O Nuno Markl, que conheço desde os tempos das Produções Fictícias, não precisa de apresentações em Portugal. Quem não esteve enfiado num tanque de privação sensorial nos últimos 15 anos não só o conhece como é fã. Para os leitores de outras partes do mundo, é pensar num humorista, radialista, cronista, autor e ilustrador que seja simultaneamente talentoso, generoso e consensualmente querido – o Markl é esse.
Para nos fazer inveja a todos nós, comuns mortais, o Nuno acrescentou agora aos seus múltiplos talentos o de guionista de cinema. O filme que escreveu, Refrigerantes e Canções de Amor, estreou há poucos dias nas salas de cinema portuguesas. Foi para mim um prazer tão grande vê-lo como é agora publicar esta entrevista. Bem-vindos ao mundo muito particular dos dinossauros cor-de-rosa e da carrinhologia.
Nota: a entrevista contém muitos spoilers
João Nunes: Olá Nuno, obrigado por teres aceitado esta entrevista. Como tem sido o feedback do público em relação ao Refrigerantes e Canções de Amor?
Está a ser incrível. Estamos no domínio dos chamados “poucos mas bons”. Todos os dias recebo no meu Facebook mensagens de pessoas literalmente apaixonadas pelo filme, com vontade de o rever… Está a desenhar-se uma certa onda de culto à volta do filme, o que é interessante! O público está a gostar; os críticos nem por isso. Mas mesmo as críticas mais negativas têm louvado as virtudes do argumento, o que me deixa contente. Acho que mesmo quem não gostou do filme terá percebido que se estava ali a tentar fazer algo de novo e diferente.
Infelizmente os números de bilheteiras são abaixo das expectativas – cerca de 8.000 bilhetes vendidos até ao fim de Agosto (números mais recentes disponíveis à data desta entrevista). Porque é que o público português adere tão pouco ao cinema nacional, mesmo quando as propostas não são “elitistas”, como é o caso deste R&CA?
Vou ser sincero contigo: as minhas expectativas eram muito baixinhas. O que faz com que eu não esteja minimamente chocado com os resultados. O público adere a um super-blockbuster como A Canção de Lisboa: está em muitos cinemas, a promoção é bombástica, o conceito de remake de um clássico é, à partida, poderoso, o elenco tem muita gente conhecida (incluindo eu próprio, ah ah), os acordos de publicidade com empresas como os CTT asseguram uma exposição tremenda – quando vamos a uma estação dos correios o trailer está a passar em loop nos ecrãs, lá dentro… É irresistível. E é bom, de várias maneiras.
É bom porque o Pedro Varela é um óptimo argumentista e realizador e merece que as pessoas conheçam o trabalho dele; é bom porque o César Mourão e o Miguel Guilherme são tesouros nacionais, cada um na sua geração mas chegando a várias gerações diferentes; é bom porque A Canção de Lisboa é, quanto a mim, o filme mais bem construído dos três remakes; e é bom porque, mesmo que não fosse, é mais um filme que abre as portas do interesse do público no cinema português.
Hoje as pessoas vão ver um filme grande de comédia como A Canção de Lisboa; amanhã irão se calhar ver algo diferente, como o São Jorge, do Marco Martins. Porque um blockbuster como estes que o Leonel Vieira tem produzido, têm o grande mérito de poder plantar uma semente de interesse, de possibilidade: “Se calhar o cinema português não é o cliché preguiçoso que achamos que é”. E não é. Hoje o cinema português é muita coisa diferente. Olhas para A Canção de Lisboa, o Refrigerantes e Canções de Amor, o São Jorge, As Mil e Uma Noites, o Capitão Falcão – tudo isto são propostas muito diferentes umas das outras.
Dito isto: o Refrigerantes e Canções de Amor não teve o apoio de uma máquina publicitária gigante como A Canção de Lisboa, nem uma distribuição tão extensa – e não me estou a queixar, a natureza do filme é outra – e é um pobre liliputiano a combater gigantes como o Star Trek: Beyond ou O Mecânico. Estava fadado para ser esmagado. Só que é um esmagamento doce, porque de facto as pessoas que o vêem gostam muito, passam palavra – acho que o filme fica no coração das pessoas que o vêem. Teria sido infinitamente mais doloroso o Refrigerantes ser esmagado pelos gigantes e, ao mesmo tempo, odiado pelo público. E felizmente o que se passa é o contrário: fico emocionado com as coisas que têm sido ditas sobre esta minha história de amor improvável.
