O Vicente Alves do Ó começou nestas lides do audiovisual ao mesmo tempo que eu: ambos escrevemos para o saudoso projecto pioneiro dos telefilmes da SIC, há uma boa dúzia de anos.
É um dos guionistas mais produzidos em Portugal, como o atesta o seu perfil no IMDB. Temos, inclusive, um crédito partilhado no guião do filme Assalto ao Santa Maria.
Mais recentemente a carreira do Vicente deu uma viragem para “o lado negro”: tornou-se realizador dos seus próprios guiões e assinou duas longas-metragens: Quinze pontos na alma e Florbela. Ainda não vi esta última, que foi muito bem recebida pelo público, mas a primeira deu-me a certeza de que estávamos perante um talento a manter debaixo do radar.
Florbela foi recentemente galardoado nos Prémios SPA e isso levou-me, finalmente, a perder a timidez e pedir-lhe uma entrevista para esta série. Ao que ele acedeu de imediato e com muito boa disposição, para sorte de todos os leitores do blogue.
Se forem como eu vão encontrar matéria de reflexão e interesse praticamente em cada uma das respostas do Vicente. Boa leitura.
Olá Vicente, obrigado por teres aceite esta entrevista. Sei que estás a escrever um novo guião. Como é o teu processo de escrita normal? És dado a tratamentos, escaletas, etc. ou passas de imediato ao guião? Desenvolves biografias de personagens, etc?
Olá! Bem, neste momento acabei um novo guião. Finalmente! :)
Sobre o processo de escrita: normalmente vivo com a ideia bastante tempo, ou seja, quando penso numa história, não consigo logo visualizá-la toda. Ela vai crescendo como um puzzle. Nesta primeira fase, junto peças, cenas, personagens, perguntas, intenções. Isto pode levar meses (poucos) ou anos. Tenho histórias na minha cabeça que sei, ainda não estarem prontas para serem escritas.
Neste projecto que acabei de escrever ontem, o trabalho foi mais ou menos o mesmo. A ideia surgiu-me no Verão passado e depois foi coleccionar coisas, falar com alguns amigos sobre o tema do filme, sobre a pertinência, sobre as possibilidades que a história tinha.
Quando era mais novo, tinha por hábito fazer tudo isso que dizes: tratamento, escaleta, biografias das personagens, procurava imagens que me inspiravam, procurava rostos para vestir as personagens. Hoje vou directamente para a escaleta, feita à mão, numa folha de papel (ou duas). Depois rescrevo-as em post it, uma a uma e coloco em cima duma mesa e ficam ali durante algum tempo, onde procuro a ordem certa de tudo aquilo que quero escrever.
Quando tenho a ideia amadurecida e a escaleta com pernas para andar, avanço para a escrita do guião. De salientar que, sendo um projecto que exige alguma investigação, também perco muito tempo a ler. Leio muito, não só o que diz respeito à narrativa, mas também ao tema ou universo dela.
Quanto tempo costumas levar a escrever um guião de cinema, e a que ritmo?
Bem… depende. Nunca mais de 6 meses, nunca menos de 5 dias. Quando era muito novo, lembro-me de ter escrito um guião em 5 dias. A ideia estava muito amadurecida na minha cabeça, tinha tudo pensado, e avancei logo.
Também é verdade que tinha menos medos e inseguranças. Os primeiros guiões são aventuras, convém que sejam aventuras cheias de perigos, que puxem pela nossa adrenalina e como tal eu gostava desse desafio, mesmo que depois corresse muito mal e fizesse “delete” no ficheiro do computador. Mas gostava disso.
Hoje, que já escrevi mais e que tenho mais inseguranças, escrevo mais devagar e penso mais no que estou a escrever. São os hábitos da experiência ou o tempo que se sobrepõem aos nossos impulsos.
Por quantas versões passas, em média, até estares minimamente satisfeito?
O último guião ( do filme Florbela) passou por 10 versões. Acho que é a média.
Entre a primeira e a última acontecem muitas coisas. Dou por mim deitado com a cabeça a mil, revisitando tudo e se encontro uma falha ou alguma coisa que não gosto, levanto-me a meio da noite e vou alterar.
E depois há todas as condicionantes quando entram em fase de pré-produção. Mas aqui falo como argumentista-realizador. Sou muito chato comigo e respeito-me pouco. O eu-realizador está sempre em guerra com o eu-argumentista.
Quando escrevia para outros realizadores era diferente. As versões dependiam mais deles e das propostas de alterações que me faziam.
