No meu guião há uma cena de perseguição automóvel que termina em capotamento. Como deverei escrevê-la?
Sandra
Sandra, a escrita de uma cena de acidente automóvel segue os mesmos princípios da escrita de qualquer outro tipo de cena de acção, princípios que já referi aqui ou, na verdade, de qualquer outro tipo de cena.
Em primeiro lugar, essa cena deve ter um propósito dramático no fluxo da estória. E esse propósito dramático não deve ser apenas “criar agitação e acordar o leitor”.
Se bem recorda, a fórmula que proponho no Curso de Guião para definir o que é o Drama diz que Drama = Conflito + Surpresas. Uma boa cena deve pois contribuir para o desenrolar da estória com pelo menos uma dessas duas componentes, conflito ou surpresa.
O conflito é a situação mais frequente. Na maior parte das boas cenas há alguém que quer alguma coisa – informação, obediência, deslocar-se, amor, um objecto físico, etc. – e há um conjunto de circunstâncias que torna difícil obter essa coisa. No fim da cena o personagem consegue ou não consegue o que pretendia, e isso determina o rumo seguinte da acção.
A surpresa também pode funcionar, e ainda mais se surgir em cima do conflito natural da cena.
Por exemplo, no filme Capitão América: O Soldado do Inverno, que está neste momento nas salas, há uma cena de confronto físico em que o temível vilão do título está tentar liquidar o protagonista. Conflito clássico. Mas a determinada altura da luta a identidade verdadeira do Soldado do Inverno é revelada: trata-se de Bucky Barnes, o amigo de infância e ex-companheiro do Capitão, que julgávamos morto desde a 2ª Guerra Mundial. Surpresa em cima do conflito, causando uma reviravolta na estória e na forma como o protagonista vai continuar a lidar com a situação.
Assim, a primeira coisa que deve fazer é determinar qual o propósito dramático da cena. Essa informação vai servir de bússola para orientá-la na forma de estruturar a cena.
Depois deve planear o decurso da cena. Uma forma de o fazer é seguir as 10 etapas que o guionista John August preconiza e sobre as quais já escrevi antes.
A dica mais importante, no caso de uma acção de grande pendor físico e visual como é uma perseguição automóvel, é imaginar a cena a decorrer na sua mente. Tem de idealizar como quer que a a acção decorra, e ver isso como um filme a correr na sua imaginação. Depois basta descrever, com o detalhe adequado, as cenas que viu na sua cabeça.
Se quiser pode usar carrinhos de brinquedo para perceber melhor a realidade da cena. É um recurso muito usado pelos realizadores e coreógrafos de acção para pré-visualizarem as cenas e imaginarem a melhor forma de as narrar cinematograficamente.
O mais difícil aqui é definir qual o nível de detalhe adequado. A minha sugestão é escrever o suficiente para o leitor entender a cena e criar uma ligação emocional, mas não tanto que torne a descrição maçadora e cansativa.
Na escrita de uma cena de perseguição automóvel terá normalmente que descrever o que se passa no veículo perseguido, no perseguidor, e no ambiente geral em redor de ambos.
A forma mais simples de o fazer é apenas ir intercalando cenas curtas com cabeçalhos separados para cada uma dessas situações. Veja como isso foi feito no guião de The Italian Job, de Donna Powers e Wayne Powers, baseado no guião de 1969 de Troy Kennedy-Martin.
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EXT. FIGUEROA & OLYMPIC – DIA
Charlie continua a ter uma trabalheira para se ver livre da motorizada. Ela grita como uma criatura fantástica enquanto acelera ao lado do Mini. De repente Charlie vê uma AK-47 apontada mesmo na sua direcção.
INT. MINI DE CHARLIE
Ele dá uma guinada violenta ao volante e sai da rua, atravessando o parque de estacionamento do histórico Hotel Figueroa.
Com a motorizada a pisar-lhe as canelas, olha para o edifício. Tem três torres de 12 andares, uma delas coberta com um gigantesco mural de Albert Einstein (é um anúncio para os computadores Apple: Pense Diferente).
Subitamente um helicóptero da polícia de LA sobrevoa o parque de estacionamento, rasgando o ar, soprando poeira e jornais velhos, tentando bloquear o Mini.