Já deves estar farto de contar como surgiu a ideia, mas podes fazê-lo mais uma vez, para benefício dos leitores que ainda não ouviram a estória?
A maneira como a ideia surgiu foi a mais orgânica e sincera de sempre, desde que escrevo. Geralmente escrevo de uma maneira mais fria: ponho-me a pensar em ideias, nem que estejam distantes do meu universo, baseando-me em critérios como “será que isto tem piada?”. Este argumento não foi assim. Nem sequer era um argumento, no arranque. Foi só um desabafo das entranhas.
O meu primeiro casamento tinha terminado, e terminou bem. Eu julgava que estava em paz com a minha nova situação de divorciado, a viver sozinho. E de repente há o dia em que eu tenho de ir ao supermercado fazer compras, pela primeira vez, sem a pessoa com quem as fazia, de maneira rotineira, há dez anos. Foi quando o terrível peso da solidão me caiu em cima. Ali mesmo, no mais frio e desapaixonado local de todos: um supermercado. Vejo-me ali rodeado das coisas que comprávamos em conjunto – ”olha ali o nosso papel higiénico”, ”olha ali as nossas bolachas preferidas”, etc – e fico destroçado pela solidão. Portanto acabei as compras a correr e fui para casa. Outra pessoa se calhar enfrascava-se; eu fui para o computador escrever. Nessa altura não sabia bem o quê: notas para algo que tanto podia ser um conto, como um sketch, como uma sitcom, como um filme. Sobre a maneira como as pequenas coisas se tornam nas mais gigantes, numa situação destas de súbita solidão. A maneira como as rotinas se tornam um ideal romântico que passou e que, quem sabe quando volta?
Ao mesmo tempo cruzei-me com uma daquelas notícias bizarras que uso na rádio, no Homem Que Mordeu o Cão, sobre uns tipos que andavam a tentar fazer singrar, na América, o conceito da “Carrinhologia” – a arte de traçar perfis e engatar pessoas no supermercado encontrando compatibilidades entre conteúdos de carrinhos. Achei maravilhoso e nessa altura senti que podia estar ali um ponto de partida engraçado para uma sitcom passada num supermercado, lugar onde se concentram solitários deprimentes em busca do amor. Até lhe dei um título provisório: O Carrinho da Esperança. Mas percebi que tudo aquilo estava a ficar negro, cínico e desesperado. Nada contra negrume, cinismo e desespero – são óptimo material para ficção – mas senti que tudo aquilo estava mesmo a caminhar para um abismo. É então que – na vida real – apaixono-me outra vez e a história dá uma reviravolta. Surgiu-me a ideia da possibilidade de um romance entre um homem solitário e a rapariga misteriosa que trabalha como mascote de uma marca de sumos no supermercado, encerrada dentro de um fato de dinossauro cor-de-rosa. E foi aí que comecei a perceber que talvez estivesse ali um possível filme, mais do que uma sitcom.
Como foi o teu processo de escrita em relação a este guião? Passaste por tratamentos, escaletas, etc. ou foste direto ao assunto?
Uma vez descoberta a história de amor entre o rapaz e a dinossaura, todo o caos de documentos que eu tinha e que incluíam esboços de tratamento, questões infindáveis sobre a natureza do projecto, pequenos excertos de diálogo e ideias avulsas, tudo isso acabou por dar origem àquilo que eu faço questão de fazer sempre antes de escrever um guião: um tratamento a sério. A história toda definida do princípio ao fim. Sou incapaz de começar a escrever diálogos sem saber para onde vou.
Uma vez “satisfeito” – e tenho de fazer aspas em “satisfeito” porque é muito difícil neste ofício estar satisfeito; ou então sou eu que sou inseguro como o raio e acho sempre que as coisas nunca estão no ponto – comecei a escrever o argumento. E acabou por ser um processo bastante fluído e que me deu muito gozo. Talvez por haver tanta coisa tão pessoal naquela história, foi das coisas que escrevi que mais fluidamente me saíram. Era como se estivesse possuído pelas personagens. Fiquei surpreendido com a maneira como as vozes delas me saíam pelos dedos de forma tão clara!
