Qual o melhor modo de colocar um diálogo escrito num outro idioma? Tenho uma cena que tem de ser escrita em espanhol, sob pena de não fazer sentido se assim não for. Acontece que não sei como colocar a tradução, sem tornar aborrecido o texto. — Nina
Nina, já abordei uma vez este assunto, mas só de raspão, num artigo deste blogue. A sua pergunta merece pois uma resposta um pouco mais completa.
Esta é uma questão que tem uma componente técnica e uma componente narrativa.
Mas antes de entrar na resposta, uma primeira consideração: o guionista não é obrigado a saber escrever nas línguas que os seus personagens falam. Os leitores do guião, por outro lado, também não são obrigados a entender russo, ou chinês, ou árabe, ou mesmo o espanhol do seu exemplo.
O guião, portanto, deve ser escrito na nossa língua "base", a que dominamos como guionistas. No nosso caso, será em português.
Se for preciso traduzi-lo, integralmente ou parcialmente, para outras línguas, a produção contratará em tempo próprio os tradutores adequados para esse efeito.
Voltando à sua questão, há uma decisão que devemos tomar em termos narrativos: se queremos ou não queremos que os espectadores do filme (e os leitores do guião) entendam o que está a ser dito pelos personagens que falam na língua estrangeira.
O caso mais normal é aquele em que alguns personagens falam em línguas diferentes da língua "base" do guião, mas nós queremos que os espectadores entendam o que estão a dizer (e, consequentemente, o leitor do guião também).
O outro caso é aquele em que alguns falam numa língua diferente mas não queremos que os espectadores (e eventualmente outros personagens) entendam o que está a ser dito. Isso pode ser intencional para reforçar a sensação de alheamento e confusão de alguns personagens, ou para criar algum mistério.
Todas as situações possíveis serão normalmente uma combinação ou variação entre estes dois extremos, e as soluções adaptadas a isso.
Vejamos dois exemplos.
Se a nossa intenção é que o espectador (e o leitor) entenda os diálogos, podemos escrever a cena da seguinte forma:
[fountain]
EXT. CASA DO RANCHO – FIM DO DIA
Juan olha desconfiado para Peter e Conchita.
CONCHITA
(em espanhol, legendado)
Não é o que parece, señor.
JUAN
(em espanhol, legendado)
E o que é que parece?
CONCHITA
Que estamos a invadir a sua propriedade com más intenções.
JUAN
Bom – esta noite vão dormir e descansar lá dentro. Amanhã explicam-me então as vossas boas intenções…
Peter olha os dois, tentando perceber o que se passa.
PETER
O que é que o homem está a dizer?
CONCHITA
(em português)
Que somos muito bem vindos.
(para Juan, em espanhol)
Ele não entende a nossa língua, mas eu traduzirei.
[/fountain]
Nesta forma de escrever a cena indicamos o momento em que cada personagem começa a falar noutra língua, e que o seu diálogo deve ser traduzido no filme. Mas volto a referir – não traduzimos os diálogos; escrevemos sempre na nossa língua "base".
Quando muito podemos traduzir uma ou outra palavra, que sejam de conhecimento geral, como o "señor" deste exemplo, só para ajudar a dar o tom.
Enquanto o diálogo decorrer na nova língua podemos usar um truque como colocar essas frases em itálico, para ajudar a recordar esse facto ao leitor.
O segundo caso é aquele em que não queremos que o espectador (e o leitor) entendam o que está a ser dito.
Nessa situação recorremos normalmente às descrições da ação. Tomando o mesmo exemplo:
[fountain]
EXT. CASA – FIM DO DIA
Juan olha desconfiado para Peter e Conchita, e diz qualquer coisa EM ESPANHOL.
Conchita, um pouco nervosa, responde também EM ESPANHOL.
Peter acompanha o diálogo tentando perceber o que se passa.
PETER
O que é que o homem está a dizer?
CONCHITA
(em português)
Que somos muito bem vindos.
Conchita volta a olhar Juan e acrescenta mais um comentário, que Peter também não entende.
[/fountain]
Neste segundo caso os leitores e espectadores, tal como Peter, são deixados de fora quanto à verdadeira natureza do diálogo. Só sabem o que Conchita traduziu, mas a descrição da ação dá a entender que talvez não tenha sido isso que foi dito.
