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Curso #13: O antagonista

    Que monstro dorme nas profundezas da sua estória? É preciso haver um monstro. Sem um monstro não há estória.

    — Billy Marshall

    Vimos no capítulo anterior como é fundamental ter um personagem fascinante como protagonista da nossa estória. E que ser fascinante não é o mesmo que ser bonzinho, ou simpático, ou sequer positivo. É simplesmente ter as características necessárias para que os espectadores tenham interesse em saber, em cada momento, o que lhe vai acontecer a seguir.

    Mas não é suficiente acertar no protagonista.

    Um filme é um mecanismo de relógio em que cada peça tem de funcionar perfeitamente para que o todo também funcione.

    Ou, usando uma outra metáfora mais comum, uma estória é como uma orquestra, em que todos os elementos têm de ser bem escolhidos pois basta um desafinar para a música já não soar bem.

    Assim, é fundamental selecionar corretamente todos os personagens da nossa estória, a começar, naturalmente, pelo antagonista.

    O antagonista

    O antagonista é o personagem que representa a principal força opositora ao protagonista.

    Uma estória pode ter vários antagonistas, obviamente, mas normalmente há um deles que se destaca pela sua importância.

    É aquele elemento que, para atingir os seus próprios objetivos, tem de impedir o protagonista de atingir os seus.

    Isso pode acontecer por duas razões:

    • Ou porque ambos, protagonista e antagonista, querem exatamente a mesma coisa e têm o mesmo objetivo;
    • Ou porque protagonista e antagonista podem querer coisas diametralmente opostas e incompatíveis entre si.

    Um exemplo do primeiro caso é o filme Salteadores da Arca Perdida, em que tanto Indiana Jones como os seus antagonistas nazis querem igualmente tomar posse da Arca Perdida.

    Um exemplo da segunda situação é Thanos, nos dois últimos filmes dos Avengers (1 e 2), que quer eliminar metade da população do Universo, enquanto os Vingadores tentam impedi-lo de levar esse plano a cabo.

    De certa forma, o antagonista é o protagonista de uma estória alternativa, com os seus fins, razões e motivos próprios.

    Antagonista NÃO É Vilão

    Um bom antagonista não tem de ser um personagem mau.

    Tal como os protagonistas, os antagonistas têm objetivos próprios, pelos quais vão pugnar até ao fim. E muitas vezes, aos olhos desses antagonistas, são eles que estão do lado da razão, e não os protagonistas.

    Por exemplo, no filme Doubt, a antagonista é a irmã Aloysius, uma freira apostada em provar que o protagonista padre Flynn é pedófilo.

    Neste grande drama, escrito por John Patrick Shanley, tanto o protagonista como o antagonista acreditam estar a defender o lado certo, o que eleva a estória para um nível superior.

    A irmã Aloysius, uma antagonista formidável.

    Em muitas estórias o antagonista principal não é sequer humano. São os casos, por exemplo, do Terminator, ou da maior tempestade de todos os tempos.

    Mas quando o antagonista é humano, ou tem características humanas, devemos ter ao criá-lo basicamente as mesmas preocupações que tivemos em relação ao protagonista.

    Como criar um antagonista fascinante

    A estória ganha imenso se o antagonista, à semelhança do protagonista, for ativo, interessante, multi-dimensional e tiver um arco de transformação.

    Estas duas últimas características são um pouco menos importantes, pois há antagonistas fantásticos que não são complexos, como o já mencionado Terminator, ou não sofrem qualquer tipo de transformação, como Hans Gruber, em Die Hard.

    Mas se os antagonistas não forem tão ou mais ativos do que os protagonistas, e igualmente fascinantes, não estão a contribuir como deviam para o sucesso da estória.

    Quando os antagonistas têm toda a riqueza e complexidade dos melhores protagonistas os filmes ganham uma nova dimensão e profundidade.

    Um dos melhores exemplos é, sem dúvida, Annie Wilkes, a personagem interpretada por Kathy Bates  no filme Misery.

    Neste guião de William Goldman, a partir de um romance de Stephen King, Annie Wilkes é a maior fã de Paul, um escritor interpretado por James Caan.

    Quando, por uma daquelas coincidências tramadas que são permitidas no início das estórias (mas não no seu fim) Paul sofre um acidente de carro, é Annie quem está por perto e o salva.

    Mas o que parece ser uma coisa boa começa, aos poucos, a transformar-se num pesadelo quando essa fã, enfermeira e anfitriã revela os seus lados mais escondidos.

    Neste caso, Annie Wilkes tem todas as características anteriormente referidas.

    É ativa (com uma marreta na mão, então…); é absolutamente fascinante na sua loucura; é incrivelmente complexa, conseguindo balançar entre a maior crueldade e a maior doçura; e sofre um gradual e desconcertante arco de transformação, ou, melhor dizendo, um “arco de revelação”.

