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Como apresentar os personagens

    A forma como apresentamos os nossos personagens é crucial para a experiência de leitura do guião que escrevemos. Sem o apoio da imagem e som, temos de recorrer às palavras certas para criar instantaneamente uma imagem indelével na mente do leitor.

    Introdução

    Ao realizar um filme ou uma série de televisão, os cineastas dispõem de um grande número de recursos de mise en scène – a composição do plano, os movimentos da câmara, a iluminação, a direção dos atores, até os cenários e o guarda-roupa – para nos apresentar os novos personagens que vão entrando na estória.

    Graças a esses elementos, percebemos de forma natural e inconsciente a importância da chegada de cada novo interveniente. É uma cara nova, apresentada com um certo realce, logo: deve ser um novo personagem que precisamos ter em conta

    Pelo contrário, os autores dos guiões não dispõem desses recursos audiovisuais. Contam apenas com as suas palavras para dar corpo aos personagens que criaram, o que torna imperativo que sejam usadas com eficiência e intencionalidade.

    Assim, cada vez que um personagem novo entra em cena, devemos dar-lhe algum destaque, para garantir que não escapam à atenção de um leitor mais apressado, fazendo-o perder o fio à estória.

    Ao longo dos anos, foram-se consolidando algumas boas práticas para o fazer. Vou fazer aqui um pequeno resumo dessas diretivas, que irei complementar com alguns exemplos retirados do guião do episódio-piloto da minha série favorita de 2021, Mare of Easttown.

    Mare, of Easttown

    Dicas gerais para a apresentação

    Em primeiro lugar, vou referir o óbvio. Antes de introduzir os personagens no nosso guião, devemos saber quem eles são, conhecê-los profundamente, estar preparados para os jogar na ação da nossa estória.

    A criação de personagens ricos, com profundidade e bem caracterizados é, possivelmente o aspecto mais importante da escrita de ficção. No mínimo, é tão importante quanto a criação de um enredo ardiloso e bem resolvido. Deve, pois, ocupar uma parte muito significativa do nosso trabalho de pré-escrita.

    Já escrevi neste site diversos artigos sobre a criação de personagens, cuja leitura recomendo.

    Quando

    Devemos fazer a apresentação dos nossos personagens logo na primeira vez que eles aparecem no guião. É nesse momento que queremos que o leitor do guião comece a criar uma imagem mental deles.

    É claro que só mais tarde, com a continuação da estória, essa imagem inicial se irá desenvolver e consolidar, através das decisões, escolhas, ações e palavras de cada personagem.

    Mas, tal como na vida real, também nos nossos argumentos não há uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão.

    Onde

    O local para fazer a apresentação dos novos personagens é nos parágrafos de Ação/Descrição.

    Quando o personagem intervém pela primeira vez, mesmo que se limite a estar presente na cena, devemos fazer uma pequena pausa na narrativa para o introduzir.

    Nessas primeiras aparições, e apenas nessas, é costumeiro destacar o seu nome EM MAIÚSCULAS.

    Devemos também ter cuidado para que a introdução de cada personagem seja de certa forma proporcional à importância que ele vai ter na estória.

    Protagonistas e personagens principais têm direito, normalmente, a mais palavras de descrição do que um outro personagem que vai apenas aparecer numa única cena.

    Como

    Normalmente, ao introduzir um personagem iremos indicar, no mínimo, o seu nome e, se relevante, a sua idade.

    Personagens muito secundários, a que não pensamos regressar, podem nem sequer ter nome. Em alguns casos serão apenas, por exemplo, o POLÍCIA MAIS VELHO ou a SEGUNDA MULHER, (60).

    O inverso também é verdade. Se um personagem vai ter alguma relevância na estória, é conveniente dar-lhe um nome desde o início. Fica estranho identificá-lo apenas como MÉDICO durante uma série de cenas em que ele age, fala e intervém com grande proeminência.

    Pior ainda é dar-lhe um nome genérico no início (OPERÁRIO #1, por exemplo) e, algumas cenas depois de o ter apresentado dessa forma, dar-lhe um nome definitivo1.

    Já vi esse erro ser cometido em alguns guiões, geralmente amadores, e quase sempre é sinal de que o personagem ganhou mais importância do que o autor previa inicialmente, mas este não se deu ao trabalho de voltar atrás para rever a sua introdução.

    Se o personagem for um pouco mais importante podemos incluir alguns detalhes da sua aparência física, da sua roupa, do seu cabelo e outros traços, caso isso ajude a visualizá-lo.