INT. MINI DE CHARLIE
Não tem para onde ir.
INT. HOTEL FIGUEROA
O Mini espreme-se pela entrada para dentro da recepção do hotel, no meio da sua exótica decoração de estilo marroquino. Os hóspedes horrorizados catapultam-se do seu caminho. O Mini corre pelo meio de estátuas de maceira e palmeiras envasadas.
A motorizada segue o carro enquanto este corre para o elevador. Charlie olha para trás e vê a moto. A porta do elevador abre-se. Alguns turistas saem.
CHARLIE
Vai para cima?
INT. ELEVATOR
O Mini acelera para o interior, encaixando sem um centímetro de folga. Charlie estica o braço e carrega no botão marcado TERRAÇO
(…)
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A cena é muito mais longa do que está aqui descrito – a perseguição começa antes e continua depois, no terraço do hotel e por aí adiante. Note como a escrita é económica, tensa, com grande ritmo para simular o próprio ritmo e tensão que se quer imprimir ao filme.
Veja de seguida outra forma de escrever uma cena de perseguição, recorrendo a Cabeçalhos Secundários dentro de uma única cena.
Curiosamente, este exemplo, retirado do guião de A Identidade Bourne de Tony Gilroy, também descreve uma perseguição de uma motorizada a um Mini, que termina também num local estranho – uma estação de metro. Uma vez mais, a cena é muito mais longa do que este excerto, que serve apenas para exemplificar um estilo de escrita.
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EXT. VÁRIOS PLANOS EM PARIS — DIA
Os POLÍCIAS estão a mobilizar-se — convergindo para esta região e —
DE VOLTA À PERSEGUIÇÃO
BOURNE e MARIE apanham alguns polícias no seu rasto — livram-se de todos — o último carro desaparece numa CAMBALHOTA EXPLOSIVA — e o PROFESSOR está de novo atrás deles. E agora estamos numa
LOUCA PERSEGUIÇÃO AUTOMÓVEL COM OS POLÍCIAS MESMO ATRÁS DELES
BOURNE, MARIE e o PROFESSOR deixam um rasto de carros destruídos de que os polícias têm de se desviar — até dizerem que se lixe eles próprios abalroarem alguns carros, e agora estamos numa —
PERSEGUIÇÃO AUTOMÓVEL EM RUAS ESTREITAS
O CARRO DE MARIE e o PROFESSOR conseguem passar onde os carros da polícia não conseguem. BOURNE consegue livrar-se dos polícias, mas não do PROFESSOR. E agora, num movimento rápido, ambos estão —
EXT. CAIS — DIA
Correndo contra o sentido do trânsito Sena acima. Os POLÍCIAS seguem-nos do outro lado do rio. BOURNE e o PROFESSOR deixando atrás deles um rasto de destruição. E agora —
O PROFESSOR coloca-se ao lado deles — uma faixa no meio. Ambos desviando-se dos carros que se aproximam e —
MARIA DISPARA — DUAS VEZES — ARRANCA alguns vidros laterais. O PROFESSOR dispara ao mesmo tempo — A PORTA DO CARRO — DESAPARECIDA — ela está totalmente exposta mas —
O PROFESSOR — a sua MOTA PERDE COMBUSTÍVEL – um dos projécteis perfurou o seu depósito.
(…)
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Nesta descrição é interessante destacar duas coisas:
- Não há excesso de detalhe – o autor escolheu destacar apenas os grandes momentos ou os pormenores mais significativos. Mas mesmo assim temos uma noção perfeita do que acontece em cada momento.
- O estilo de frases entrecortadas, incompletas, com finais pendurados que fazem a transição para os parágrafos seguintes, contribui para uma leitura ininterrupta e uma sensação de velocidade vertiginosa, deixando-nos quase sem fôlego.
Resumindo, Sandra: defina o objectivo dramático da sua cena; imagine-a a decorrer na sua cabeça; e descreva-a segundo a forma mais adequada ao seu estilo de escrita e à própria cena.
Recomendo-lhe a leitura de outros guiões que tenham cenas de perseguição.
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