Introdução
Quando o guionista John August e o autor Stu Maschwitz se puseram de acordo para criar a linguagem de escrita de guiões Fountain o seu objetivo era muito simples:
Fountain é uma sintaxe simples de marcação para escrever, editar e partilhar guiões em formato de texto simples, fácil de ser lido. Fountain permite-lhe trabalhar no seu guião em qualquer lugar, em qualquer computador ou tablet, usando qualquer programa que edite ficheiros de texto.
O artigo que se segue pretende explicar as bases essenciais da escrita de um guião usando a sintaxe Fountain.
É inspirado pela página de apresentação da sintaxe de Fountain, desenvolvendo-a e adaptando-a à realidade da língua portuguesa.
Todos os exemplos apresentados são retirados do meu guião de curta metragem O Pedido, ou criados especialmente para este tutorial.
No final do artigo encontrará um link para baixar uma versão desse guião de O Pedido em formato Fountain, que poderá comparar com a versão normal.
O que é uma linguagem de marcação
O formato de texto simples, que usa a extensão .txt, só suporta o conjunto dos carateres alfanumericos ASCII ou Unicode. Como tal não guarda quaisquer indicações de formatação, como fontes, corpo de letra, negritos, itálicos, sublinhados, etc.
Essa sua limitação é também a raíz das suas vantagens:
- Foco no conteúdo;
- Compatibilidade quase universal;
- Pequeno tamanho dos arquivos.
As chamadas “markup languages” (linguagens ou sintaxes de marcação), como o HTML, são uma forma de acrescentar outro tipo de informação ao conteúdo puro e simples, atribuindo categorias a certos blocos de texto.
Por exemplo, indicando, através de certas combinações de símbolos, que um determinado bloco de texto é um parágrafo, outro é um cabeçalho, outro ainda deve ser enfatizado, etc.
Como o HTML é uma linguagem relativamente complexa surgiram posteriormente outras sintaxes de marcação, como o Markdown, que permitem dar essas mesmas indicações de uma forma mais intuitiva e natural. Por exemplo, para indicar que um texto deve ser italizado em Markdown ele é cercada por asteriscos, assim: *Eu vou ser convertido em itálico*.
Há depois programas especiais que convertem um texto escrito em Markdown num ficheiro HTML que pode ser lido por qualquer navegador.
O Fountain é uma linguagem de marcação que tenta aplicar os mesmos princípios do Markdown à escrita de um guião em texto simples.
Aplicando algumas regras e sinais específicos ao texto simples ele poderá posteriormente ser convertido num guião corretamente formatado, sem perder o foco no conteúdo, compatibilidade e compacticidade.
O princípio básico de Fountain
O princípio básico de Fountain é muito fácil de entender: o texto deve ficar parecido à vista com um guião tradicional.
Devido às limitações específicas do formato um documento de texto simples não pode ser formatado exatamente como um guião o deve ser. Mas a sua aparência pode ser suficientemente próxima para ser reconhecido como guião por qualquer pessoa que tenha alguma familiaridade com o formato.
O documento Fountain pode mais tarde ser convertido para o formato tradicional correto de apresentação de um guião, em ficheiros .pdf ou Final Draft, por exemplo.
O essencial de Fountain em poucas linhas
Para usar o Fountain temos que decorar apenas cinco regras de sintaxe, todas elas perfeitamente intuitivas.
- Os Cabeçalhos são linhas de texto em MAIÚSCULAS que começam com INT. ou EXT. e têm linhas vazias antes e depois;
- Os nomes de Personagens são linhas de texto escritas em MAIÚSCULAS, com uma linha vazia antes;
- Os Diálogos são parágrafos de texto que vêm a seguir a um nome de Personagem ou a um Parênteses;
- Os Parênteses são linhas de texto que vêm (dentro de parênteses);
- As Transições são linhas de texto que terminam em TO:.
Com estas cinco regras temos cobertas as principais necessidades para escrever um guião.
Para cobrir outros aspetos importantes temos de decorar mais cinco regras:
- Qualquer linha de texto pode ser um Cabeçalho, desde que comece com um ponto final { . };
- Qualquer linha de texto pode ser uma Transição, desde que comece com o símbolo de “maior do que” { > };
- Para sublinhar uma palavra cercamo-la com traços inferiores { _ };
- Para pôr uma palavra ou mais palavras em negrito cercamo-las com dois asteriscos { ** } em cada lado;
- Para pôr uma ou mais palavras em itálico cercamo-las com um asterisco { * } em cada lado.
