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Uma entrevista (cheia de spoilers) com os guionistas de “Avengers: Endgame”

    O New York Times publicou uma entrevista com a dupla de guionistas Christopher Markus e Stephen McFeely, que escreveram Avengers: Endgame e o predecessor Avengers: Infinity War, entre muitos outros filmes do Universo Marvel. A entrevista está cheia de spoilers, por isso, se ainda não viu o último capítulo desta saga de 22 episódios, pare imediatamente de ler.

    A entrevista dá uma perspectiva fascinante sobre o processo que está por trás da escrita de uma narrativa serializada como a de “Avengers: Endgame”, dividida em múltiplos episódios. E recorda um facto importante: quando a Marvel se lançou na produção do filme que deu início a toda esta série, Iron Man, estava na mó de baixo, e nunca imaginou que iria alcançar o sucesso e os resultados que obteve.

    Recomendo a leitura da entrevista completa (em inglês, infelizmente) mas gostaria de destacar alguns dos seus pontos altos.

    Sobre o Estalo

    Christopher Markus: “O ponto principal foi provavelmente o Estalo (the Snap). Sabíamos desde cedo que se não o colocássemos no fim do primeiro filme, este não teria um final. Mas se o colocássemos cedo de mais no primeiro filme, seria um bocado anti-clímax, ter toda a gente a andar por ali durante meia hora, depois de termos morto metade do universo.”

    Os autores pensaram nos dois últimos filmes dos Avengers como uma estória única de quase seis horas, e é assim que a sua estrutura deve ser analisada. Desse ponto de vista, o estalo marca o Ponto Médio, de que falei num artigo anterior.

    Sobre quem sobrevive ao estalo

    Markus: “Nós sabíamos que queríamos ver o Capitão e Tony (Iron Man) a lidar com o rescaldo, para os podermos ver sofrer, francamente.”

    (…)

    Stephen McFeely: “Chris e eu escrevemos um documento-base enquanto estávamos a filmar “Civil War”, e uma das coisas que estávamos interessados em explorar era, lembram-se daquela série de quadradinhos What If…? Bem, este é o nosso “E se…?”. Perdemos tudo: e se o Thor ficasse gordo? E a Natasha se fechasse em si mesma? E se o Steve ficasse deprimido? E se o Tony seguisse com a sua vida? E se o Hulk se tornasse num super-herói?

    Há tanta coisa a destacar aqui. Em primeiro lugar, a importância de apostar nos personagens que têm mais a perder e a ganhar em cada momento da estória.

    A referência ao documento-base é muito interessante. É impossível escrever uma narrativa com a complexidade desta longa estória, que culmina em “Avengers: Endgame”, fazendo-o capítulo a capítulo, sem um mapa, sem um guia que permita manter o fio aos acontecimentos.

    Nesse sentido, este Universo Cinemático Marvel deve muito à afirmação das narrativas televisivas serializadas, com os seus enredos e arcos de personagem que se prolongam por vários anos e múltiplos episódios. Os próprios autores referem, mais à frente na entrevista, a importância da atenção que deram a Game of Thrones, com a sua forma de entrelaçar diversas linhas narrativas sem confundir os espectadores.

    Finalmente, destaco a importância do E se…? na construção de uma estória. Um guionista é um gestor de cenários, variações e possibilidades. Ao escrevermos o nosso guião, devemos estar sempre a interrogar-nos sobre as diferentes opções e caminhos que se abrem à nossa frente, das mais óbvias às mais absurdas. Já falei nisso num artigo sobre o guionista John August.

    Sobre as viagens no tempo

    Markus: “Estávamos ali sentados a pensar: A sério? Vamos mesmo usar viagens no tempo? Foi só quando olhámos em redor para ver quem eram os personagens que tínhamos disponíveis, que vimos que ainda não tínhamos usado o “Ant-Man”. E ali estava, na teoria do Reino do Quantum, uma opção existente no Universo Cinemático Marvel, disponível para usarmos, com um personagem que ainda não tínhamos explorado. Era uma brecha que não era batota.”

    É importante não recorrer aos deus ex machina para resolver as nossas estórias. O espectador não gosta de soluções fáceis, que caem do céu sem uma justificação, para resolver as situações complicadas. A utilização das viagens no tempo neste filme é justificada dentro dos parâmetros do Universo Marvel, e aplicada de uma forma original e divertida. É claro que deixa questões em aberto, mas isso é inevitável em qualquer estória de viagens no tempo.

    Sobre as mortes

    McFeely: “A sua viagem (da Natasha), na nossa cabeça, tinha de chegar ao fim se ela conseguisse reunir os Avengers. Ela vem de um meio tão terrível de abuso, de controle mental, que quando chega a Vormir e tem a possibilidade de reunificar a sua família, essa troca é algo que ela aceita.

    (…)

    McFeely: “Toda a gente sabia que isto ia ser o fim de Tony Stark”

    Markus: “Acho que não havia mandatos. Se tivéssemos uma boa razão para não o fazer, as pessoas certamente teriam considerado essa opção.”

    McFeely: “A palavra-chave era “Encerrem este capítulo”, e ele tinha começado o capítulo.”

    Markus: “De certa forma, ele tem sido o espelho de Steve Rogers durante todo o tempo. Steve vai-se movendo em direcção a algum tipo de auto-interesse iluminado, enquanto o Tony se vai movendo no sentido da abnegação. Ambos chegam aos seus destinos finais.”

    (…)

    Markus: “Essa é a vida que ele (Tony Stark, o Iron Man) tem buscado desde o início. Ele e Pepper vão ficar juntos? Sim. Casam-se, têm um filho, foi ótimo. É uma boa morte. Não se sente como uma tragédia. Sente-se como uma vida heróica que chega ao fim.”

    (…)

    McFeely: “Desde o primeiro outline que sabíamos que ele (Steve Rogers, o Capitão América) ia ter a sua dança final. De certa forma, comecei a ter dúvidas se estava apenas a escrever para os fãs, ou a escrever para os personagens. Porque acho que foi bom para os personagens, mas também demos aos fãs o que queriam. Isso é bom? Não sei. Mas sei que foi satisfatório. Ele adiou a sua vida para cumprir o seu dever. É por isso que nunca achei que o fôssemos matar. Porque esse não é o seu arco. O arco é, finalmente posso arrumar o meu escudo, porque o mereci.

    Markus: “Sem sacrifício, não vamos conseguir tirar destes personagens tudo o que precisamos para estes filmes. É isso que faz deles heróis, não os seus poderes.”

    Dois comentários finais: em primeiro lugar, a importância dos arcos de transformação dos personagens, sobre os quais já escrevi várias vezes.

    Um bom protagonista, seja ou não super-herói, não é – normalmente – um personagem imutável. Durante o decurso da estória o seu carácter muda e evolui, sendo que em muitas situações é precisamente essa transformação que permite solucionar os problemas que enfrenta.

    Finalmente, a necessidade absoluta de ser honesto com os personagens, respeitando as suas características e personalidades. Os arcos de transformação não são instantâneos, nem devem acontecer apenas para resolver uma situação pontual. E não devemos confundir complexidade e multidimensionalidade, com mera confusão e incoerência.

    Um personagem que faz coisas contraditórias pode ser interessante, se isso for uma característica intrínseca sua(o que é raro), mas será sempre escrita mentirosa se essas contradições “derem jeito” para avançar a estória.

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