Mais especificamente, como se diferencia esse processo em relação aos outros tipos de escrita de humor que tu praticas: stand up, sketches, crónicas, etc.?
O processo de escrever um filme é mais interessante. Eu adoro o que faço no meu dia-a-dia – trabalhar em humor puro e duro, assegurar que há sempre coisas engraçadas para dizer de manhã na rádio – mas esse já é um processo muito intuitivo e quase rotineiro. Neste momento não estou a escrever sketches para lado nenhum, mas nos tempos d’Os Contemporâneos ou do 5 Para a Meia-Noite era a mesma coisa: essas pequenas unidades cómicas dão trabalho – temos de ser certeiros porque temos pouco tempo para mostrar o que valemos – mas não têm a natureza de puzzle que teve um argumento como o Refrigerantes e Canções de Amor. E eu gosto de puzzles. Gosto de Lego. Vejo a construção de um argumento um bocado como construir um daqueles edifícios enormes de Lego. Sim, sei que é infantil citar Lego e não McKee – mas o que é que queres? Sou o Markl.
Concordo completamente contigo quanto a essa ideia do guião enquanto puzzle, e alguns são bem demorados de montar. Quanto tempo demoraste a escrever este? Foi seguido ou teve intervalos pelo meio?
Quando ainda não sabia bem para onde ia tive aquele intervalo pelo meio desde o momento em que pensei ”isto está demasiado negro, desesperado e sem saída” até ao momento em que me apaixonei e criei a dinossaura cor-de-rosa. Mas depois foi rápido. A preparação da história, para mim, é o que demora mais. Uma vez encontrado o esqueleto, dá-me tanto gozo escrever o argumento, que em poucas semanas intensas está escrito.
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Por quantas versões passaste, até ficares satisfeito?
Seguramente umas quatro ou cinco. A primeira versão tinha uma fragilidade irritante: todas as personagens – à excepção do Lucas e da Dinossaura – estavam subdesenvolvidas. Depois de dar mais história e mais profundidade, por exemplo, às personagens do Pedro, o rival do Lucas, e da Carla, ex-agente e ex-namorada do Lucas, as restantes versões centraram-se mais no final da história. Aí já com o Luis Galvão Teles também a dar o seu input, bem como os actores.
Algumas das coisas de que gosto mais na cena climática do supermercado, na versão final, vieram do João Tempera. A maneira como a personagem dele, o Pedro, se arrepende de ter contratado o mercenário, o Navalhas (interpretado pelo Sérgio Godinho) para provocar um atentado em si próprio e tenta explicar-lhe por gestos que a encomenda está sem efeito, coisa que o Navalhas não percebe – adoro isso. E isso é 100% Tempera. Bem como a ideia do Navalhas encher o carrinho dele com armas de plástico de modo a esconder a verdadeira dele lá no meio – tudo isso surgiu de conversas com o elenco.
Adoro trabalhar criativamente com os actores, afinar o texto para eles. Já era assim n’Os Contemporâneos – era um projecto em que o trabalho em cada episódio começava com actores e guionistas sentados à mesma mesa. Esse diálogo é precioso.
Em que fases deste a ler a alguém de fora o guião? Foi a amigos, familiares, colaboradores – ou foi logo para o produtor Luís Galvão Teles?
Uma das primeiras pessoas a quem dei o guião a ler foi o Filipe Melo, de quem sou amigo e fã, e que convidei para se juntar ao projecto como realizador. Era ele que ia, inicialmente, realizar o Refrigerantes e Canções de Amor, e há sugestões e toques dele, absolutamente preciosos, no argumento.
Depois dei a ler à Cláudia Semedo, actriz, com quem eu trabalhava na altura na Antena 3. A Cláudia foi o Big Bang deste projecto, porque ela era amiga do Luis Galvão Teles e foi quem lhe levou o argumento. E amigos e familiares também deram o seu input – uma das pessoas foi a Ana Galvão, com quem viria a casar e que, de certa forma, inspirou a dinossaura, de uma maneira metafórica.
