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Dicas de Escrita do Frenesi 2013 – quarta semana

    DICA #16

    Como gerir a informação?

    Uma das principais tarefas de um guionista é gerir o fluxo de informação que passa entre os seus personagens e o leitor/espectador.

    Há três situações possíveis:

    • espectador e personagens sabem o mesmo;
    • o espectador sabe mais que os personagens;
    • os personagens sabem mais do que o espectador.

    Os primeiros dois casos ficam bem claros na situação que Hitchcock descrevia na sua distinção entre surpresa e suspense.

    Se uma bomba explodir inesperadamente, há um efeito de surpresa tanto para os personagens, na estória, como para os espectadores, na audiência. A explosão da bomba é uma informação nova que nenhum dos dois possuía antes.

    Pelo contrário, se nos for mostrada uma bomba debaixo da mesa dos personagens, sem eles o saberem, cria-se um efeito de suspense. Como espectadores sabemos mais do que os personagens, o que acentua o dramatismo da situação.

    O terceiro caso é diferente – os personagens recebem alguma informação que não é passada ao espectador.

    Por exemplo, no 3º ato de A Parte dos Anjos o protagonista explica aos amigos o seu plano para o clímax do filme. A cena começa com um diálogo normal mas depois passa a ser mostrada à distância, e deixamos de ouvir as suas palavras.

    Outro exemplo: no fim de Juno a protagonista escreve uma mensagem que vai deixar em casa dos pais adotivos do seu bebé. Nós sabemos que ela a escreveu, mas não o seu conteúdo.

    Em ambos estes casos os personagens passam a ter uma informação de que nós não dispomos, o que aguça a nossa curiosidade e aumenta a expectativa sobre o que irá acontecer a seguir.

    É claro que esta terceira situação só funciona se soubermos que os personagens têm uma informação que nós desconhecemos. Caso contrário, não se cria efeito de suspense; quando muito de surpresa, quando ela for revelada.

    Parafraseando o secretário de Estado norte-americano, Donald Rumsfeld, "há as coisas que sabemos que sabemos; há as coisas que sabemos que não sabemos; e há ainda as coisas que não sabemos que não sabemos".

    E você – sabe o que os seus leitores e personagens sabem em cada momento?

    DICA #17

    Como escrever os Cabeçalhos

    Começo hoje a explicar alguns aspetos formais da escrita de um guião. O seu resumo pode ser encontrado num infografismo que publiquei no blogue, a Anatomia de um Guião.

    Num guião de cinema uma cena é uma unidade dramática definida por um determinado local e período, sem quebras de tempo.

    Se mudarmos de local devemos começar uma nova cena. Se houver uma passagem de tempo, mesmo que o local se mantenha, também devemos começar uma cena nova.

    Como é que indicamos que há uma mudança de cena? Introduzindo um novo CABEÇALHO.

    Um Cabeçalho é uma linha de texto, alinhada à margem esquerda, escrita totalmente em maiúsculas, com uma linha vazia antes e uma depois.

    Contém três elementos essenciais:

    • deve começar indicando se é uma cena passada num interior ou exterior, INT. ou EXT.
    • deve indicar o local da cena, por exemplo CASA DE JOAQUIM – SALA
    • deve indicar o período do dia ou da noite, separado por um travessão – DIA ou NOITE

    Por exemplo, são cabeçalhos válidos os seguintes:

    INT. CASA DE JOAQUIM – SALA – DIA

    ou

    EXT. ESCOLA – CAMPO DE FUTEBOL – NOITE

    Também são válidos, e usados por vezes em Portugal e no Brasil, os cabeçalhos escritos numa outra ordem, como os seguintes:

    INT. DIA – CASA DE JOAQUIM

    ou

    EXT. NOITE – RUA

    Mas já não são válidos

    INT – CAMPO DE FUTEBOL – CENA 10 (não tem ponto final depois do INT; não tem lógica um campo de futebol ser interior; e os números de cena não se indicam assim)

    ou

    EXTERIOR; Casa do Francisco; manhã (deveria ser toda em maiúsculas; começar com EXT.; e usar um travessão em vez do segundo ponto e vírgula)

    A escrita dos cabeçalhos tem mais algumas subtilezas que pode explorar num artigo que escrevi no blogue, incluindo o uso de Cabeçalhos Secundários. Mas 90% das situações são resolvidas como indicado.

    Os softwares de escrita de guião, como o Final Draft, o CeltX ou o Trelby, resolvem automaticamente a formatação dos Cabeçalhos e restantes elementos. Processadores de texto como o Word ou o Pages também podem ser usados, desde que se respeitem as convenções de formato.

    DICA #18

    Como escrever as Descrições?

    Cada nova cena começa com um Cabeçalho, como vimos ontem. O parágrafo seguinte, separadpo por uma linha vazia, deve sempre ser uma DESCRIÇÃO.

    Descrição, ou Ação, são os parágrafos do guião onde se descreve o que pode ser visto ou ouvido no filme (com a excepção dos Diálogos, que têm outro tratamento).