Um filme como o “Florbela”, que tem como protagonista uma figura histórica, implica um trabalho grande de pesquisa e recolha de informação. Como é o teu processo de pesquisa?
Implica muitas dores de cabeça e muita vontade. Especialmente porque uma personagem controversa como a Florbela tem muitos amantes e muitos inimigos. As biografias existentes são controversas e díspares e as contradições amontoavam-se.
Acima de tudo o que fiz foi ler todo o material disponível, falar com pessoas que estudam Florbela há muitos anos, tive a sorte de encontrar uma pessoa que a conheceu e depois disso, depois de tudo isso o passo seguinte é esquecer, para não ficarmos soterrados pelo peso da História.
Temos duas formas de abordar uma figura histórica: ou deixamo-nos controlar por ela, ou passamos a ser ela ( espero fazer-me entender aqui).
O que fiz foi passar a ser a Florbela, o Apeles, o Mário Lage. Pensar como eles, sentir como eles e colocá-los ao serviço da história que eu tinha para contar. É a única forma de tirá-los do museu de cera e dar vida.
Lembro-me que durante um ano inteiro eu vivi como se fosse aquela gente. Tudo o que me rodeava era dos anos 20. Li autores da época, via filmes da época e como jogo pessoal testava-me muito. Quando estava numa determinada situação social ou pessoal, perguntava-me sempre: o que faria a Bela nesta situação? Como reagiria?
Acho que devemos construir um guião ( histórico ou não) sempre dum ponto de vista emocional pois é aquilo que mais nos aproxima da verdade. Como seres humanos não mudamos assim tanto com o tempo e essa era a única forma que tinha de me aproximar dela: utilizar a inteligência emocional e colocá-la ao serviço da narrativa.
Como decides que já tens a informação suficiente e está na altura de começar a escrever?
Quando não consigo dormir convenientemente. Não penso em mais nada e fico um bocado obcecado com aquilo. Preciso de me libertar. E a liberdade vem através da escrita.
Agora lembrei-me duma coisa. Culpa. Começo a sentir culpa por não estar a escrever e ter medo de me esquecer de todas as coisas que tenho apontadas na cabeça. O início é sempre assim meio dramático, mas eu só consigo escrever assim.
Qual é a tua posição no velho dilema: respeitar os factos históricos versus maximizar o impacto dramático da estória?
Sou muito cool em relação a isso, se bem que tenho alguns princípios em que nunca vacilo. O mais importante é nunca trair a essência da personagem.
Se a ponho com A ou B, pouco importa. O importante é o que ela “é” em ambos os encontros. E aí sou o mais fiel possível à verdade que disponho.
Não são os acontecimentos que ditam a História, são as personagens e a forma como actuam. A estória deve servir o filme, mas também deve servir o que temos para contar sobre elas.
Às vezes os factos são impossíveis de realizar ( imaginemos que estamos já em preparação para rodar o filme) e como tal temos que adulterá-los para caber no nosso orçamento, mas isso não implica que tenhamos que adulterar a personagem.
Afinal de contas, um filme é sempre a visão muito pessoal dum acontecimento ou pessoa. É a nossa visão e como todas as visões, é falha quando não se presenciou a realidade dos factos.
Em que fases dás a ler aquilo que escreves? É a amigos, colegas, familiares — ou logo para o produtor?
Tenho 3 pessoas a quem dou a ler o guião assim que acabo de escrever. São 3 pessoas totalmente e completamente diferentes na sua visão do cinema, da escrita, do mundo, das emoções, da vida. Cada uma delas representa um tipo muito distinto de ser humano e gosto de ter visões muito diferentes.
Normalmente fico satisfeito se os 3 gostam do texto. Quando nenhum gosta, é que as coisas ficam complicadas. Pelo menos para mim.
Mas volto sempre a estas pessoas. Não só porque me conhecem bem e as conheço bem, mas porque confio piamente no seu julgamento. Ou seja, podem ser extremamente elogiosos, como duma crueldade sem limites. E eu gosto disso.
Como lidas com as notas e comentários de terceiros, produtor, realizador, leitores?
Já lidei melhor, já lidei pior. Depende dos projectos.
No início (em 2000 escrevi 2 telefilmes para a Sic) sofria muito. Levava aquilo muito a peito, como se fosse um ataque directo à minha pessoa e que automaticamente destruía-me por completo.