Mas houve mais pessoas. A dada altura considerou-se a possibilidade de, em vez de um filme, fazer do Refrigerantes uma série televisiva. Nesse ponto deram algumas ideias pessoas como o Gonçalo Galvão Teles, a minha irmã, Ana, e a Maria João Cruz. Algumas das ideias para a série acabaram por contaminar o argumento do filme.
Como é que surgiu o Luís e a Fado Filmes neste processo?
Via Cláudia Semedo. A Cláudia apresentou ao Luis, enquanto produtor, este projecto – um filme escrito por mim, realizado pelo Filipe e, nessa altura, com ela como actriz, o que acabou por não acontecer devido a algumas reviravoltas chatas e dolorosas que não vale a pena contar neste teu blogue, que é dedicado a processos mais pacíficos como a escrita. Marcámos um almoço, a Cláudia, o Luis e eu, e foi nesse almoço que ele me disse que tinha adorado o argumento e tinha ficado surpreendido por aquilo ser cinema. Era compreensível o cepticismo inicial dele – o meu nome estava ligado a sketches, crónicas, comédia em miniatura. Quando ele começou a ler, creio que o fez para fazer a vontade à Cláudia, mas acabou por perceber que não havia só sketches e piadas curtas na mente Markliana. Gostou genuinamente do argumento e foi à luta para tentar encontrar apoios para o concretizar.
Entretanto, o Filipe tinha projectos dele para apresentar ao ICA e pediu para continuar ligado ao filme mas não como realizador. Nessa altura ainda se chegou a falar na possibilidade de ser o Bernardo Nascimento a realizar. O Bernardo fez aquela curta-metragem magnífica, North Atlantic, passada numa torre de controlo, para além do trabalho que já fez como assistente de realização em filmes como o Kick-Ass, do Matthew Vaughn. Gostei da reunião que tive com ele, é o tipo de pessoa com quem me vejo facilmente a trabalhar; no entanto percebi que uma das condições que ele impunha para entrar nisto – e é compreensível – é que, sendo ele próprio argumentista, pretendia mexer muito na história e dar o seu próprio tom.
Por mim, dei-lhe carta branca, até porque ele pretendia mexer sempre com o meu conhecimento e autorização. Já tinham passado alguns anos desde a escrita e houve ali uma altura em que eu me desliguei um bocado deste argumento, e como era fã do North Atlantic pensei: “Talvez este gajo possa dar aqui uma frescura a esta história”. Mas depois o Bernardo saiu e foi nessa altura que o Luis entrou como realizador. O argumento manteve-se o original.
Como lidaste com as notas e comentários que recebeste para o R&CA? Mudaste muita coisa no guião?
Lidei bem, acho que vieram óptimas contribuições das mais variadas pessoas. Eu não sou um ditador fascista com os meus argumentos. Nem tenho credibilidade para o ser – os Irmãos Coen ou o David Mamet têm todo o direito de exigir que as palavras, as pausas, as respirações, sejam escrupulosamente respeitadas. Eu sou só um Markl. Não mudei muita coisa, foram mais coisas de detalhe, as que vieram sob a forma de notas e comentários. Tirando o já referido desenvolvimento das personagens secundárias, que, esse sim, foi profundo.
O Refrigerantes foi um dos raros filmes portugueses em que senti que o orçamento estava adequado à estória e não fiquei com aquela impressão de que “precisava de mais uns tostões para ter ficado bem”. Isso foi abordado e influenciou o processo de escrita ou, simplesmente, deu tudo certo? (Ou não concordas com essa minha impressão e gostavas mesmo de ter tido mais dez milhões de euros?)
Olhando para o filme, o orçamento parece o adequado. Conseguimos ter um cenário do caraças do supermercado – e adorei que ele tenha sido construído de raiz, em vez de se ir filmar para um supermercado real – e um director de fotografia extraordinário, o Gustavo Hadba, que veio do Brasil para fazer isto e cujo talento a iluminar e a filmar uma cena tornaria até uma peúga numa coisa fixe.
