Eu estou a tentar fazer um portfolio, sendo que dele consta um argumento/guião para um desenho animado de curta-duração que vive muito à base do humor físico. No livro que li, o Syd Field sugere que os parágrafos descritivos devem ser curtos e que mais de 4 frases já é demasiado. Ora, se assim o fizer para as cenas de humor físico fica tudo um bocado no ar e perde metade do impacto. É isto um erro? — Tiago
Tiago, o livro do Syd Field que refere, e que presumo ser o "Screenplay", é uma obra de 1979, muito importante em termos teóricos, que todos os guionistas ganharão em estudar. Para quem não o queira ler no inglês original, há edições brasileiras, espanholas e francesas.
Esse livro instituiu uma série de conceitos que hoje fazem parte da terminologia dos guionistas de todo o mundo, como o paradigma dos três actos, os plot points, a frase "action is character" (a acção é o personagem), etc. O meu exemplar tem a data de Setembro de 1995 e comprei-o, entre todos os lugares, em Los Angeles.
A força desse livro, contudo, é também a sua fraqueza. Ao querer sistematizar a escrita do guião, Syd Field acabou por cair num excesso de regras que, a certa altura, se assemelham muito aos dez mandamentos do bom guionista. Essa que refere é uma sugestão muito válida, mas para as cenas normais de um filme normal. Uma longa cena de acção como a que inicia o último 007, por exemplo, seria impossível de escrever dessa maneira.
Outro exemplo: o filme de animação francês "Les Triplettes de Belleville". Veja o seguinte excerto da sequência inicial e diga-me como poderia ser escrito segundo o mandamento de Syd Field.
A regra que menciona destina-se a orientar os guionistas menos experientes no sentido de serem económicos nas suas descrições de acção, para as suas cenas ficarem mais fáceis de ler. Descrição a menos torna confusa a leitura de uma cena, mas descrição a mais pode torná-la aborrecida. O nosso objectivo é dar toda a informação necessária à compreensão da cena, e nem uma palavra a mais. Numa cena normal este conselho tem um significado; numa cena especial significará outra coisa completamente diferente.
Veja, por exemplo, a cena inicial de um guião de uma longa-metragem de animação 1 que eu escrevi no ano passado e está actualmente em desenvolvimento.
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EXT. AMAZÓNIA – DIA
Estamos numa floresta tropical, densa e misteriosa. Um macaquinho de ar excêntrico aproxima-se balançando de tronco em tronco. É o MICO LEÃO.
Num dos seus saltos o Mico distrai-se com qualquer coisa que vê. Roda a cabeça para olhar e falha o tronco que ia apanhar. Cai na vertical, pelo meio da folhagem densa, mas consegue esticar a cauda e prender-se com ela a um tronco. De cabeça para baixo fica a olhar fixamente…
…para uma CABAÇA DE VIME, que, do seu ponto de vista, vemos de pernas para o ar. A imagem da cabaça roda…
…à medida que o Mico se endireita, farejando. Olha em redor franzindo as sobrancelhas, desconfiado. Volta a farejar.
O Mico aproxima-se da cabaça e sobe para cima dela. Espreita para o seu interior, farejando sempre. A cabaça está cheia de BANANAS. O Mico abre os olhos, espantado. Deita a língua de fora e lambe os beiços, guloso.
Vai meter a mão na cabaça quando, de repente, hesita. Franze as sobrancelhas, desconfiado, e revista o exterior da cabaça. Descobre UMA CORDA escondida.
O Mico salta para trás, assustado. É uma armadilha. Mas as bananas parecem rebrilhar no interior da cabaça. O Mico abre a boca, salivando.
Coça a cabeça, tentando encontrar uma solução. Depois sorri, satisfeito consigo mesmo, e desaparece por um momento. Regressa quase de imediato com um pau comprido na mão. Rindo entre dentes – eh eh eh eh – estica o espeto e, com jeitinho, fá-lo entrar pelo orifício da cabaça.
Clank! Uma corda estica. O Mico abre os olhos.
Clonk! Um ramo de árvore retesado desprende-se. O Mico sorri, satisfeito com a sua esperteza…
…e UMA REDE sobe debaixo dos seus pés, enrolando-o e prendendo-o.
O Mico solta o pau e coloca a mão no queixo, desiludido. E ali fica preso, à espera do seu destino, à medida que a câmara se afasta por cima das copas das árvores…
… voando pelo meio das aves que sobem da imensa floresta amazónica e vendo correr lá em baixo o imenso rio Amazonas, um mundo mágico e maravilhoso, acima e abaixo da superfície, com habitantes curiosos e variados.
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Neste exemplo toda a cena se resume a uma longa sequência de humor físico onde não há um único diálogo. Mas, se reparar com atenção, nenhum parágrafo tem mais de quatro ou cinco linhas. Cada vez que há uma nova acção, um momento que merece destaque, uma provável mudança de ângulo de câmara, eu corto para outro parágrafo. Essa técnica de escrita ajuda a entender melhor toda a acção e cria uma página menos densa, que não assusta o leitor só de olhar para ela.