    Isto inclui a descrição dos locais onde as cenas decorrem, dos adereços ou veículos importantes para a cena, dos personagens, incluindo a sua aparência e roupas, dos efeitos especiais ou sonoros, etc.

    Também inclui a descrição das ações, comportamentos, gestos, movimentos dos personagens e outros elementos em cena.

    Tudo o que deva ser visto ou ouvido no filme deve ser colocado nas Descrições. Os americanos têm uma frase para isso; "If it's not on the page, it's not on the stage" – se não está na página, não está no filme.

    Algumas notas importantes quanto às Descrições:

    • São escritas sempre na terceira pessoa do singular: Pedro olha. O carro despista-se. O cão ladra.
    • Devem incluir apenas a informação necessária e suficiente para perceber o local, as pessoas, as relações e as ações. Informação em excesso pode tornar um guião muito difícil de ler; informação em falta pode torná-lo pouco apelativo.
    • Sempre que um personagem é apresentado pela primeira vez num guião, o seu nome deve ser indicado em maiúsculas. Também é costume dedicar-lhe uma pequena descrição, tanto mais cuidada quanto mais importante ele for.
    • Efeitos sonoros, efeitos especiais e alguns acessórios particularmente importantes também podem ser destacados em maiúsculas.
    • Os parágrafos de Descrição são normalmente curtos, com duas ou três linhas, como demonstrei num artigo do blogue. Isto torna a leitura mais fácil e fluida.
    • Podemos dar a entender o ritmo de uma cena através da sucessão e do ritmo da escrita das Descrições.

    Para terminar, vejamos uma pequena cena do meu guião O Pedido, composta apenas por Descrição.

    INT. SALA – DIA

    Jaime está na sala comum do seu pequeno apartamento, perto da mesa. Veste o seu fato bom, com uma gravata vistosa. É a sua melhor tentativa para ser elegante, mas não fica nem perto.

    Confere uma caixinha de veludo de ourivesaria e parece ficar satisfeito com o conteúdo.

    Guarda a caixa no bolso e afasta uma das cadeiras da mesa. Depois sobe para cima da cadeira, equilibrando-se com alguma dificuldade. Desce e volta a subir, tentando dar elegância e dignidade ao movimento.

    Repete mais uma ou duas vezes.

    DICA #19

    Como escrever os Diálogos e Parênteses

    Na maior parte dos filmes – mesmo nos mudos – os personagens falam. E, quando bem utilizados, os Diálogos são um elemento fundamental de um guião.

    Bons diálogos têm algumas características em comum:

    • São elementos de ação, que fazem avançar a trama.
    • São demonstrações de conflito, confrontos orais, que contribuem para a manutenção e escalada do drama.
    • Fornecem novos desafios e informações.
    • Não são óbvios e expositórios. Não estão na cena apenas para cumprir alguma função ou responder a alguma necessidade.
    • São vivos, dinâmicos, interactivos, e variados. Contribuem para o ritmo e dinâmica das cenas.
    • Soam a verdadeiros, parecem retirados da vida real, embora quando analisados à lupa demonstrem ser uma construção rigorosa, económica e depurada.
    • São adequados aos personagens que os falam; às suas características sociais, históricas, psicológicas.
    • São cheios de segundos sentidos e interpretações paralelas, aquilo a que normalmente se chama o “subtexto”.

    Em termos formais, para apresentar os diálogos num guião usam-se três elementos: os Personagens, Diálogos e Parênteses.

    O elemento Personagem identifica quem fala; o elemento Diálogo identifica o que ele diz; e o elemento Parênteses dá indicações adicionais que não sejam óbvias da leitura do diálogo. Por exemplo, um tom especial (irónico) ou a quem se dirige a fala, quando há várias pessoas (para Rita).

    Um bloco de diálogos pode aparecer assim:

    PEDRO
    Queres saber o que me aconteceu hoje?

    RITA
    (irónica)
    Mal posso esperar…

    PEDRO
    (pausa)
    Queres saber, ou não?

    RITA
    (para a cozinha)
    Paula, trazes-me um cafézinho?
    (para Pedro)
    Estavas a dizer…?

    Em termos de disposição na página devemos respeitar estas normas de formato:

    • Os Personagens começam a ser escritos a 9,25cm da margem esquerda e alinham à esquerda (não são centrados na página).
    • Os Parênteses são escritos entre os 7,75cm da margem esquerda e os 7,25 da direita.
    • Os Diálogos estendem-se dos 6,5cm da margem esquerda a 6,5cm da direita.

    Na prática o diálogo acima vai aparecer na página com esta disposição:

    DICA #20

    Qual é o uso correcto das Transições e Planos?

    A resposta é fácil: o uso correto das Transições e Planos é o mínimo possível.

    Quando procuramos na net guiões para ler muitas vezes encontramos os chamados shooting scripts, ou guiões de rodagem.

    São versões dos guiões que já foram reescritas de acordo com as indicações dos realizadores para servir de guia durante a rodagem do filme. Por isso incluem muitas indicações de câmara e de edição, como planos, movimentos, tranições, etc.