    Por vezes recomenda-se não entrar em demasiados pormenores neste campo, para não complicar demasiado o trabalho de composição do elenco. Um retrato demasiado específico pode afastar certos atores que não se revejam imediatamente nele.

    Finalmente, se for adequado, podemos ainda acrescentar alguns traços de índole psicológica e comportamental.

    Não é preciso, obviamente, fazer o perfil psicológico completo do personagem. Temos todo o resto do guião para ir revelando as suas características mais íntimas. Mas dar uma ou duas pinceladas gerais, para os personagens mais importantes, auxiliará o leitor a compreendê-los melhor.

    Os exemplos que incluo adiante mostram diferentes formas de fazer tudo isso.

    Um pouco de estilo

    É importante notar que estas descrições dos personagens são dos poucos sítios no nosso guião em que é aceitável quebrar um dos preceitos mais importantes da escrita, o famoso “Mostra, não digas” (Show, don’t tell).

    Para ajudar a compreender essa conhecida prescrição, é costume citar Tchekhov, que escreveu, “Não me digas que a lua está a brilhar. Mostra-me o cintilar da luz no vidro quebrado.

    Transposto para o audiovisual, o “Mostra, não digas” significa que, normalmente, não deveremos escrever nas descrições das nossas cenas nada que não possa depois ser transformado em imagens e sons, e mostrado no ecrã.

    As apresentações dos personagens constituem uma pequena excepção a esta regra.

    Para facilitar a vida ao leitor, e ajudá-lo a criar mais rapidamente uma imagem mental dos personagens, é normal e aceitável incluir algumas indicações que não têm imediata transposição para os sons e imagens na tela.

    Veja-se, por exemplo, a descrição de Mare Sheehan, a protagonista de Mare of Easttown: “É uma mulher que ainda exibe o cunho dos seus pais – devotos operários Católicos Irlandeses que lhe ensinaram o valor do trabalho duro e a futilidade das reclamações…”.

    Com a exceção do facto de ser mulher, nada mais nesta descrição pode ser imediatamente mostrado no ecrã. Mas é inegável que as palavras que o autor usou contribuem para dar mais consistência à imagem de Mare.

    Finalmente, a descrição dos personagens é uma boa oportunidade para evidenciar a nossa assinatura autoral.

    A escrita audiovisual é muitas vezes acusada de ser excessivamente seca e funcional, sem preocupação com o estilo.

    Contribui para essa parcimónia a necessidade de economia que nos é imposta pelos constrangimentos próprios do formato do guião. Como não queremos que um filme de 100 minutos tenha um guião de 200 páginas, ficamos limitados no que podemos escrever.

    Por isso, encontrar as palavras perfeitas para descrever os nossos personagens, de uma forma que seja simultaneamente sintética e evocativa, é a ocasião perfeita para mostrar a nossa arte de escritores, acrescentando algum tempero à eficiente aridez dos guiões.

    Mare e a sua amiga Lori

    Exemplos: Mare of Easttown

    Mare of Easttown é uma minissérie americana criada pelo guionista Brad Ingelsby para a HBO. Com sete episódios, foi exibida pela primeira vez entre Abril e Maio de 2021 e tornou-se um dos grandes sucessos do ano.

    A sua protagonista, Mare Sheehan, é uma detective amarga e solitária que investiga um crime horrível numa pequena cidade da Pensilvânia, ao mesmo tempo que tem de lidar com os aspectos mal resolvidos da sua vida pessoal.

    Mare of Easttown foi muito bem recebida pela crítica, que louvou todos os aspectos da sua produção, desde a escrita às portentosas interpretações. Foi nomeada para os principais prémios da televisão americana, como os Emmys, tendo até ganho alguns deles.

    Vejamos então como o seu autor, o guionista americano Brad Ingelsby, apresenta alguns dos personagens de Mare of Easttown e o que podemos aprender com isso.

    Protagonistas e personagens principais

    Mare, a protagonista da série, é apresentada logo na 1ª página, em dois parágrafos vívidos e densos de informação (todas as traduções são minhas).

    MARE SHEEHAN, 43, alta e magra com cabelo castanho curto e sem um traço de maquilhagem, está do lado de fora da porta da frente adornada de uma modesta casa de dois andares. Veste um blusão decorado sobre uma camisa de flanela, Levis e Asics Gels. Preso no seu cinto está um distintivo dourado de detetive de Easttown e no coldre uma S&W M&P SHIELD 9MM.

    É uma mulher que ainda exibe o cunho dos seus pais – devotos operários Católicos Irlandeses que lhe ensinaram o valor do trabalho duro e a futilidade das reclamações e que a vida é dura e só nos resta sorrir e aguentar. Uma educação que foi útil para a sua carreira, mas a deixou paralisada e banal como mãe.