Mas digo-te que se tivéssemos tido mais dinheiro, tínhamos conseguido uma coisa que, lamentavelmente, não foi possível e era importante. Eu sou um grande geek musical e este argumento é, todo ele, muito musical. No argumento eu acrescentei referências a canções clássicas, estrangeiras e portuguesas, que não eram só papel de parede musical – eram coisas narrativamente relevantes. Canções que o DJ do supermercado, a personagem do André Nunes, iria passar para aumentar o efeito da carrinhologia do Lucas, por exemplo. O problema é que os direitos dessas canções são astronómicos. Mas o filme teria ficado melhor com essas canções.
É uma das coisas que me dói mais, não termos tido orçamento suficiente para usar as canções que eu tinha planeado. Há uma deixa do Ivo Canelas, no filme, que é um resquício desse meu sonho: quando ele diz à personagem da Jacqueline Corado, “já ninguém pensa que isto são duas pessoas a fazer amor”, o que estava planeado era estar a tocar o Je T’Aime (Moi Non Plus) do Serge Gainsbourg e da Jane Birkin.
As comédias parecem estar em alta neste momento no nosso país. Quais os teus conselhos para os guionistas que queiram escrever neste género?
Para pensarem mais na história e menos nos gags. A ideia que tenho – e posso estar errado, mas dou-me bem com ela – é que a comédia sairá tanto melhor, quanto mais sólido for o esqueleto narrativo da coisa. Uma vez descoberta a história, aí sim, podemos ornamentá-la com piadas. Mas a história acima de tudo.
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Absolutamente de acordo. Passando ao lado mais processual: onde é que costumas escrever? E quais são os teus horários e ritmos normais de escrita?
Escrevo em casa, na minha boa velha cave. Que, apesar de cave, tem um janelão grande onde entra luz natural. Mas se me surge alguma ideia fora de casa, tenho de tomar nota – por isso ando sempre ou com um caderno, tipo Moleskine, ou então abro uma nota no telemóvel e vai mesmo ali a golpes de polegar. Como tenho horários rígidos nas outras coisas que faço – como a rádio – a escrita de um argumento como este tem de ser à volta disso. Mas não tenho uma disciplina de horas. Sei que sinto uma tremenda urgência de escrever e de acabar um argumento. Assim que o começo e que me sinto à vontade com a estrutura, torno-me algo voraz a escrever. Às vezes uso as férias para escrever. Um dos dois outros argumentos que tenho prontos e nos quais queria começar a trabalhar o quanto antes, o Por Ela (que foi a crowdfunding há uns anos), foi escrito num Agosto em que me concentrei nele e o fiz numa semana intensa.
O que usas para escrever: papel e caneta? Computador? Software? O quê e porquê?
Papel, caneta, computador, tablet, telemóvel. Dependendo do sítio em que estiver. Quanto a software, ou uso o Word é aquela macro lendária que o Miguel Viterbo criou para as Produções Fictícias e que hoje está por todo o lado, ou, mais recentemente, o Final Draft, que é, de facto, uma maravilha. Não é só hype.
Quais seriam as condições ideais para escreveres o grande guião da tua vida?
Não sei bem o que é “o grande guião da minha vida”… Estes três que escrevi, o Refrigerantes e Canções de Amor, e os dois que ainda não estão feitos, o Por Ela e o Manual de Instruções, todos eles são, de alguma forma, guiões da minha vida. Não sei se grandes, mas todos eles são pequenas histórias intensas e pessoais que me saíram das entranhas. Portanto talvez o meu objectivo não seja escrever “o grande guião da minha vida”, mas muitos pequenos guiões da minha vida que, se possível, formem uma obra de que não me envergonhe e que divirta as pessoas.
Creio que tenho as condições ideais para os escrever – a minha imaginação vai funcionando, tenho hardware, software e só gostava de ter um bocadinho mais de tempo; o problema é que nem sempre há as condições ideais mas para os concretizar. Mas, sinceramente, acho que já estivemos pior. A minha experiência com a NOS, que detém o monopólio da distribuição e é quase sempre vista como “o Mal”, foi bastante boa: encontrei lá pessoas que, apesar de quererem, legitimamente, que os filmes que põem nas salas façam dinheiro, não descuram a integridade dos autores.
