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Paulo Filipe Monteiro: é assim que eu escrevo

    O meu amigo de muitos anos Paulo Filipe Monteiro estreou no início deste ano a sua primeira longa-metragem, Zeus. Era impensável não o desafiar para uma destas entrevistas aqui no blogue, desafio que felizmente ele aceitou.

    Paulo Filipe Monteiro fez a dramaturgia e encenação de 16 espectáculos. Como actor, participou ainda em várias peças, em dez longas-metragens portuguesas e estrangeiras e em 39 telefilmes e séries de televisão. Ganhou o Prémio Revelação da Crítica, com o espectáculo Drama em Gente.

    Especializou-se em guionismo em França, Itália e Estados Unidos. Escreveu a adaptação da novela de Camilo A Viúva do Enforcado, realizada por Walter Avancini. Escreveu sete longas-metragens. Escreveu a peça de teatro Área de Risco, estreada em 1999 na Fundação Gulbenkian. Tem feito dramaturgia para espectáculos de dança. Foi vários anos Presidente da Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos, fundador e membro da direcção da Federation of European Scriptwriters. Realizou o filme de 25 minutos Amor Cego (2010, Prémio do Júri no Festival Córtex) e a sua primeira longa-metragem, Zeus (2017, já com oito prémios).

    Ensina Drama, Cinema e Ficção na Universidade Nova de Lisboa, onde é professor catedrático. Foi professor convidado nas Universidades de Coimbra, Évora, Santiago de Compostela, Federal da Bahia, Federal do Maranhão, UFRJ e UERJ.
    Tem publicado numerosos artigos, assim como seis livros – os últimos dos quais Os Outros da Arte, Drama e Comunicação (Prémio Joaquim de Carvalho 2011) e Imagens da Imagem.

    O seu filme Zeus teve estreia mundial em Mombai, no 4th Indian Film Festival, a 18 Sept 2016. Mas depois foi remontado, para responder a pedidos dos coprodutores argelinos, e estreou de novo a 5 de Janeiro de 2017 na Cinemateca e nos cinemas.

    Em Mombai ganhou o prémio de melhor actor principal (Sinde Filipe). No festival Caminhos do Cinema Português ganhou 4 prémios: Melhor actor principal (Sinde Filipe), Melhor Actor Secundário (Miguel Cunha), Melhor Guarda-Roupa (Silvia Gabovski) e Melhor Caracterização (Sara Menitra).

    Ganhou ainda os seguintes prémios CinEuphoria: o Miguel Cunha voltou a ganhar o prémio de Melhor Actor Secundário e ficou ainda incluído na categoria “Someone to Watch”. O João Ribeiro pela Direcção de Fotografia de vários filmes, entre os quais Zeus. E Zeus ficou ainda no Top do Ano.

    Paulo Filipe Monteiro
    Paulo Filipe Monteiro – foto por José Pinto Ribeiro

    Olá Paulo, parabéns pelo teu último filme, Zeus, que escreveste e realizaste. Como surgiu a ideia para esse guião?

    A ideia surgiu quando tive conhecimento desse gesto desmesurado, inverosímil, do Teixeira Gomes, Presidente da República, que ao fim de 26 meses de mandato deixou tudo e partiu no primeiro barco que saísse de Lisboa. Nunca mais voltou. Em jovem, eu já tinha ficado fascinado com um livrito sobre um papa (ficcionado) que largava o Vaticano e depois, como chauffeur de táxi, ia ouvindo os comentários sobre o seu desaparecimento…
    Depois, à medida que fui conhecendo o Teixeira Gomes, mais coisas me entusiasmaram: um grande escritor de literatura com grande carga erótica chegar a Presidente da República é caso único no mundo! A sua admiração pelo mundo árabe, em contracorrente à actual diabolização do Islão, é muito actual. Bem como a sua luta contra a especulação financeira e contra as crises bancárias…

    E o título, quando e porquê chegaste a ele?