    Mare é a protagonista da série, por isso tem direito a uma descrição bastante extensa e detalhada, que toca em aspectos físicos, psicológicos e até familiares.

    Excepcionalmente, Mare aparece na cena anterior, mas só é apresentada nesta cena. Isso deve-se provavelmente ao facto deste já ser um guião de produção, que sofreu muitas alterações em relação ao original de Bard Ingelsby. A cena anterior (A1) foi com certeza acrescentada numa fase posterior da escrita, e não houve a preocupação de atualizar a apresentação.

    Outro personagem que tem direito a uma descrição longa e cheia de detalhes é Erin McMenamin.

    ESTAMOS MUITO PRÓXIMOS DO ROSTO DE ERIN MCMENAMIN, 17, deitada num tapete, com a bochecha pressionada contra a dobra do seu braço. O seu rosto preenche o ecrã. Ela está a sorrir sonhadoramente enquanto olha para o amor da sua vida, fora da câmara. Num alto-falante ESTÁ A TOCAR A MÚSICA ‘No Promises’ dos Cheat Codes.

    ERIN

    Vou sentir a tua falta neste fim-de-semana. Quem vai dormir ao meu lado? Aconchega-te aqui comigo. Beija-me. Abraça-me?… Às vezes pergunto-se se tu sequer percebes o quanto eu te amo.

    VEMOS AGORA que ela está a conversar com o seu filho, o BEBÉ DJ, 1, num canto, VISTO DE PERFIL. Mas ele está ocupado com um conjunto de blocos e não presta atenção à sua adorável mãe. Erin sorri de qualquer maneira, enquanto o vê brincar, infinitamente maravilhada com essa criança inesperada – a criança que terminou abruptamente a sua juventude e fez os seus amigos fugir, mas que agora é a sua única razão de viver. E ela é uma mãe maravilhosa, uma prova de quão profundamente podemos amar os nossos filhos mesmo sem nos amarmos a nós mesmos.

    É mais um exemplo de uma descrição longa e detalhada, que inclui alguns aspectos da história da vida de Erin que de forma alguma podem ser mostrados na câmara (“…fez os seus amigos fugirem“).

    SPOILER! Neste caso, o objectivo de uma apresentação tão detalhada é um pouco perverso. O autor está a forçar-nos a criar laços de empatia com Erin, de forma a que a revelação da sua morte, no fim do episódio, tenha o máximo impacto emocional.

    Personagens complementares

    Uma das características de Mare of Easttown é ter uma longa lista de personagens complementares, que orbitam ao redor de Mare, todos eles desenhados pelo autor com grande profundidade e sensibilidade.

    Esse cuidado com a caracterização de todos os personagens com certeza ajudou muito os atores que tiveram a sorte de interpretar estes papéis.

    Vejamos algumas dessas introduções: Frank, o ex-marido de Mare; Richard, que será a sua nova relação amorosa; e Lori, a sua melhor amiga.

    FRANK SHEEHAN, 43, um afável professor de matemática na Escola Secundária de Easttown, ex- de Mare e agora seu vizinho, entra na cozinha vestindo uma camisola de malha e calças de bombazine. Ele e Mare casaram-se aos 20 anos e qualquer chama de paixão que possa ter existido entre eles extinguiu-se pouco depois. Mas ficaram juntos pelas crianças, dividindo pouco mais que uma cama e uma conta-poupança. E ainda estariam juntos se o desastre nunca tivesse acontecido.

    Repare-se como o guionista inclui todo um historial da relação entre Frank e Mare, ajudando os leitores a entender as dinâmicas que se vão revelar ao longo da série. Acrescenta até um pouco de antecipação, com a referência ao desastre.

    Richard, o novo parceiro de Mare, também merece atenção proporcional à sua importância na trama B desta estória, que se começa a delinear logo neste primeiro episódio.

    Alguns bancos abaixo, um homem com uma camisa oxford azul, calças de sarja e sapatos de vela, repara nela. RICHARD RYAN, 51, é um professor universitário, amarrotado mas charmoso, que aceita a vida como ela vem, de forma leve. Observa Mare, parece estar a decidir o que vai dizer, e depois —

    RICHARD

    Venha um pouco mais para aqui. Eles não vão vê-la escondida aí atrás.

    Por fim, Lori, a melhor amiga de Mare, tem uma descrição um pouco menos detalhada do que os restantes personagens, talvez por aparecer já em ação numa cena relativamente longa. Mesmo assim o autor introduz um pequeno detalhe quanto à sua história de vida em comum.