A Victória Guerra é uma atriz lindíssima mas tu conseguiste o feito de mantê-la escondida dentro de um fato de dinossauro cor-de-rosa até ao fim do filme. Primeira pergunta: não tens vergonha? Segunda pergunta: foi muito difícil convencer o produtor/realizador a aceitar essa opção narrativa?
A verdade é que tenho vergonha, sim! Quando o processo de produção do filme arrancou, mandei um e-mail à Victoria a dizer-lhe “desculpa, desculpa por te obrigar a estares fechada dentro de um fato de dinossauro e de, depois de teres feito o filme final do Andrzjev Zulawski, ires fazer o primeiro argumento do Nuno Markl, que envolve supermercados e dinossauros cor-de-rosa”. Mas o entusiasmo dela acalmou-me. Ela respondeu-me a dizer que queria mesmo fazer a dinossaura cor-de-rosa que eu tinha imaginado, que lhe ia dar tremendo gozo interpretar uma personagem baseando-se sobretudo em gestos e voz e pedia-me input sobre as ideias que eu tinha para a personagem.
O Luis desde o início que achava essencial respeitar a ideia de manter a actriz que fizesse de dinossaura dentro do fato. Temíamos que a NOS, parceira do filme na distribuição, não achasse a mesma piada a essa ideia, mas acharam – a única coisa que exigiram era que não se escondesse a Victoria nos cartazes do filme. O que é um bocado spoiler. Mas pronto: isto não é bem um argumento dependente de twists e revelações bombásticas, não é um Shyamalan!
Há lições a tirar daí?
A lição que tiro é que às vezes ter a coragem de propor uma coisa inesperada e bizarra compensa. Haver uma actriz principal talentosa e linda fechada num dinossauro cor-de-rosa vai contra todas as regras das comédias românticas em que é conveniente o espectador ver o rapaz e a rapariga. Não no nosso caso. Não sei se isso faz com que o Refrigerantes não faça os mesmos números de público que outras rom-coms, mas acho que a história fica bastante mais interessante assim!
Contribuiu seguramente para a personalidade muito especial do filme, e para esse lado de filme de culto que referiste no início. Para fechar: um passarinho disse-me que querias escrever e realizar tu mesmo um próximo filme. Há novidades quanto a isso?
Sempre fui relutante quanto a isso, sempre me vi como um tipo que escreve histórias e depois que venha alguém com talento para as dirigir que as transforme noutra coisa. Mas durante o processo do Refrigerantes e Canções de Amor, dei por mim a fazer uma coisa que suponho que seja normal, e que era contestar algumas opções de produção e realização. E admito que fui chato. Há muitas coisas que, na minha mente, não eram como estão no filme. Mas a verdade é que a partir do momento em que vendes um argumento a alguém, e é destacado um realizador para o dirigir e actores para o interpretar… Aquela história já não é só tua. E tens de aceitar e respeitar as outras interpretações e visões.
A única coisa que podes fazer, se te sentes “control freak” da tua obra, é, se calhar, pegares na tua própria história e realizá-la. Tem havido muito boa gente a pressionar-me para isso – o Filipe Melo, por exemplo. O Saul Rafael, responsável pelo cinema português da NOS. Por isso começo a ter vontade de perceber se poderei fazer isso. Talvez não me abalance sozinho, no início. Sou pessoa para chamar o Filipe para realizar a meias comigo. Mas pode acontecer no que toca ao argumento Manual de Instruções, que é uma comédia sobre os papéis das pessoas dentro de uma família e que tem a ver com a minha recente separação. Como diz o Filipe Melo, de cada vez que me separo, escrevo um argumento!
Bom, quase fico tentado a desejar-te muitas separações, mas tenho a certeza que deve haver estratégias melhores para desenvolver a tua carreira de guionista de cinema. Uma vez mais, obrigado pela entrevista, e boa sorte para todos os projetos futuros.
Brinde especial
Por simpatia do Nuno Markl, pode ler de seguida alguns excertos de cenas que ficaram excluídas da versão do filme que está nas salas. Para ler as restantes, terá de esperar pela edição ilustrada do guião em livro, que está nos planos do autor.
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