    Desde o início que o usei como título de trabalho. Mantive-o porque realmente foi sempre esse gesto de partir no navio Zeus o ponto mais alto da sua vida, o que faz com que ainda hoje pensemos nele. E gosto de títulos curtos.

    Foi difícil passar da escrita para a produção do filme? Podes resumir o processo e contar um ou dois episódios mais interessantes?

    Sendo um filme de época, para ser feito com credibilidade precisávamos de muito dinheiro. Arranjámos uma coprodutora argelina – que passados uns meses foi nomeada Ministra da Cultura, o que não nos ajudou nada, pois não podia dar dinheiro a um projecto em que estivera envolvida. Arranjámos outra, concorremos aos fundos de lá: e aí iniciou-se todo um longuíssimo processo, em que acabei por ter quatro pessoas na Argélia a reescrever comigo o guião, uma delas o presidente da Comissão de Leitura. Cheguei a perguntar se era uma comissão de leitura ou uma comissão de escrita… Era natural que, para darem dinheiro, quisessem que o filme não tratasse a Argélia como mera paisagem; isso serviu até para desenvolver a trama argelina. Mas exageraram muito nas exigências e pressões, estendendo-as a questões estéticas que não eram da sua conta. Enfim, fez-se e tivemos 400 mil euros de lá. Mas, por muito que tenha trabalhado a integração de tudo, há uma ou outra cena que eu preferia não ter incluído.

    Como é o teu processo de escrita normal? És de tratamentos, escaletas, etc. ou passas de imediato ao guião? Desenvolves biografias de personagens, etc?

    Começo por recolher material, ideias, desde o conceito do filme até a farrapos de diálogo. Depois passo directamente à escaleta, sem a qual não posso começar a escrever – mesmo que depois ela vá sendo alterada.

    Neste guião, foi também assim? O que teve de diferente?

    Foi. Teve de diferente, além da intervenção argelina que já referi, o facto de jogar com a alternância entre três blocos, que não foi só encontrada no computador ou no papel, também foi sendo posta à prova e alterada na sala de montagem.

    Quanto tempo costumas levar a escrever um guião de cinema, e a que ritmo?

    Não sei, cada caso é um caso. Posso dizer que estou a fervilhar com o novo projecto e espero ter o guião pronto em Abril.

    Por quantas versões passas, em média, até estares minimamente satisfeito?

    A rodagem de Zeus foi feita com a 15ª versão. Noutros filmes foi bastante menos, mas há sempre várias versões, faz parte do nosso ofício.

    Zeus imagem
    Sinde Filipe, em Zeus

    Trabalhas bem em parceria? Como é que divides as tarefas normalmente quando escreves em parceria?

    A melhor parceria que tive foi talvez com o Walter Avancini na adaptação da novela do Camilo, A Viúva do Enforcado, na abertura da SIC. Ele era muito exigente, controlava tudo: mas em mim confiava tanto que eu levava o guião de um episódio e ele mandava logo fotocopiar para todos, sem ler, todos ficavam espantados; depois eu mostrava-lhe a escaleta do episódio seguinte, ele dava sugestões e eu avançava.

    Com o João Mário Grilo também aprendi muito: ele dava mais o enquadramento macro, político, digamos, do filme, e depois eu ajudava a enchê-lo de carne e sangue, de seres vivos, de cenas e diálogos. Digamos que eu tinha mais a parte dramática.

    Com o Fernando Lopes foi sui generis, tudo se discutia à mesa do restaurante, o que para um guionista não dá muito jeito – onde ficam os papéis e canetas? Mas foi também uma aprendizagem, porque ele sabia como queria montar as cenas, escrevíamos a pensar na montagem.

    Agora, comigo a realizar, tive a óptima colaboração do Luís Mário Lopes, um excelente dramaturgo e guionista: não escreveu nenhuma linha, o que lhe pedi foi que me ajudasse a montar o puzzle, especialmente complicado em Zeus porque temos três blocos que alternam. Ajudou-me a encontrar a lógica dessa alternância: mesmo quando não concordei com ele, tive de tornar mais claras as razões das minhas escolhas.