    Por exemplo, o guião de A rainha africana começa assim:

    EXT. A NATIVE VILLAGE IN A CLEARING BETWEEN THE JUNGLE AND THE RIVER. LATE MORNING

    LONG SHOT — A CHAPEL

    As indicações de LONG SHOT, MEDIUM SHOT, CLOSER SHOT, REVERSE ANGLE, DISSOLVE TO:, etc., sucedem-se nas páginas desse tipo de guiões, o que pode criar a ideia de que é obrigação do guionista encher o guião com este tipo de informação. Na realidade, é exatamente o contrário.

    O tipo de guiões que devem ser escritos no FrenesiDeEscrita são os chamados guiões literários. O seu objetivo é contar a estória do filme de uma forma envolvente, que transporte o leitor para dentro do universo dramático e o ajude a imaginar o filme.

    Indicações de planos ou movimentos de câmara, paradoxalmente, têm o efeito contrário. Em vez de prender o leitor, quebram o fluxo da narrativa e afastam-no do filme imaginado.

    O tipo de direção que podemos fazer num guião é indireta e subjetiva. Por exemplo, se escrevermos

    A ponta do pé de Rita bate no chão em cadência acelerada.

    sugerimos implicitamente um CLOSE UP do pé de Rita, sem precisar de o explicitar.

    Não perca tempo a dar indicações de câmara no seu guião. Os leitores não gostam – e os realizadores também não.

    8 comentários em “Dicas de Escrita do Frenesi 2013 – quarta semana”

    1. João, eu não vou conseguir concluir com sucesso o frenesi. Bom, a definição de sucesso é algo relativa. Na realidade terei sucesso na medida em que concluirei o meu guião. Por isso também não será um fracasso. sobre isso escrevi 3 parágrafos aqui.

      Deixe-me agradecer e desejar boa sorte a todos os que conseguiram. Um dia deste haverá mais. Abraço.

    2. Prezado João Nunes, considero-o, a partir de agora um de meus tutores, mestres na arte de escrever guiões. Quero reproduzir aqui o trecho de uma nota que fiz enquanto escrevia o guião para o "Frenesi", foi no dia 26 de abril:
      "Interessante o meu processo de criação. Parece que quando passo alguns dias sem me importar em desenvolver a história, e quando eu sento de novo à frente do computador, a estória flui com graça e novas ideias, parece que ela se formou toda no meu subconsciente e agora vêm à tona. Seria legal poder criar sem a pressão de um prazo reduzido, mas sei que o Frenesi está aí para sentirmos como é trabalhar com prazo pré-definido."

      Outro sentimento que exprimi, no dia seguinte foi: "A melhor dica de roteiro que já recebi foi sobre "pensar em termos de sequências e não em termos de cenas". Como isso ajuda a desenvolver melhor a história e a melhorá-la a cada revisão".

      Gostaria de lhe agradecer por ter realizado esse desafio, sem ele certamente eu ainda estaria com os meus roteiros de curtas-metragens em meu computador. Aprendi mais sobre mim mesmo e agora sei que sou capaz de escrever um roteiro de longa-metragem.

      Att,

      Richardson Luz

      1. Obrigado pelas suas palavras simpáticas. Muito interessante essa reflexão sobre o subconsciente. Também acredito que a criatividade funciona assim. Por isso há aquela expressão de “ir dormir sobre um assunto”. Podemos não estar a pensar nele conscientemente, mas estamos a processá-lo internamente.

        A sua última frase também é muito esclarecedora. O principal obstáculo no caminho dos nossos projetos somos normalmente nós mesmos. Quando as circunstâncias nos obrigam a afastar “esse” obstáculo conseguimos quase sempre alcançar o que nos propomos.

    3. Paulo H. de Aragão

      Olá, João!
      Não consegui terminar o guião no prazo… Mas avancei bastante! Teria escrito bem menos se não fosse pelo desafio. E menos ainda se não fossem suas dicas e incentivos diários. Agora é continuar no ritmo e logo terei uma primeira versão.
      Obrigado por nos adotar, órfãos do finado Frenzy. Adorei participar do FrenesiDeEscrita 2013 e que venham os próximos!!!

      1. Para o ano irei preparar o Frenesi com mais antecedência, divulgá-lo melhor e dar ainda mais apoio aos participantes. Uma das sugestões de um participante foi a criação de uma página no Facebook reservada aos participantes. Este ano não o fiz, pois já tinha muita sarna para me coçar, mas para o ano será possivelmente uma boa ideia. Entretanto, continue o seu guião. Obrigado pela participação e bos escritas.

    4. Menos uma para ler, :-))!

      Não consigo cumprir este desafio mas envio na mesma um sorriso de Portugal a todos os participantes!

      Vou continuar a ser uma fiel leitora deste excelente site e a não me importar de louvar sempre a disponiblidade, simpatia e generosidade do sr. João Nunes ao longo deste concurso.

      Aprendi que o Trelby é super bom e fácil de trabalhar e que preciso de outros trinta dias para mais umas 30 páginas.

      Bom esforço para quem ainda estiver  a penar os últimos retoques!

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