Estas duas opções têm, naturalmente, consequências narrativas, e devem ser avaliadas caso a caso pelo guionista.
Vejamos agora um exemplo real, tirado de uma cena muito divertida e famosa de Inglorious Basterds, de Quentin Tarantino: o diálogo em várias línguas no foyeur do cinema, no início do 3º ato.
[fountain]
(…)
COL. LANDA
I’m just teasing you, Fräulein. You know me, I tease rough. So who are your three handsome escorts?
BRIDGET
I’m afraid neither of the three speak a word of' German. They’re friends of mine from Italy. This is a wonderful Italian stuntman, Antonio Margheriti.
(meaning Aldo)
A very talented cameraman, Enzo Gorlomi.
(meaning Donny)
And Enzo’s camera assistant, Dominick Decocco.
The German Fräulein turns to the three tuxedo-wearing Basterds.
BRIDGET
(ITALIAN)
Gentlemen, this is an old friend, Colonel Hans Landa of the S.S.
The Basterds know only too well who Landa the Jew Hunter is, but they can’t show it.
Aldo sticks out his hand . . .
LT. ALDO
Buongiorno.
The German takes his hand . . .
COL. LANDA
Margheriti . . .
(ITALIAN)
Am I saying it correctly? . . . Margheriti?
LT. ALDO
(ITALIAN)
Yes. Correct.
COL. LANDA
(ITALIAN)
Margheriti . . . Say it for me once, please . . .?
LT. ALDO
Margheriti
COL. LANDA
(ITALIAN)
I´m sorry, again.. . ?
LT. ALDO
Margheriti
COL. LANDA
(ITALIAN)
Once more . . .?
LT. ALDO
Margheriti.
COL. LANDA
Margheriti.
(FRENCH)
It means daisies, I believe.
[/fountain]
Nesta cena, em que o Coronel Landa está obviamente a brincar ao gato e ao rato com os seus interlocutores, forçando-os a falar num italiano que não dominam, Tarantino optou por indicar simplesmente em parênteses a língua de cada frase do diálogo.
É uma solução adequada porque há muitas mudanças de língua nesta cena (que é muito mais longa do que este pequeno excerto), e de outra forma poderia ficar muito confusa.
Um último exemplo, que combina as duas opções de uma forma interessante, é a cena de Avatar em que Jake encontra Neytiri pela primeira vez.
[fountain]
(…)
MEANWHILE Neytiri swings her bow in a big arc, CRACKING IT across the heads and shoulders of two remaining wolves.
NEYTIRI
Rrreeyaaah! Hyaaaah!!
The wolves slink and circle, yelping as the bow whistles past them. Finally they break and run, with Neytiri chasing and–
They bound away through the foliage as she SHOUTS after them–
NEYTIRI
Raaaarrrr!
…mais adiante…
Neytiri ignores him, assuming a prayer posture over the dead animal.
NEYTIRI
(in Na'vi)
Forgive me. May your spirit run with the Great Mother.
JAKE
I would have been screwed if you hadn't come along —
She rises and walks away without looking at Jake.
JAKE
Hey, wait. Wait! Where you goin'?
He crashes through some plants, catching up to her.
JAKE
Slow down a second will you. I just want to thank you for killing those —
He makes the mistake of grasping her shoulder and —
WHACK! She WALLOPS him upside the head with her bow in a fierce backhand swing, laying him out flat.
He looks up to see a FURY standing over him. A Fury who speaks English — accented, halting, angry English.
NEYTIRI
Don't thank! You don't thank for this! This is sad. Very sad, only.
JAKE
Okay, I'm sorry. Whatever I did — I'm sorry.
[/fountain]
Nesta cena vemos três situações: as primeiras falas de Neytiri (gritos de combate) são em Na´vi, e nem Jake nem os espetadores devem entendê-las.
Na sequência da cena ela faz uma oração pelos animais mortos, que o guião indica ser em Na´vi. Jake não entende (porque não conhece a língua), mas os espectadores têm direito a uma tradução.
Finalmente, quando Neytiri fala em inglês, essa transição é indicada na descrição da ação, de forma bem vívida.
Termino com a recomendação de sempre: não há regras fixas; apenas técnicas destinadas a tornar o mais claro possível no guião, que é uma forma escrita, o que queremos que se veja e ouça na forma audiovisual – o filme.
Qualquer solução que funcionar é sempre uma solução boa.