Depois, conforme fui entrando no meio, apercebendo-me como as coisas funcionam, ficando mais seguro das minhas opiniões, aprendendo com quem sabia mais, fui ficando mais calmo e hoje até já me dá vontade de rir quando leio determinadas coisas – não porque sejam contrárias às minhas opiniões, mas porque os argumentos utilizados são muito muito infantis.
Acho que as opiniões e críticas, fazem parte do processo. Estamos a fazer qualquer coisa que comunica e que comunica a uma escala muito grande. E toda a gente tem uma opinião e acho que só assim é que a comunicação se estabelece entre espectador e realizador/argumentista.
Quando às opiniões dos produtores, actores, felizmente tenho a sorte de ter gente que procura sempre melhorar tudo aquilo que já existe até ao filme ficar pronto, por isso, venham elas e vamos lá.
Qual é a tua abordagem às reescritas, que processo usas?
Quando tenho que reescrever volto à escaleta. Nem toco no guião. Volto ao início, penso, penso muito, experimento, tentando perceber se aquilo é mesmo necessário e quais as implicações no todo.
Muitas vezes, aliás, o grande problema nos filmes portugueses é ver essa atrapalhação que deve ocorrer quando se é obrigado a reescrever, remontar, tirar cenas do plano de rodagem. Em tudo isso há pouco empenho para perceber que às vezes a mais pequena cena pode influenciar negativamente todo o guião. E depois os filmes chegam às salas e vão cheios de buracos.
Isto, porque, o argumento continua a ser o parente pobre do cinema português. Uma coisa menor. Pensamento este que ainda me surpreende pela sua insensatez.
Mas procuro sempre ter em mente o fio do filme, o filme todo, mesmo quando estou a rodar e decido tirar uma cena. Volto atrás e olho para o puzzle, para ver o que ganho e perco, o que tenho que alterar.
Um guião é com uma teia de aranha, muito frágil, muito armadilhada… quando se puxa um fio, se não tivermos cuidado, aquilo pode desfazer-se tudo.
Tu é um “hifenizado”: argumentista-realizador, com duas longas-metragens e três curtas que escreveste e realizaste. Como é que o realizador Vicente lida com o argumentista Alves do Ó? Costumas convidá-lo para as filmagens?
O argumentista está sempre presente na rodagem, se bem que só fala quando é preciso.
Ou seja, quando trabalho com os actores, quando os dirijo, aí sou mais argumentista, pois eles precisam desse apoio que é indissociável da construção da personagem.
Mas no que toca ao trabalho de realizador, sou bastante livre e faço muitas partidas ao argumentista Vicente. Corto coisas, altero, mudo diálogos, tiro diálogos por completo, deixo que a câmara faça o seu trabalho. Gosto muito de trabalhar com a câmara.
Agora que realizaste duas longas ainda consideras a possibilidade de escrever para outros realizadores? Nesse caso, achas que a tua experiência de realização vai tornar a relação com o realizador mais fácil, ou seja, achas que vais aceitar melhor as alterações que surgem durante a rodagem?
Se me convidarem, claro que terei todo o gosto em trabalhar apenas como argumentista. Só preciso é de acreditar no projecto e na visão do realizador. O mais importante é mesmo isso. Acreditar e sentir que aquela história pode ser escrita por mim.
Muitas vezes acontece, outras tantas nem por isso. Já recusei tantos projectos como aqueles em que estive ligado. Não porque não gostasse de trabalhar com as pessoas, mas sentia mesmo que eu não era a pessoa indicada para escrevê-los.
Quanto às alterações, mudanças, nesse aspecto sempre fui muito combativo e gosto que argumentem comigo. Aceito tudo, desde que bem fundamentado.
Nem sempre acontece assim e isso cria-me alguma frustração. Porque nem sempre as alterações são feitas a favor da história, mas sim a favor da pura comercialização do filme. E se formos a ver, já existe tanta coisa no mercado feita nesse molde, que nós, portugueses, poderíamos sempre pautar por uma diferença, mais não seja na forma como abordamos a narrativa.
Onde é que escreves? E quais são os teus horários/ritmos normais de escrita?
Já escrevi em todo o lado, menos na casa de banho.
Mas procuro sempre soluções novas. Já tive escritório, mesa, já escrevi na cama, na cozinha, em casa de amigos, em ateliers de amigos, na rua, hoje escrevo sentado no sofá da sala, com o portátil no colo, com os phones nos ouvidos, cigarros e cinzeiro de um lado e a luz da janela do outro.
Quando escrevo consigo ausentar-me do local, por isso não sou muito chato quando tenho que escolher as condições.