    Nesse momento, LORI ROSS, 43 anos, entra com a cesta de roupa suja debaixo do braço. É a melhor amiga de Mare desde os quatro anos de idade. Lori coloca a cesta na frente da porta do porão, e olha para Mare num momento de simpatia…

    LORI

    Como é que te ’tás a aguentar?

    Figurantes especiais

    Ao longo dos sete episódios vamos ter oportunidade de conhecer muitos outros personagens, com diferentes níveis de importância e presença, refletidos na forma como são apresentados.

    Mare sai de baixo do pórtico e olha para o rosto largo de BETTY CARROLL, 70 anos, uma tagarela corpulenta, que está na janela de um quarto no andar de cima.

    Mare está no meio do corredor quando a porta se abre e GLENN CARROLL, 70 anos, bem-intencionado mas verboso, entra.

    JAN KELLY, 60 anos, a secretária da estação, de óculos e incansavelmente alegre, está sentada na recepção a atender uma chamada de serviço —

    O CHEFE DARRYL CARTER, 55, negro, um homem cujo estoicismo esconde uma profunda compaixão pelas pessoas que foi encarregado de proteger, está sentado à sua mesa a ver a emissão de televisão.

    É impressionante como duas ou três linhas chegam para nos criar uma fotografia instantânea de cada um destes personagens.

    Outros personagens que não têm tanto impacto na estória recebem descrições muito mais curtas, reduzidas ao essencial.

    Mare vira-se para encontrar um VIZINHO IDOSO, 85 anos, que tira a correspondência da caixa do lado de fora da sua porta da frente.

    Estamos no intervalo do jogo de basquete feminino. Na quadra central, o DIRETOR DESPORTIVO segura o microfone.

    Apresentação colectiva

    Finalmente, é interessante ver como Brad Ingelsby resolve o problema de apresentar de uma só vez um grupo de personagens. Veja-se como cada frase nos desenha um personagem com duas ou três pinceladas certeiras.

    Mare está entre os SEIS AGENTES DE PATRULHA, incluindo – o AGENTE BOYLE, 50 anos, um barrigudo brigão, a AGENTE SUSIE HOLBERT, 45, uma mãe solteira atarracada que não aceita tolos de bom grado, e o AGENTE RONALD TRAMMEL, 26, negro, magro, um pacote de nervos no momento, pois é seu primeiro dia de trabalho. Frente à sua equipa, o SARGENTO JIMMY MASTERSON, 40 anos, um homem desengonçado com um corte à escovinha, tem a palavra–

    Mais frequentemente, as descrições colectivas são usadas para apresentar grupos de personagens que o departamento de casting deve ter em conta mas não têm grande relevância para a estória.

    Está cercada por um GRANDE GRUPO DE AMIGOS e FAMILIARES, todos com cartazes de apoio a Dawn e protesto contra a polícia.

    UM GRUPO DE JOVENS joga uma partida de futebol num beco sem saída.

    Conclusão

    Apresentar os nossos personagens de uma forma ao mesmo sintética e vívida é uma arte que apenas a prática constante da escrita nos ajuda a desenvolver.

    A chave para o sucesso é a intencionalidade na escolha das palavras. Na próxima vez que tiver de apresentar um personagem no seu guião, faça estas três perguntas:

    • Qual a importância deste personagem?
    • Quais os traços físicos e psicológicos que melhor o definem?
    • Como posso descrever esses traços da forma mais interessante possível?

    Estará no bom caminho para escrever um guião mais fácil de ler.

    Notas de Rodapé

    1. A não ser que isso seja pensado e intencional por razões dramatúrgicas

    2 comentários em “Como apresentar os personagens”

    1. Boas, Nunes.
      No caso dum guionista a escrever um spec script, que não se pode dar ao luxo de grandes descrições, detalhadas, bonitas, porque um produtor (dizem) tem mais que fazer, e quer virar páginas em busca da narrativa sumarenta, como apresentar as personagens?
      O telegraficamente funciona, é eficaz?… Tipo: ” um irmão é pouco dado a afectividades, é impulsivo; é todo subordinado ao pai”; a descrição do outro irmão sendo “detesta injustiças, actua, devido; medra empenhado em pensar pela própria cabeça.”

      1. Caro Rafael, independentemente de ser um spec ou encomenda, o que escrevo no artigo aplica-se: a dimensão da descrição do personagem deve ser proporcional à sua importância na estória.
        Protagonistas e personagens principais podem bem ter dois parágrafos sumarentos; personagens importantes três ou quatro linhas bem escolhidas; outros personagens uma ou duas linhas mais sintéticas; e por aí adiante.

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