    Em que fases dás a ler a alguém aquilo que escreves? É a amigos, colegas, familiares – ou logo para o produtor?

    Não é nada logo para o produtor! Nem para os actores. Gosto muito de dar a ler a alguns amigos mais próximos, nas fases de pousio, quando o guião está de molho para depois lhe voltar a pegar. Essas reacções podem ser muito úteis.

    Como lidas com as notas e comentários de terceiros, produtor, realizador, leitores?

    Nos meus cursos de guionismo, alerto logo na primeira aula que temos de ter uma personalidade especialmente aberta ao diálogo. Faz parte do nosso ofício tomar as opiniões dos outros como desafios: ou para ir ao seu encontro ou para tornar mais forte o que já queríamos.

    Como foi a relação entre o Paulo Filipe Monteiro guionista e o Paulo Filipe Monteiro realizador?

    Em geral demo-nos bem. Mas acho que o guionista não deixou o realizador cortar tanto texto como deveria – há texto a mais. Muitos comentários de quem viu dizem que não há uma palavra a mais ou a menos, mão eu acho que sim, há texto a mais, apesar do muito que se cortou (antes da rodagem e depois, na montagem). Mas o guionista ficava cheio de pena quando se cortavam partes…

    Por outro lado, foi confortável: o realizador estava totalmente por dentro das intenções do guião, das explícitas e das quase inconscientes, e sentia o que era fundamental manter.

    Qual é a tua abordagem às reescritas, que processo usas?

    Se é uma mudança de estrutura corto os cabeçalhos todos em tirinhas e espalho pela sala – foi aí que o Luís Mário Lopes entrou. Se é de cortes, vou relendo e marcando o que talvez possa sair. Se é diálogos, é nos espaços e tempos mais insólitos que me vêm ideias.
    Fundamental na reescrita é deixar por vezes pousar, estar um tempo sem pensar no guião para depois voltar a ele com mais perspectiva.

    Onde é que costumas escrever? E quais são os teus horários/ritmos normais de escrita?

    Há uma parte disciplinada, sentado à mesa com grande concentração durante horas, naquela conhecida sensação de nem saber quem está a escrever aquelas cenas. Mas talvez as melhores coisas que ali uso me venham de ideias que tive na cama, antes de adormecer ou ao acordar, ou ao fazer desporto, ou no carro… Felizmente que as anoto (ou dito) logo.

    O escritório de Paulo Filipe Monteiro

    Que apetrechos usas para escrever: papel e caneta? Computador? Software? Quais e porquê?

    Uso um gravador para ditar ideias, ou papel e caneta. Mas o guião em si escrevo-o em word. Ainda não me dediquei aos softwares de escrita (Final Draft, Scrivener, Scapple…), tenho sido bastante conservador, ou preguiçoso. Tenho receio que o computador não me obedeça: se ele começar a fazer coisas que eu não pedi posso distrair-me.

    Quais seriam as condições ideais para poderes escrever o grande guião da tua vida?

    Talvez um retiro, sem distrações. Mas já depois de ter recolhido todo o material, textos, imagens, ideias, mesmo as ideias mais descosidas e loucas: só aproveitarei uma parte mas ela fará a diferença. Quando estou obcecado com um guião, tudo me dá ideias, os sonhos, os filmes que vejo, as fotografias, as músicas, as ruas…

    Mas um retiro só para escrever. Levarei também livros para as pausas, filmes para ver e discos. E no final do retiro seria óptimo virem os amigos comentar e depois os actores para lermos e em conjunto reinventarmos alguns elementos do guião.

    Obrigado, Paulo, e desejo-te o maior sucesso sucesso com Zeus e com os teus próximos projectos.

    Para terminar, o Paulo Filipe teve a simpatia de partilhar connosco a última cena dialogada do guião do filme, que pode baixar aqui.

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