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O importante Ponto Médio

    Em artigos anteriores que publiquei aqui no blogue já escrevi sobre o Ponto Médio, um importante conceito da estrutura dramática. Veja, por exemplo, este artigo ou ainda este.

    É daqueles elementos da escrita que, depois de o conhecermos, começamos a identificar em todos os filmes a que assistimos. Ou, pelo menos, nos melhores dentre eles.

    Como é um aspecto realmente crítico para a estrutura de um bom guião, decidi aprofundá-lo um pouco mais neste artigo, incluindo também novos exemplos da sua aplicação.

    O que é o Ponto Médio

    Também conhecido por Ponto Intermédio, Viragem Intermédia ou Midpoint (em inglês), o Ponto Médio é um evento, ou sequência de eventos, que decorre sensivelmente a meio de uma narrativa dramática e que muda de uma forma particularmente marcante o curso dessa estória.

    Em cada guião há uma série de eventos que alteram significativamente o rumo da estória. Alguns deles são tão importantes que até têm um nome próprio na estrutura dramática: são as duas Viragens (Turning Points), no fim do 1º e 2º Atos, e o Ponto Médio.

    Como todas as viragens, o Ponto Médio deve estar intimamente relacionado com a trama principal da estória, e ter uma influência crítica nas ações do Protagonista.

    Muitas vezes é no Ponto Médio que o protagonista deixa de se limitar a reagir às circunstâncias e passa para uma nova etapa em que toma a iniciativa da ação.

    É também, frequentemente, o momento em que o protagonista tem uma primeira compreensão do possível desenlace da estória, positivo ou negativo. Devido a isso, é muito normal também que marque definitivamente o seu compromisso, eliminando qualquer possibilidade de retorno.

    O Ponto Médio está quase sempre relacionado com a viagem emocional do protagonista, e por isso assume normalmente formas muito pessoais, como revelações, mortes, traições, ou até o famoso “sexo aos sessenta minutos”.

    Exemplos de Pontos Médios

    Os eventos do Ponto Médio traduzem-se na amplificação da intensidade dramática da estória, e assumem geralmente uma ou mais destas formas:

    • o aumento do compromisso do protagonista;
    • o aumento da intensidade da oposição;
    • o aumento da gravidade das consequências.

    Vejamos alguns exemplos de Pontos Médios que ajudam a ilustrar estes três pontos:

    • em O Senhor dos Anéis o Ponto Médio é a reunião do conselho de Rivendel, em que Frodo se oferece para destruir o anel (compromisso);
    • em Rocky é a inesquecível montagem de treino em que o protagonista demonstra a sua renovada vontade de vencer (compromisso);
    • em Casablanca Ilsa tenta convencer Rick a ajudá-la, explicando-lhe a razão da separação em Paris (compromisso);
    • em O Silêncio dos Inocentes o Dr. Chilton trai Clarice, promovendo um acordo directo entre Lecter e a Senadora (oposição/consequências);
    • em  Intriga Internacional Roger Thornill é perseguido por um avião no meio do campo, e percebe que foi traído por Eve (oposição);

    • em Ghost o fantasma de Sam descobre que foi o amigo Carl, agora muito próximo da viúva, quem contratou o assassino que o matou (oposição/consequências);
    • em Os Salteadores da Arca Perdida Indiana Jones descobre a localização real da Arca (compromisso/oposição);
    • em Tubarão o filho do Xerife Brody é directamente ameaçado e chegamos a pensar que morreu (oposição/compromisso/consequências);
    • em Gladiador Maximus chega a Roma como gladiador, aproximando-se inexoravelmente de Commodus (oposição/compromisso);
    • em Titanic Rose e Jack fazem amor, desafiando as convenções e selando o seu destino comum (compromisso/oposição);
    • em The Hunger Games Peeta volta a salvar Katniss, que pensava que ele a tinha traído (compromisso/oposição);
    • em Thelma & Louise JD, depois de dormir com Thelma, foge com o dinheiro das duas mulheres, deixando-as sem opções (oposição/compromisso/consequências);
    • em Star Wars Ben Kenobi morre durante o resgate da Princesa Leia, privando Luke do seu mentor e aliado (oposição/compromisso);
    • em Terminator Sarah e Kyle conseguem um momento de pausa no meio da sua fuga, e fazem amor pela primeira vez (compromisso/consequências);
    • e, finalmente, em Little Miss Sunshine, a morte do avô obriga a família a funcionar unida pela primeira vez (compromisso).