Uma cena escrita em Fountain terá então este aspeto:
INT. COZINHA DE ESCRITÓRIO – DIA
Jaime está agora em frente de uma mulher, ANABELA.
JAIME
Pensei muito, mas é isto que eu sinto: queres ser a minha mulher?
Anabela pondera por um instante.
ANABELA
(pensativa)
Não.
Anabela abana a cabeça e leva uma chávena de café à boca.
JAIME
Não, como?!
Depois de convertida conforme indicamos mais adiante esta cena aparecerá assim:

Com as dez regras enunciadas anteriormente pode escrever praticamente qualquer guião. Para o fazer siga o workflow que explico a seguir.
Como usar o Fountain
O objetivo do Fountain, obviamente, é escrever um guião.
Não me vou aqui debruçar sobre a parte artística e técnica da escrita, apenas sobre o uso do Fountain dentro do processo.
Que etapas teremos então para montar um workflow de escrita de guião baseado no Fountain? Basicamente quatro:
- Criação do documento Fountain;
- Escrita e edição do guião;
- Conversão para o formato de guião “oficial”;
- Arquivo do guião.
Vejamos então mais em detalhe este workflow minimalista.
Criação de um documento Fountain
Um documento Fountain é apenas um ficheiro em texto simples. Podemos criá-lo em qualquer programa que suporte esse formato, como o Bloco de Notas do Windows, o TextEdit do Mac ou até o Google Docs, na nuvem.
Um ficheiro de texto normalmente tem um sufixo .txt mas vamos mudar esse sufixo para .fountain.
O nosso documento vai assim chamar-se algo como O_Pedido_v2.fountain.
Apesar desta mudança de sufixo o documento continuará a ser reconhecido por todos os programas de edição de texto, em qualquer sistema operativo.
O que esta flexibilidade nos permite é podermos editar o nosso guião em qualquer plataforma. Podemos começá-lo no iPhone, editá-lo no Mac, partilhá-lo no Google Docs, corrigi-lo num PC, alterá-lo no iPad, etc.
Qualquer plataforma para onde consigamos copiar o nosso documento e que tenha um editor de texto é uma plataforma de trabalho.
Escrita e edição do guião
O ideal é começar o nosso documento incluindo alguma metadata – title, credit, author, etc – conforme veremos no próximo artigo desta série.
A partir daí é só escrever, usando as regras que mostrei neste artigo.
Como já referi, as primeiras dez regras cobrem 99% das situações.
Basta saber escrever Cabeçalhos (e, se quiser, Cabeçalhos Secundários), Personagens, Diálogos, Parênteses e Transições, e saber aplicar alguns Ênfases como o negrito e o itálico e está pronto para escrever praticamente qualquer guião.
Em caso de dúvidas, ou em situações muito especiais, consulte os próximos artigos desta série.
Conversão para o formato “oficial”
Um ficheiro de texto simples, por definição, não tem formatação. As regras que aplicamos (maiúsculas, linhas vazias antes, etc) ajudam-nos a que o documento Fountain tenha uma aparência mais ou mnos parecida com o formato tradicional de um guião.
Quem conhece o formato de guião e olha para um documento Fountain reconhece imediatamente os diferentes elementos.
No entanto isto não é suficiente para uma utilização profissional. O formato de guião é muito formalizado, por razões que já descrevi anteriormente (por exemplo, neste artigo).
Assim, antes de enviar o guião finalizado a um produtor ou concurso, será necessário convertê-lo para o formato “oficial” de guião.
Neste momento já há várias maneiras de o conseguir e, se o Fountain se afirmar, haverá com certeza muitas mais. Destaco apenas algumas.
O site Screenplain (http://www.screenplain.com/), gratuito, foi criado especificamente para converter ficheiros Fountain. Tem duas opções de saída: .html e Final Draft (.fdx). Ambas as conversões são bastante corretas e reconhecem o essencial das convenções do formato. Coisas mais específicas, como as Notas ou números de cena, podem ser ou não convertidas corretamente. Nenhum dos dois formatos reconhece a página de título. Infelizmente não faz conversão para .pdf.
