Como escrever um bloco de diálogo paralelo, em que dois personagens falam em simultâneo?
O formato normal de um diálogo é o seguinte:
[fountain]
JOÃO
O que é que queres fazer?
MARIA
Não sei, diz-me tu.
JOÃO
Não, dá lá uma ideia.
MARIA
Eu disse primeiro…
[/fountain]
Para 99% das situações de escrita esta solução é suficiente e correcta. Cada personagem fala na sua vez, numa sequência natural e familiar.
Mas há situações em que, por algum motivo, os diálogos de dois personagens se devem sobrepor. Pode ser, por exemplo, para enfatizar a sua proximidade ou, pelo contrário, criar embaraço; ou quando ambos reagem em simultâneo a uma mesma situação.
Como fazer então nos casos em que queremos que ambos os personagens falem ao mesmo tempo? O formato tradicional do guião não parece indicado para isso.
Uma primeira solução, simples e eficaz, é indicar a sobreposição dos diálogos na descrição da acção, como se pode ver a seguir.
[fountain]
João e Maria falam ao mesmo tempo.
JOÃO
O que é que queres fazer?
MARIA
Onde é que vamos?
Os dois calam-se, atrapalhados.
[/fountain]
Esta solução resolve o problema e está correcta. Na maior parte dos casos servirá perfeitamente para que os leitores do guião entendam a situação.
Mas o formato normalizado dos guiões já prevê uma solução específica para este problema: o diálogo paralelo (dual dialogue, em inglês). O seu aspecto é o seguinte:
Como se pode ver, os nomes dos dois personagens que falam ficam na mesma linha, afastados do centro, e os seus diálogos nas linhas seguintes, num bloco mais estreito que o normal.
Nem todos os programas de escrita de guião prevêem esta formatação específica, o que pode atrapalhar se a quisermos adoptar. O Final Draft, que usei no exemplo anterior, oferece-nos essa opção, como se pode ver a seguir.
A linguagem Fountain também inclui de raiz uma sintaxe para diálogo paralelo: basta acrescentar um acento circunflexo ao nome do segundo personagem a falar, que os dois últimos diálogos são identificados como paralelos. Assim sendo, os programas como o Highland ou o Slugline que usam Fountain como matriz também reconhecem o diálogo paralelo.
Por exemplo, no Highland escreveríamos os dois diálogos assim:
e o resultado final ao imprimir ou exportar o guião seria o seguinte:
Finalmente, o programa WriterDuet, online e gratuito, também oferece o diálogo paralelo. É mais uma das razões que o tornam uma excelente opção para novos guionistas. O seu aspecto é o seguinte:
Já outros programas muito populares, como o CeltX, o Trelby ou mesmo o Scrivener, não incluem esta opção de formatação.
Um exemplo real
Um exemplo real do seu uso é o que apresento a seguir, retirado do guião de When Harry met Sally, de Nora Ephron. A cena, genial, é ainda mais interessante por se tratar de um diálogo telefónico entre dois pares de amigos (Harry e Jess, e Sally e Marie), narrado num ecrã tripartido. Harry e Sally, separados, fazem a mesma confissão, ao mesmo tempo, pelo telefone, e Jess e Marie, que estão juntos na cama, comentam-na em simultâneo. O resultado é hilariante, e um excelente uso dos diálogos paralelos.
Não liguem às numerações. Esta imagem é retirada de uma página do guião real, e são notas de produção. O diálogo paralelo, duplo neste caso, vem depois da quebra de página.
A cena filmada ficou assim:
Conclusão
A utilização de diálogos paralelos é mais uma ferramenta na caixa do guionista, que deve aprender a usá-la corretamente.
Mas não se deixe entusiasmar com ela: os realizadores e editores, de forma geral, não gostam que os personagens falem em simultâneo, porque isso cria uma série de dificuldades técnicas no momento da rodagem, e complicam a montagem no momento da edição.
Se abusar desnecessariamente desse recurso vai ser provavelmente ignorado. Use-o pois com moderação, e apenas quando acrescentar alguma coisa à cena, como vimos no exemplo acima.
Olá!
Gostava de lhe pedir que falasse com o António Barreira, Sandra Santos, Rui Vilhena, Pedro Lopes e Maria João Mira a disponibilizarem guiãos das suas tramas! Era bom, pois facilmente se encontra as tramas deles na internet e sempre pudemos ler e assistir e estudar um pouco novas maneiras de escrever.
Até mesmo voocê puder disponibilizar mais um episódio do “Inspetor Max” ou de outra obra de ficção que tenha feito.
Era ótimo para o seu blogue. Precisamos de novos recursos portugueses de autores portugueses! E como sabe o que é nacional é sempre bom :).
Gostava muito, Obrigado!
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