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A importância das (más) primeiras versões

    Se pudéssemos ler as primeiras versões dos guiões dos nossos filmes favoritos, ou de qualquer grande obra da literatura universal, ficaríamos muito surpreendidos ao perceber que não eram, nem de longe nem de perto, as obras que hoje tanto admiramos.

    A obra publicada, aquela a que o público tem acesso, é resultado de um processo normalmente longo e moroso. Mas esse processo fica normalmente escondido dos nossos olhos, por isso é fácil ignorá-lo e pensar que ela resultou, exclusivamente, do génio dos seus autores.

    A tentação, então, é comparar essas versões finais com os nossos primeiros esforços, e ficar desapontado com a enorme diferença.

    Mas é bem conhecido o comentário de Ernest Hemingway em relação às primeiras versões de qualquer obra:

    Não te sintas desencorajado por haver muito trabalho mecânico na escrita. Há, e não é possível fugir dele. Eu reescrevi a primeira parte de “O Adeus às Armas” pelo menos cinquenta vezes. É uma coisa que tens de resolver. A primeira versão de qualquer coisa é uma merda.

    Ernest Hemingway, citado em “With Hemingway: A Year in Key West and Cuba” de Arnold Samuelson

    Ora, se isto se aplica a autores de génio comprovado pelo tempo, como Hemingway, porque é que deveríamos esperar que fosse diferente connosco?

    É bem melhor aceitar as limitações e características naturais do processo de criação e encarar as primeiras versões como aquilo que elas realmente são: um protótipo da obra final. Defeituoso, limitado, incompleto – e até mesmo mau -, mas também com virtudes próprias, que devemos aprender a valorizar.

    As (más) primeiras versões ajudam-nos a descobrir a estória

    Mesmo quem, como eu, gosta de ter tudo muito bem planeado antes de começar a escrever, sabe que muitas coisas vão mudar durante o processo de escrita.

    Cenas que funcionavam bem na escaleta revelam-se supérfluas ou pouco interessantes; e sentimos falta de outras, que só nos são sugeridas ao escrever.

    Assim, não tem sentido perder muito tempo a finalizar cenas primorosas, quando é possível que tenhamos que descartar algumas delas que não se adequam à estória terminada.

    Tem mais sentido esboçá-las rapidamente, pondo todo o foco na sua construção, dinâmica e função – o conteúdo -, e deixar para uma segunda fase o trabalho de lapidação dos detalhes – a forma.

    As (más) primeiras versões são mais fáceis de acabar

    A estrada para o inferno autoral está pavimentada com manuscritos incompletos e obras-primas deixadas a meio por autores perfeccionistas.

    Já escrevi antes sobre as cinco fases de qualquer processo criativo. Aceitarmos as limitações inerentes a qualquer primeira versão ajuda-nos a sair do “buraco”, aquela assustadora fase intermédia, e seguir em frente.

    Sem o peso da perfeição sobre as nossas costas é mais fácil somar páginas e chegar ao fim do nosso guião, ou livro.

    A verdade é que qualquer (má) primeira versão completa é melhor do que uma (boa) versão abortada prematuramente. Terminado, um guião pode sempre ser retomado e melhorado; incompleto, só serve para nos assombrar.

    As (más) primeiras versões libertam-nos da pressão de ser perfeitos

    A tentação de voltar atrás e escrever tudo de novo, de procurar sempre a palavra certa, o verbo perfeito e a construção sublime, torna a escrita uma tortura e conduz normalmente ao desespero e à desistência.

    Quando aceitamos que não temos a responsabilidade de escrever páginas imaculadas logo na (má) primeira versão, o processo de escrita torna-se muito mais prazeroso.

    Todo o estresse e frustração desaparecem como por magia e recordamos, finalmente, porque é que escolhemos esta via.

    As (más) primeiras versões permitem explorar mais caminhos

    Como são mais rápidas e fáceis de escrever, as (más) primeiras versões permitem-nos explorar ideias e caminhos alternativos sem grandes compromissos com o que já fechamos.

    Se tivermos escrito 30 páginas “perfeitas”, em 6 meses de labuta, e nos surgir uma ideia potencialmente melhor para essa secção, vamos sempre hesitar antes de pôr de lado o que alcançamos com tanto suor.

    Se, pelo contrário, essas 30 páginas forem “más” e só nos tiverem demorado uma semana, estaremos mais disponíveis para dedicar outra semana a explorar um caminho interessante.

    As (más) primeiras versões deixam-nos brincar com as ideias

    O que referi no ponto anterior é tanto mais verdade se as novas ideias forem invulgares, arriscadas ou simplesmente “loucas”.

    Já referi antes que o guionista John August, entre os dez passos que sugere para planear a escrita de uma cena, inclui um pequeno jogo: imaginar a coisa mais surpreendente que pode acontecer na cena.

    Estamos a falar de coisas realmente inesperadas, fora da caixa, e que, como tal, poderão não funcionar ou até ser ridículas.

    Sabendo que, na maior parte dos casos, essas ideias serão descartadas depois de as experimentarmos, qual é a lógica de as burilar até ao mínimo detalhe?

    É muito mais proveitoso, e divertido, escrevê-las depressa e sem compromissos. Se funcionarem, mais tarde damos-lhes o polimento necessário; se fracassarem, podemos enviá-las para o lixo sem remorsos.

    Confie no processo

    Na terça feira, 23 de Maio de 2000 , às 16:27, sentei- me para escrever ‘Little Miss Sunshine’. (…) Terminei a primeira versão às 21:56 de sexta feira, 26 de Maio. Depois passei um ano a reescrever.

    Michael Arndt

    Francis Ford Coppola disse algures que a “‘Reescrita’ é apenas o nome do meio da Escrita.” O homem sabe do que fala, especialmente porque não há praticamente nenhum autor sério que não concorde com ele.

    Por isso, em vez de ficar a protelar o seu progresso procurando chegar logo a um final draft naquilo que devia ser apenas um first draft, faça exatamente o contrário.

    Coloque o pé no acelerador e some palavras até terminar o que muitos designam como o vomit draft: aquela primeira versão, muito mázinha, que só você vai saber que existiu, mas que é a pedra basilar da obra apurada que vai surgir depois da reescrita.

    Fotografia: Steve Johnson em Unsplash

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