

    CONDE
    Linguini, seu maroto.
    (pausa)
    Então diga lá – se isto não funciona, o que é que tenho de fazer para o convencer?

    CORTA PARA:

    EXT. CASTELO NA TRANSILVÂNIA – AO MESMO TEMPO

    Dois homens trepam pela parede exterior do castelo. São Van Helsing e o seu assistente.

    LINGUINI (V.O.)
    Temo bem que nada, Conde. Devia ter ligado com tempo.

    INT. CASTELO NA TRANSILVANIA

    O Conde está a ficar aborrecido com o rumo da conversa.

    LINGUINI (V.O.)
    Agora só em Abril.

    A janela abre-se de repente e o Conde ergue-se no caixão, olhando para lá.

    CONDE
    Maldito vento. Maldito clima.

    LINGUINI (V.O.)
    O que disse?

    O Conde ergue-se do caixão e dirige-se para a janela, arrastando o fio do seu antiquado telefone.

    CONDE
    Nada, nada. Mas estou a avisá-lo. Amanhã parto para Paris. Se não tiver mesa no restaurante, prepare-se para me receber em sua casa.

    O Conde espreita pela janela. Uma sombra ergue-se sobre ele.

    O Conde tranca a janela. Vemos refletida nela A PONTA DE UMA ESTACA DE MADEIRA.

    INT. RESTAURANTE GUSTEAU

    Linguini abana a cabeça, aborrecido.

    LINGUINI
    Em minha casa, sabe bem que é só com convite…

    CONDE (V.O.)
    Eehrhehh aghhhhhhhhh!!!

    LINGUINI
    O que é que disse? Conde?

    O telefone passa a dar sinal de interrompido.

    LINGUINI
    Conde?

    Nesse momento, Remy desliza pela prateleira em frente de Linguini, assustando-o.

    O rato atira as folhas que recolheu para dentro da sopa.

    REMY
    O que aconteceu?

    O chef desliga o telefone.

    LINGUINI
    Nem sei. Acabei de ter a chamada telefónica mais estranha da história.

    Continuamos a ouvir o sinal de interrompido…

    INTERCALA COM:

    INT. CASTELO NA TRANSILVANIA

    … enquanto vemos a mão do Conde, ainda segurando o bocal do telefone, começar a transformar-se em poeira.

    A mão de Van Helsing entra em campo, agarra no bocal e coloca-o no corpo do aparelho. O som é interrompido e…

    FADE TO BLACK.

    [/fountain]

    O que é que acontece nesta sequência? Vejamos:

    • Introduzo o primeiro espaço e personagem
    • Introduzo o segundo espaço e personagem
    • Regresso ao primeiro
    • Introduzo uma ação paralela passada no primeiro espaço
    • Regresso ao segundo espaço
    • Introduzo uma ação paralela no exterior do segundo espaço
    • Faço convergir as duas ações do segundo espaço
    • Regresso ao primeiro espaço e convirjo as duas ações
    • Concluo

    A adaptação desta sequência ao seu caso depende da dimensão da sua conversa telefónica, e das características das ações que decorrem em paralelo.

    Mas o essencial será sempre introduzir cada espaço, apresentar os interlocutores do telefonema, definir claramente cada sequência de ação, e distinguir bem quando se muda de uma para outra.

    O importante é que fique bem claro o que acontece, a quem acontece, onde e em que sequência.

    Não esqueça também que sempre que um personagem fala ao telefone mas não está no espaço que estamos a ver no momento devemos indicar que é Voz Off, acrescentando o (V.O.) a seguir ao seu nome.

    Uma última nota. Quando o filme for produzido é provável que cada metade do telefonema seja filmada na íntegra com cada um dos interlocutores.

    A montagem final do telefonema poderá, pois, ser diferente daquela indicada no guião, com mais ou menos cortes, e em momentos diferentes. É por isso que dizem que a montagem é a última reescrita do filme.

    4 comentários em “P & R: como combinar um telefonema com ações paralelas”

    1. João, uma pergunta que sempre tive, mas principalmente neste caso, como se enumeram este tipo de cenas para realiza-las corretamente na rodagem do filme. Se são situações paralelas e com telefonemas como devíamos numera-las (cena 1…?) ?
      Obrigado.
      Luciano Sazo

      1. A minha primeira recomendação é que num guião de autor (um spec script) não deve ser incluída numeração. Essa é uma tarefa do assistente de realização ou da produção, numa fase mais adiantada, que por vezes têm critérios particulares a cada produtora.
        Mas se lhe pedirem para numerar o guião, então faça assim: dê um número à primeira cena na ordem natural (23, por exemplo); o número seguinte à segunda cena (24); e depois vá acrescentando letras cada vez que regressa a cada cena (23A, 24A, 23B, 24B, etc).
        Pode haver outros critérios mas este funciona bem de cada vez que temos de intercalar ação entre duas cenas, como é o caso.
        Neste exemplo concreto do artigo, as ações paralelas teriam tratamento diferente. A primeira ação, que se passa na mesma cena, não teria numeração; a segunda ação, que se passa noutra cena (exterior do castelo) teria um novo número – o 25, no nosso exemplo.
        Teríamos assim no exemplo do artigo:
        23
        24
        23A
        24A
        25
        24B
        23B
        24C

    2. Eu tenho uma dúvida grande sobre uma cena que quero escrever para meu roteiro,é uma cena onde em uma emboscada ,os vilões são pegos de surpresa por vários políciais,tudo ao mesmo tempo,mas em lugares diferentes.a acão acontece no mesmo lugar em si,mas e partes diferentes do local com várias frente acontecendo,e não sei como escrever que todos os policiais Atacama ao mesmo tempo.

      1. Caro amigo, para lhe responder iria recomendar a leitura deste artigo e de um outro em que deixou também esta questão. Não tenho muito mais a dizer, mas deixo estas dicas:
        – Visualize bem na sua cabeça toda a sequência da ação;
        – Se precisar, tome notas, faça diagramas e listas, desenhe um mapa do local da ação, etc.
        – Certifique-se de que fica claro quem participa na ação;
        – Deixe também claro quais são os locais, identificando-os com Cabeçalhos Principais (se são cenas intercaladas) ou Cabeçalhos Secundários (se são zonas específicas dentro de uma área comum maior), ou uma combinação dos dois;
        – Descreva com precisão tudo o que pode ser visto e ouvido em cada momento, mas não se alongue demasiado. O ritmo costuma ser importante neste tipo de sequências.
        Boas escritas.

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