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Perguntas e Respostas: podemos referir músicas?

    Uma pergunta: há como fazer referência à música incidental em determinada cena, ou mesmo à trilha sonora, quando esta está intimamente ligada à estória a ser contada? Lucila

    mingosLucila, uma das primeiras recomendações que encontramos nos manuais de escrita de guião é nunca referir uma música específica na descrição de uma cena.

    Há várias razões para isso, das quais destaco as seguintes:

    • raramente uma música é absolutamente essencial para o curso de uma cena ou de um filme. O mais provável é que várias músicas possam transmitir igualmente bem o sentido, ambiente, tom, estilo de uma determinada situação;
    • não sendo absolutamente essencial para a cena, caberá normalmente a outros profissionais escolher qual a mais adequada para incluir no filme, atendendo a diversos critérios: disponibilidade; custo; conveniência comercial; opção do realizador; etc;
    • sendo absolutamente essencial para a cena, pode acarretar graves problemas de produção caso não esteja disponível ou o seu custo seja inacessível. E isso pode assustar um produtor (“realmente… esta cena não tem sentido sem o “Let it be”, mas onde é que eu arranjo dinheiro para o pagar?“), o que não é coisa que nós queiramos que aconteça.

    Por isso o mais seguro é indicar apenas um género (“Rudolfo vai trauteando um fado conhecido enquanto afia a navalha.“), uma referência geral (“Nem a batida forte  de um êxito de verão se consegue sobrepôr ao rugido do motor do carro de Chico Zé“) ou um estilo particular (“Ao som de uma música de tonalidades épicas, o grande portão do hangar abre-se  para deixar entrar a equipa do tenente Alves.“).

    Em alternativa, há também a possibilidade de indicar uma música específica mas deixando bem claro que é apenas uma referência: “Francisco introduz no leitor o cd que Mirna lhe ofereceu. A cadência suave de uma bossa-nova (“Garota de Ipanema” não viria a despropósito…) enche a sala.“). Esta solução, contudo, deve ser usada com moderação, sob risco de criar obstáculos à leitura do guião.

    Outro caso particular é quando estamos a escrever um filme em que a música é a sua própria razão de ser. Os autores de “Mamma Mia” trabalharam em cima de todo o repertório dos Abba para construir o guião; o guião do “biopic” de Ray Charles tinha, certamente, inúmeras referências aos temas que marcaram a sua vida; e, num exemplo mais português, será seguramente impossível escrever um filme sobre o António Variações sem indicar as músicas que ele compôs e que marcaram toda uma geração. Mas em qualquer destes casos havia, ou haverá, por trás um produtor com acesso garantido às músicas; seria extremamente irresponsável para um guionista começar a escrever um filme deste tipo apenas por iniciativa própria.

    De qualquer forma, como em tantas outras coisas, o bom senso é a única verdadeira regra. Se uma cena ganha um sentido realmente especial com uma determinada música, elevando o filme para outro nível, e essa música não é inatingível, indicá-la no guião pode ser a melhor solução. Mas o guionista tem de ser absolutamente honesto consigo mesmo, para ter a certeza de que não se trata apenas de um capricho ou fantasia.

    Termino com uma cena de um guião que escrevi há cerca de 5 anos, para um produtor português, e que nunca chegou a ver a luz do dia. Quem é que adivinha que estória era esta?

    [fountain]

    INT. CENTRO PAROQUIAL – NOITE/MAIS TARDE

    “Os Samurais” interpretam novamente um dos seus grandes clássicos – “Twist é sedução” – com grande sucesso. Os mais velhos afastaram-se para as paredes, deixando o salão para os pares mais novos, liderados por Gastão Psicadélico e uma MOÇA ROBUSTA.

    MENO
    Por mais leve e mais ágil/A rodopiar no chão/Por mais desengonçado/E sem jeito no salão/Por mais triste ou alegre/Por mais gordo e sem apelo/Seja bonito ou selecto/Com melena no cabelo

    De repente, começa a fazer-se ouvir um violento “feed back” na instalação sonora. Meno olha em volta, desesperado.

    O público encolhe-se com o ruído e até Gastão troca o passo.

    MENO
    É tudo uma questão/De levar água ao moinho/Fazer a sedução/E o twist encurta o caminho

    O feed back continua. O padre Marques e um JOVEM DE ÓCULOS afadigam-se junto à mesa de som, tentando resolver a coisa.
    Meno desafina.

    (…)

    [/fountain]

    9 comentários em “Perguntas e Respostas: podemos referir músicas?”

