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Depoimento: Nuno Duarte e a escrita de “O Turno da Noite”

    Nuno Duarte é o guionista da série de animação "O Turno da Noite", que eu referi aqui recentemente. Com a sua simpatia habitual, aceitou sem hesitações estrear um novo espaço neste blogue, dedicado a ouvir os guionistas profissionais acerca do seu trabalho.

    O objectivo dos Depoimentos é dar uma "vista de dentro" sobre o processo criativo do qual nascem os guiões: a sua concepção e gestação, a escrita e rescrita, e a colaboração com os outros intervenientes no processo.

    Como poderão ver nas palavras que se seguem, acertei em cheio ao escolher o Nuno para o primeiro artigo desta série.

    A escrita de “O Turno da Noite”

    Foi com a frustração típica de quem se acaba de aperceber do status quo instalado que falei ao Carlos Fernandes, realizador de animação e amigo de longa data, numa bizarra ideia:

    ”Está aí o concurso de apoio a séries de animação do ICAM. Por uma vez gostava de apresentar qualquer coisa com que verdadeiramente me identifico e não uma encomenda qualquer!".

    Ele encolheu os ombros, teceu umas palavras acerca da medicação que eu tardava em tomar, pediu um café e perguntou-me se tinha alguma coisa em mente…
    Com o sorriso típico de um lunático a quem abrem as portas do manicómio, respondi-lhe: “e se os mortos falassem mas só um autista os pudesse ouvir?”.

    Esta seria a premissa básica de “O Turno da Noite” que, surpresa das surpresas, não só recolheria a preferência e o apoio do júri do ICAM como rapidamente me colocaria a exigente tarefa de preparar oito guiões de episódios de cinco minutos. Ora aqui residiria um dos maiores desafios, já que não só teria de passar a relação entre o autista Edmundo e o cínico Doutor Semedo no seu turno da noite numa qualquer morgue de uma qualquer cidade, como ainda teria de narrar toda a história de como os mortos de cada episódio ali tinham ido parar.

    Cartaz de O Turno da Noite

    "O Turno da Noite", uma pequena jóia de animação à espera de ser divulgada convenientemente.

    Para além desta característica, outra das premissas combinadas com o realizador passava pelo facto de escrever os guiões ao mais puro estilo cinematográfico, tratando a animação apenas como um subterfúgio e uma opção estilística e não um meio específico para atingir os nossos objectivos que passavam por contar histórias interessantes, imbuídas de humor negro, e bons diálogos. Para esse facto contribuiu o gosto por referências comuns como os trabalhos de Quentin Tarantino, Sérgio Leone, Sam Peckinpah e Martin Scorsese, ou séries como Twilight Zone, Sopranos e Six Feet Under.

    Uma vez encontrado o formato dos episódios, com pequenos apontamentos entre Semedo e Edmundo no dia-a-dia (noite-a-noite?) bucólico da morgue, surgiriam então as estórias de como alguns dos mortos ali foram parar, contadas pelos próprios. Aqui explorei um universo de palhaços traídos, narcolépticos confusos, coleccionadores frustrados… personagens de todos os dias, com necessidades e problemas corriqueiros, mas com mortes e decisões por vezes risíveis, outras apenas com muita ironia à mistura.

    Depois dos episódios escritos começou a delicada tarefa dos ajustes, por vezes milimétricos para que o formato não fosse ultrapassado, havendo por vezes necessidade de decisões quase de realização, tomadas a par com o Carlos, nomeadamente substituindo cenas por montagens, ou até dividindo por vezes o ecrã em vários quadros simultâneos, curiosamente alguns anos antes do “24”.

    Finalmente, cerca de dois meses depois, o trabalho de escrita estava concluído, mas apenas no que aos guiões dizia respeito, pois com a concordância do Carlos continuei a acompanhar todos os passos da produção, introduzindo o meu input quer na gravação de vozes, direcção de actores e até elaboração da banda sonora, com algumas descrições e sugestões dos ambientes pretendidos.

    Agora que a série está pronta há cerca de um ano e continuamos a aguardar a sua emissão na íntegra pela RTP, existe toda uma série de coisas que já não teria feito bem assim, mas penso que isso é positivo pois só mostra uma evolução do meu estilo nos cerca de quatro anos que entretanto se passaram desde a criação dos conceitos iniciais. De toda a forma este foi, é e será um dos meus projectos preferidos, não só pela forma única como foi abordado por todos os profissionais que nele trabalharam, como pelo facto de pela primeira vez me ter permitido esticar as minhas “asas creativas” sem concessões.

    Nuno Duarte é membro associado das Produções Fictícias, onde escreve para TV, imprensa e teatro, mantendo no entanto a expectativa de ver o “Turno da Noite” um dia em DVD, para que toda a gente possa apreciar a série pelo que é.

    Blog pessoal: http://semcomentarios2.blogspot.com
    Blog de produção do “Turno”: http://turno-da-noite.blogspot.com/

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