Normalmente escrevo à tarde (as manhãs são impossíveis) depois páro e a seguir ao jantar volto a escrever mais um pouco.
Nunca estabeleço metas. Antigamente fazia isso, depois não conseguia e ficava muito frustrado. Agora escrevo quando sinto a vontade de escrever. Já fui mais disciplinado.
Que apetrechos usas para escrever: papel e caneta? Computador? Software? Quais e porquê?
Primeiro começo pelos post it’s, pelos cadernos, pelos papéis, canetas, marcadores, lápis.
Quando vou para o argumento, tenho isso tudo à minha volta mas escrevo no computador e a partir daí, não saio mais do computador.
Na primeira parte preciso de mais liberdade no corpo. O computador ainda é um elemento que se impõe. Um pequeno papel não.
Posso estar no autocarro ou a andar na rua e se me lembro duma coisa, abro a mochila, sento-me algures e escrevo. Preciso dessa liberdade sem programas, tomadas de electricidade e tecnologia.
Quais seriam as condições ideais para poderes escrever o grande guião da tua vida?
Um deadline muito apertado e uma pistola apontada à cabeça.
Os guiões da nossa vida metem-nos medo, pelo menos a mim que tenho um e que ando sempre a arranjar desculpas para fugir. Por isso, nada como um prazo vital: ou é agora, ou nunca mais. Acho que isso resolvia a coisa. :)
Obrigado, Vicente, e boa sorte na tua dupla carreira de argumentista-realizador.
Vicente Alves do Ó nasceu em 1972 no Alentejo. Começou a escrever poemas e pequenos contos aos 12 anos. Em 2000 entra no mundo do cinema e da televisão e assina dois telefilmes para a Sic. “Monsanto”, realizado por Ruy Guerra e “Facas e Anjos” realizado por Eduardo Guedes. Trabalhou como argumentista com os realizadores, António-Pedro Vasconcelos, Mário Barroso, Solveig Nordlund, Francisco Manso e António da Cunha Telles. Em 2004 realizou a primeira curta-metragem que também escreveu: “Entre o Desejo e o Destino”. Assinou ainda duas curtas “Castelos no Ar” e “A Assassina Passional está louca”. Em 2009 filma a primeira longa metragem “Quinze Pontos na Alma” e em 2011 filma “Florbela” a segunda longa-metragem sobre a vida da poeta Florbela Espanca. Ao mesmo tempo lança o primeiro romance “Marilyn à Beira-Mar”, biografia amorosa da história dos pais e escreve e encena algumas peças curtas no Teatro Rápido. Entretanto acabou o seu mais recente argumento para uma longa-metragem e dedica-se ao segundo romance para 2014.
Geralmente recebo as suas postagens, João Nunes, na parte da manhã (aqui no Brasil). Leio durante o café. Por serem textos tão interessantes, incluindo o português de Portugal, exagero ao dizer que o dia fica melhor. Abraço.
Obrigado, Auro. Volte sempre e eu tentarei não desapontar.
Incrível como meus rituais de escrita são parecidos com os de Vicente. E agora, após a entrevista, me bateu uma vontade imensa de assistir "Florbela". Abraços, João.
É por isso que eu gosto destas entrevistas. Dão para ver a variedade de processos. Quanto ao “Florbela”, acho que vai estrear no Brasil, mas não sei dizer onde nem quando.
Gostei muito da entrevista. Eu também gosto de começar a escrever no papel. Sinto-me mais livre. Acho que a criatividade fica mais solta.
Quanto ao filme FLORBELA, bem, fiquei curioso e joguei o nome no youtube. E não é que estava lá?
Sei que o certo seria comprar e assitir, mas temos pouco acesso ao cinema português aqui no Brasil.
Eu vou comprar o DVD quando voltar a Portugal, mas até lá se calhar vou seguir a sua dica ;)
Confesso que tenho um certo receio de filmes biográficos, pois alguns tendem a ser diáticos. Mas FLORBELA valeu muito a pena. Gostei tanto que indiquei a alguns amigos. Um filme que me fez refletir bastante. Acho que cumpriu seu papel.
Parabéns ao Vicente Alves do Ó.
PS: Se fores mesmo assistir no Youtube, João, é só jogar o nome do título que a primeira opção que aparece é a do filme, que está dividido em 03 partes. O vídeo foi gravado diretamente da RTPI, o que nos deixa com menos complexo de culpa por estar assistindo sem pagar um ingresso…rsrs.
Abçs
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