    1. Pingback: Flashback 2009 | joaonunes.com

    2. E num romance? Há algum problema em fazer-se referência a uma música? E incluir alguns versos da letra? Obviamente estando a música identificada…

      Fi-lo no meu segundo romance – ainda não publicado – mas nunca pensei muito no assunto. Poderá haver algum problema relacionado com “violação” de direitos de autor?

      Obrigado

      1. Caro Marcos, não sou advogado por isso não lhe sei dar uma resposta fundamentada. Apesar disso, diria que fazer uma mera referência a uma música não deve trazer qualquer problema. Já a inclusão de versos, pode ser mais complicado. Dependendo de como os esteja a usar, podem ter um papel mais ou menos importante na nova obra literária, o que coloca questões mais complexas. Penso que o melhor seria confirmar com os seus editores.

    3. Olá,
      Tenho uma duvida, no meu roteiro, 2 dos principais personagens tem uma musica que chamo de ” a trilha sonora do romance deles” porem é uma musica muito comercial e outras historias que tambem contem musicas comercias como em uma balada, a musica que eles se conheceram que ambos descrevema a situaçao e a historia como um todo. Nao me refiro uma trilha sonora par a historia em si, mas como um marco na vida dos protagonistas em diversas situaçoes, ja que me refiro a historia em 3 tempos, como 3 vidas diferentes. Minha intençao é usar tambem musicas existente para constituir uma realidade. Ex: em uma Balada dos anos 80, usaria artistas e cançoes que marcaram a epoca e uma dessas cançoes seria a cançao que marcou a vida dos dois portagonistas.
      Espero que compreenda, Grata! :)

    4. Muitas vezes a inspiração para um roteiro pode surgir de uma canção, dos sentimentos provocados por ela. Daí todo o processo criativo andar de mãos dadas com ela durante todo o trabalho. Nada mais justo que apontar a fonte inspiradora e tentar dar a ela os devidos créditos e remuneração. Sabemos como uma boa música pode ser determinante, e se somos nós, os criadores da história, deveríamos ter ao menos o direito de escolher que tom dar a nossa criação. E depois sim, se por questões de orçamento a escolha se mostrar inviável, tudo bem, mas a coisa toda deveria ao menos poder ser discutida, ou pelo menos não deveria haver essa pré-condição restritiva, como se um guionista não fosse capaz de opinar sobre o som da própria obra.
      Acho muito injustas certas regras castradoras que recaem sobretudo em cima dos guionistas. Suspeito que isso é a forma que a Indústria encontrou para pagar pouco justamente à aqueles dos quais mais depende. Em outras palavras, se valorizarem devidamente os guionistas a coisa toda já começa ficando cara, então eu pergunto, será que tantas restrições não perduram apenas para os manterem de rédeas curtas, propositalmente? Tratam engenheiros como se fossem simples pedreiros, é botar a vaca no curral para melhor extrair o leite, é como vejo isso.
      Complementar um bom roteiro com boa música pode ser crucial para torná-lo memorável. Ao passo que, se os roteiristas deixam para outros decidirem (os que não tiveram nada que ver com o trabalho criativo e que vão fazer uma escolha com base em cifras, gosto pessoal ou até mesmo para promover algum músico) podem acabar por ter o cerne emocional de sua obra inteiramente desvirtuado ou até mesmo arruinado. Basta olhar para as músicas que a Industria promove ultimamente.
      Penso que uma forma de contornar essas restrições seria a de colocar a música na boca de um personagem que cante. Assim pode, João? Ou nem assim?
      Me corrija se eu estiver enganada, mas penso que seria como proibir um cantor de interpretar música de outros. Se uma criança cantarola versos de um cantor famoso isso também implica em pagamento de direitos autorais?
      E existe também aquela questão do Domínio Público, após 70 anos, pode-se sugerir tais músicas, amarrando-as bem ao roteiro. Geralmente os Clássicos já estão envelhecidos o bastante para serem usados, já que a desculpa é o encarecimento da produção,o jeito seria pensar numa forma de barateá-la usando de bom gosto.
      Não deveria ser “feio” o roteirista/guionista indicar quais atores e atrizes gostaria para os papéis, deveria ser muito normal! Se não puder ser, já é outra questão.
      Falei bobagem? Estou rebelde demais?

      1. Olá Eliana, se ler o artigo outra vez verá que eu não digo que “não se pode”. Dou algumas boas razões práticas para não o fazer, mas também dou algumas sugestões de como o fazer. E deixo um conselho que não me canso de repetir em muitos artigos deste blogue: “De qualquer forma, como em tantas outras coisas, o bom senso é a única verdadeira regra”.
        Boas escritas, Eliana.

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