O software Highland (http://quoteunquoteapps.com/highland/) é um editor de texto criado especificamente para escrever em Fountain e converter para .pdf e .fdx. Apesar de ter sido criado pelo guionista John August, um dos criadores do formato Fountain, as conversões também têm limitações. Os elementos essenciais são reconhecidos corretamente, mas outros mais específicos também mostram limitações.
O software FadeIn (http://www.fadeinpro.com/), para Mac e PC, importa o formato Fountain com muita perfeição. Só não reconhece as páginas de título, mas fora isso a conversão é muito robusta. A partir daí é muito fácil exportar em inúmeros formatos, incluindo .pdf, .fdx. .rtf, .docx, etc. Infelizmente é a opção mais cara, apesar de ser mais barato que o Final Draft.
O software Trelby (htpp://www.trelby.org/), gratuito, importa e exporta Fountain, e pode convertê-lo em vários outros formatos, incluindo .fdx e PDF. Como a versão do Trelby para Mac ainda está em desenvolvimento – há apenas versões para Windows e Ubuntu – não pude experimentar na prática. De qualquer forma, se usa uma dessas plataformas, recomendo que experimente esse programa. Pela lista de funções parece-me que será uma excelente opção, se tiver a estabilidade necessária.
Arquivo do guião
Uma das vantagens do formato .fountain ser apenas um ficheiro de texto simples é a garantia que nos oferece de arquivo de longo prazo.
Enquanto houver programas capazes de ler .txt os guiões estarão disponíveis. Mais depressa deixarão de ser reconhecidos os formatos físicos (disquetes, ZIP drives, CD’s, onde é que vocês estão…) do que os ficheiros .txt.
Além disso, um ficheiro .txt ocupa um espaço mínimo: centenas de guiões Fountain ocupam menos espaço de disco do que um único ficheiro .mp3.
Baixe um guião em formato Fountain
Se quiser estudar melhor a linguagem de marcação Fountain pode baixar uma versão do meu guião “O Pedido” convertido para esta linguagem.
O Pedido em linguagem Fountain
O Pedido versão original em PDF
Conclusão
Neste primeiro artigo de três vimos os elementos essenciais da linguagem Fountain. Nos próximos, que sairão às segundas-feiras de cada semana, iremos aprofundando estes elementos.
2ª Parte do tutorial Como escrever um Guião usando a linguagem Fountain
Obrigada por estas "revelações" técnicas.
Há tempos, ao ler um dos seusposts sobre software para guiões, descarreguei o Trelby. Confesso que me não dediquei ao programa e, dado ser uma amadora nesta tarefa da escrita cinematografica, pensei antes usar o Celtx para o concurso. Ao ler o presente artigo, surgiu-me a dúvida sobre o software e o formato mais adequados para o guião a propôr.
Bom dia a todos, :-)!
O software mais adequado, neste momento, será aquele com que a pessoa se sentir mais confortável. Com um prazo de 30 dias para escrever um guião – no FrenesiDeEscrita – o melhor é não começar a aprender um novo software ao mesmo tempo.
Quanto ao formato, terá de ser o formato oficial, com Cabeçalhos, Descrição, Personagens, Diálogos, etc, corretamente dispostos.
De qualquer forma, os guiões que me forem enviados no fim do FrenesiDeEscrita 2013 terão de ir em ficheiros pdf, por questão de uniformidade.
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Caro João Nunes,
Antes de mais os meus parabéns pelo website e respectivos artigos nele publicados. Bastante fáceis de se ler. Relativamente a este artigo devo dizer que o Fountain é uma boa alternativa para quem não tem dinheiro para investir num software de Escrita de Guiões fomo o Final Draft ou até mesmo o Fade In, que é o que eu uso.
Por último, gostaria de alertar que os ficheiros para download não estão disponíveis para baixar. Dá um erro. Talvez os removeu sem querer?
Um grande abraço e tudo de bom.
Obrigado pelas palavras simpáticas e pelo alerta. Vou ver o que se passa.
PS: o problema já está resolvido; eram links desatualizados. Obrigado uma vez mais.
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