    Em casos como o de Annie o personagem não se transforma realmente; ele só muda aos nossos olhos, revelando o que já era mas nós ainda não tínhamos percebido.

    Mas, para os efeitos de envolvimento do espectador, o resultado é o mesmo.

    Annie Wilkes, uma antagonista complexa.

    A unidade dos opostos

    Misery é também um exemplo perfeito de um outro aspeto fundamental na escolha e desenvolvimento do antagonista: a unidade dos opostos.

    É esse o nome que damos a uma situação com as condições certas para que protagonista e antagonista estejam de alguma forma presos um ao outro.

    As circunstâncias que, como autores, criamos para o seu conflito devem ser de tal ordem que os  dois oponentes não podem limitar-se a virar costas e abandonar a luta.

    Se protagonista e antagonista estiverem – metaforica ou realmente – acorrentados um ao outro, à maneira dos gladiadores romanos, a confrontação, além de inevitável, é mais dramática.

    É o que acontece em Misery.

    Depois de sofrer o acidente, o escritor Paul Sheldon fica preso a uma cama, incapacitado. O conflito surge quando Annie descobre que o escritor planeia matar a sua personagem favorita nos romances. Paul não tem como fugir dos “cuidados intensivos” de Annie e tem de encontrar as formas de a combater naquela situação.

    Mas há mais exemplos: em Os condenados de Shawshank Andy está preso e os seus antagonistas (alguns outros presos, os guardas e o diretor da prisão) também estão confinados aquele espaço e vida; no já referido Die Hard John McLane não pode fugir da torre Nakatomi porque a mulher é refém de Hans Gruber; e em Toy Story Woody e Buzz são ambos brinquedos de Andy e, como tal, têm de disputar a sua preferência.

    Os exemplos poderiam continuar indefinidamente, pois não há praticamente um bom filme em que essa unidade dos opostos não se verifique de alguma forma.

    Em todos estes casos, protagonistas e antagonistas estão presos uns aos outros porque têm os mesmos objetivos ou objetivos diametralmente opostos; e não podem encolher os ombros e seguir a sua vida noutro lugar porque o que está em jogo é demasiadamente importante para todos deles.

    Conclusão

    Na maior parte dos casos, acertar no antagonista é tão importante como acertar no protagonista.

    Se conseguirmos colocar do outro lado da trincheira um personagem tão ativo, fascinante e complexo como o nosso herói, criaremos mais oportunidades, e melhores, para este se revelar em todo o seu potencial.

    Um antagonista que sabe o que quer, luta por isso, e o faz de maneiras inesperadas e interessantes contribui de forma inigualável para o potencial dramático da nossa estória e, como tal, para o seu sucesso.

    No próximo artigo falaremos dos restantes personagens que é preciso desenvolver para completar o “casting” da nossa estória. Entretanto, aqui fica uma pequena galeria dos melhores piores antagonistas de sempre.

    Exercício

    Quem é o antagonista da sua estória, e o que o move?

    Se for humano, escreva um pequeno texto, na primeira pessoa, em que ele explica, numa carta a alguém que ama, as razões e motivos que lhe assistem para se opor ao protagonista.

    Mergulhe a fundo na sua psique, e tente vê-lo, não como um monstro, mas como protagonista da sua própria estória.

    Artigo atualizado em 25/04/2023

    8 comentários em “Curso #13: O antagonista”

    1. Curioso. Tive várias ocasiões de seguir esse “Misery”. Sempre começando a vê-lo e… E nada. E olha que tenho grande respeito pelo J. Caan e K. Bates, e alguma coisa da filmografia do Rob Reiner até me agrada, mas…

      (Não sei, talvez o conflito aí me contaminou mais do que eu esperava. Mas talvez agora, com olhos de guionista, me esforce e consiga superar isso.)

      E o mais curioso ainda, João, é que senti as mesmas dificuldades com “What Ever Happened to Baby Jane?” Aqui, porém, fui de cabo a rabo, sempre! rs. Também um bom exemplo, não é, João?

    2. Muito legal seus artigos, estou aprendendo bastante, são tantas informações para se estruturar um bom guião e com esses exemplos que você cita fica de fácil entendimento. Muito bom, aguardo os próximos artigos. No que eu puder ajudar estou a disposição.

    3. Lucas de Souza Monteiro

      Parabéns, mil vezes parabéns!!
      Pra quem quer começar, como eu queria, e nao sabia por onde o fazer…
      eis que surge João Munes com um blog fantástico.

    4. Pingback: joaonunes.com» Curso de guião Destaque Guionismo » Curso rápido: os personagens (3)

    5. Pingback: Flashback do ano | joaonunes.com

    6. Se possível, alguém me pode informar de que filme provém a personagem, em preto e branco aos 1:43? Fiquei completamente fascinado pela expressão deste actor! Obrigado.

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