A minha dúvida crucial é como narrar uma história com números de dança. (…) A questão é que não sendo coreógrafo fico pensando se no momento de narrar uma cena preciso descrever passos, coreografias especialmente criadas ou deixar isso a cargo de um profissional contratado pelo produtor do filme.
Leandro
Leandro, a sua questão é muito interessante.
Na realidade, uma cena de dança deve ser escrita como qualquer outra cena em que a componente da descrição dos movimentos e relações físicas dos intervenientes seja importante: uma luta, uma cena de humor físico, uma perseguição automóvel, uma operação cirúrgica, etc.
A última decisão quanto à versão filmada da cena será sempre do realizador, auxiliado pelo diretor de fotografia, coordenador de duplos, coreógrafo (de dança, de luta, de esgrima…) e outros consultores especializados que sejam chamados a intervir na sua concepção.
Mas até esses profissionais entrarem em campo a direção do filme está entregue ao guionista, e é da responsabilidade deste fazer com que qualquer leitor do guião perceba o tipo de ação que está a decorrer: o seu estilo, ritmo, tensão, duração, etc.
Por exemplo, na descrição de uma cena de luta não basta dizer “Rute e Maria lutam”. É preciso:
- descrever as etapas da luta – empurrão, puxão de cabelo, estalada, facada…;
- dar a entender o seu tom – engraçada, realista, dramática…;
- descrever o seu ritmo – lenta, em crescendo, frenética…;
- a sua duração – curta, longa…;
- e, finalmente, marcar bem as mudanças da relação dos intervenientes com o local onde estão, e entre si – sobem escadas, descem rampas, mudam de sala, um está por por cima, agora o outro…
Este processo pode ser moroso e alguns guionistas tentam fugir dele, passando rapidamente à cena seguinte, com a desculpa de que a cena não vai nunca ser filmada assim. Mas com isso arriscam-se a perder a oportunidade de demonstrar a um leitor do guião – ao produtor, por exemplo – o potencial cinematográfico que a cena tem.
Obviamente, há também que ter algum bom senso e encontrar o equilíbrio certo. Uma cena de acção demasiado escrita pode tornar-se maçadora e de leitura difícil; o truque é conseguir dar o máximo de informação sobre o andamento da cena com o mínimo de palavras e frases.
Já escrevi em tempos um artigo sobre a forma de escrever cenas de humor físico, mas deixo aqui mais algumas “regras” que se aplicam também às cenas de dança:
- uma cena de acção física é, no essencial, como outra cena qualquer. Tem um princípio, um meio e um fim; os intervenientes têm objectivos de curto e longo prazo ao entrar na cena – uns concretizam-se, outros não; há surpresas, contratempos, peripécias; acontecem coisas que mudam a acção da estória; etc. Por isso, antes de escrever a acção da cena, temos que pensá-la em termos da sua função dramática na estória: como é que os intervenientes entram na cena e como é que saem dela; o que muda no enredo; que informação importante o espectador recebe no seu decurso. As melhores cenas de acção – e de dança – são aquelas que fazem a estória evoluir e não são apenas um parêntesis para encher a vista.
- não é preciso escrever cada passo ou movimento, mas apenas aqueles que marquem momentos importantes na cena. Por exemplo, se o protagonista, depois de rodopiar no salão, sobe para cima do balcão e desliza de joelhos, isso deve ser descrito. Uma maneira de o conseguir é visualizarmos toda a cena na nossa mente, e anotar os momentos chave. Depois podemos seguir essa mini escaleta para construir a cena.
- o estilo de escrita deve dar o tom do ritmo da cena. Se é rápido, podemos usar frases mais secas, em parágrafos mais curtos e entrecortados; se o ritmo é lento, pelo contrário, podemos usar frases mais longas e elaboradas.
- devemos dedicar tanto ou mais tempo à escrita de uma cena de acção como a qualquer outra cena do nosso guião. Quanto mais complexa for ela, mais cuidado teremos de ter.
Por fim, termino deixando uma cena de dança que incluí no meu último guião 1. Espero que ajude.
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INT. DISCOTECA – MAIS TARDE
Um BARMAN está a passar o pano por cima do balcão do bar.
Ana Maria, irritada, desliga o telefone. Volta a olhar para a pista de dança. A mulher de vermelho virou as costas ao jovem musculoso e está a roçar-se contra ele, rindo exageradamente. Ana Maria atira o telemóvel para dentro da sua bolsa, pousada numa grade de bebidas no chão.
ANA MARIA
(para o barman)
Dás conta disto, não dás? Vou dançar um pouco.
O barman acena afirmativamente com a cabeça e Ana Maria abandona o balcão…
…e caminha lentamente pelo meio das poucas pessoas presentes…
… em direcção à pista de dança quase vazia, onde o prostituto repara na sua chegada…
…quando ela começa a dançar em movimentos sinuosos e sensuais.
Imediatamente o jovem abandona a mulher de vermelho, rodando em direcção a Ana Maria. Coloca-se à frente dela e sorri-lhe, revelando uma dentadura branca e perfeita. Ana Maria não responde ao sorriso, mas também não faz nada para se afastar.
O DJ, na sua cabina, TROCA A MÚSICA. O novo tema presta-se a dançar agarrado, e dois ou três casais entram na pista.
O gigolo estende os braços para Ana Maria e puxa-a para si, enrolando-a nos braços. A rapariga deixa-se levar e o jovem encaixa a perna musculosa no meio das pernas dela, iniciando uma dança lenta e excitante.
Ana Maria fecha os olhos e deixa-se levar.
O gigolô passa os lábios pela pele do pescoço de Ana Maria, num gesto de grande sensualidade, a que ela reage entreabrindo os lábios e humedecendo-os com a língua.
O gigolo passa a mão pelas costas descobertas de Ana Maria, fazendo-a arquear-se um pouco…
… ao mesmo tempo que Ana Maria abre os olhos…
… e vê o seu namorado, parado, na entrada da discoteca, fitando-a com raiva no olhar. A MÚSICA deixa subitamente de se ouvir, substituida por um SILÊNCIO opressivo, que contrasta com as pessoas que continuam a dançar.
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eu quero daça
Boa, eu também.
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Olá João,
Visto que sou amadora, e não gostaria de causar má impressão ao apresentar o meu guião, preciso de uma opinião. Devemos escrever como as personagens falam, ou isso cabe aos atores representar como falam?
Viva, sugiro que leia este artigo: https://joaonunes.com/2007/guionismo/perguntas-respostas-como-escrever-dialogos/
Boas escritas