    Como se percebe, cada um destes eventos representa um importante ponto de viragem no decurso das respectivas tramas. Basta imaginar essas estórias sem esses eventos para perceber como teriam sido completamente diferentes.

    Como escrever o Ponto Médio

    É importante recordar, uma vez mais, que a escrita de um argumento não se resolve com fórmulas ou receitas. Nada substitui a criatividade de cada autor e a procura de soluções frescas e inéditas.

    Mas analisando os exemplos acima, e muitos outros, vemos que os melhores Pontos Médios têm alguns elementos em comum:

    • Por definição, o Ponto Médio acontece mais ou menos a meio da estória. Não é preciso que seja aos 50% exactos, mas não deve diferir muito disso. Se na nossa trama o evento que escolhemos para Ponto Médio cai muito antes ou depois do meio, então talvez não seja a escolha certa. Que outro evento importante poderemos escolher, e eventualmente modificar, para desempenhar essa função estrutural?
    • Deve enviar a estória num novo sentido, mudando dramaticamente e irreversivelmente o que está em jogo. O papel das viragens é introduzir o elemento surpresa na estória, encaminhando-a para direcções inesperadas. O Ponto Médio é uma das viragens mais importantes da trama, o que lhe dá responsabilidades adicionais nesse quesito.
    • Deve ser um evento novo e fresco, que revela alguma coisa inédita sobre a estória ou o protagonista. Não basta ser mais uma sequência de acção ou uma luta com um novo adversário, por mais vistosas que sejam.
    • Deve afectar pessoalmente e emocionalmente o protagonista. Pode ser, por exemplo, uma revelação importante; um ato de traição; a morte de alguém próximo; uma derrota temporária; a consumação de uma relação amorosa. Quanto mais pessoal for, mais impacto terá no espectador.
    • O Ponto Médio pode dar um cheirinho da possibilidade de resolução da estória, mesmo que depois tudo volte a ficar mais complicado para o herói. Ou, pelo contrário, pode tornar a possibilidade de sucesso ainda mais distante e inacessível.
    • Finalmente, o Ponto Médio pode marcar o início de uma contagem regressiva (uma bomba-relógio). O protagonista tinha um objetivo dramático, mas agora passa a ter um prazo definido ou mais curto para o concretizar.

    Note-se que o Ponto Médio não precisa ser apenas uma cena. Em muitos filmes ocupa toda uma sequência de cenas ligadas entre si e que, no seu conjunto, cumprem uma ou mais das funções descritas acima.

    Conclusão

    O Ponto Médio é um evento ou conjunto de eventos que ocorre precisamente a meio de uma trama dramática, e muda de forma irreversível o entendimento da situação pelo protagonista, pelo espectador ou por ambos.

    De forma geral assume uma, ou mais, das seguintes formas:

    • um revelação importante;
    • uma vitória ou derrota temporária;
    • um ganho ou perda emocional;
    • uma bomba-relógio.

    Se estiver atento aos próximos filmes a que assistir, ou romances que ler, vai perceber os seus Pontos Médios com facilidade.

    Isto aplica-se também a outras formas dramáticas, como documentários, peças de teatro e séries de televisão. Neste último caso, encontramos o Ponto Médio não só nos episódios individuais como também nos arcos de cada temporada.

    Analise os seus esboços de guiões ou romances e procure identificar se existe algum evento importante, com as características acima mencionadas, a acontecer a meio das suas tramas.

    Se não existe, considere seriamente a possibilidade de o criar – a sua estória vai ficar muito mais forte com isso.

    4 comentários em “O importante Ponto Médio”

    1. Parabéns! Seus artigos são excelentes, muito bem escritos, claros e objetivos, e sempre de grande conteúdo. Ganhou uma fã!

    2. Pingback: JOÃO NUNES | | Grandes Diálogos: Homenagem a Bruce Willis - I see dead people | grandes diálogos, Artigo, Bruce Willis, escrita, técnica, Fountain, guião |

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