Quem teve oportunidade de ver a cena de hoje no cinema, em 1991, quando O Silêncio dos Inocentes foi exibido pela primeira vez, nunca conseguirá esquecer o impacto desta primeira aparição do Dr. Hannibal The Cannibal Lecter, e a força da sua interação com a jovem e inexperiente (mas aguerrida) agente-estagiária do FBI Clarisse Sterling.
Todo o diálogo é um exemplo magistral de como as palavras são armas — de sedução ou de destruição massiva.
Clarice quer informação; Hannibal quer distração; o resto é História do Cinema.
O Silêncio dos Inocentes
de Ted Tally
baseado no romance de
Thomas Harris
Nota: a tradução é minha; o autor original não tem culpa das minhas limitações.
INT. CORREDOR DO DR. LECTER – DIA
PLANO EM MOVIMENTO – acompanhando Clarice, enquanto os seus passos ECOAM. No alto, à sua direita, câmaras de vigilância. À sua esquerda, celas. Algumas são almofadadas, com estreitas fendas de observação, outras são normais, gradeadas. Nas sombras os ocupantes movem-se, MURMURANDO… Subitamente uma figura escura na penúltima cela lança-se na sua direção, esmagando o rosto grotescamente contra as grades, e sibila.
FIGURA ESCURA
C-consigo chhheirar a tua buceta!
Clarice retrai-se momentaneamente, mas continua a avançar.
A CELA DO DR. LECTER
entra lentamente no seu campo de visão… Atrás da sua parede frontal gradeada há uma segunda barreira com uma robusta rede de nylon… Algumas poucas mobílias aparafusadas ao chão, muitos livros de capa mole e papéis. Nas paredes, inúmeros desenhos artísticos, extraordinariamente detalhados, na sua maior parte de paisagens urbanas europeias, a lápis e carvão.
Clarice pára a uma distância respeitosa das grades, e limpa a garganta.
CLARICE
Dr. Lecter… O meu nome é Clarice Starling. Posso falar consigo?
O Dr. Hannibal Lecter está a descansar na sua cama, de pijama branco, a ler uma Vogue italiana. Vira-se, avaliando-a… Um rosto que não vê o sol há tanto tempo que parece ser sido passado na lixívia – exceto os olhos brilhantes, e uns lábios vermelhos e húmidos. Levanta-se suavemente e vem colocar-se à frente dela; o perfeito anfitrião. A sua voz é suave, educada.
DR. LECTER
Bom dia.
INTERCALA ENTRE OS DOIS
conforme Clarice se aproxima mais um pouco.
CLARICE
Doutor, nós temos um problema difícil nos perfis psicológicos. Venho pedir a sua ajuda para um questionário.
DR. LECTER
Sendo que o “Nós” se refere à Unidade de Ciência Comportamental de Quantico. Você faz parte do pessoal do Jack Crawford, imagino.
CLARICE
Faço, sim.
DR. LECTER
Posso ver a sua identificação?
Clarice fica surpreendida, mas pesca o seu cartão de identificação da bolsa, e ergue-o para inspeção. Ele sorri, tranquilizador.
DR. LECTER
Mais perto, por favor… Mais – perto…
Ela obedece a cada indicação, tentando esconder o medo. As narinas do Dr. Lecter erguem-se, conforme ele aspira o ar, suavemente, como um animal. Depois sorri, e olha o cartão.
DR. LECTER
(continuando)
Isso expira numa semana. Você não é FBI a sério, pois não?
CLARICE
Eu – ainda estou em treino na Academia.
DR. LECTER
O Jack Crawford enviou-me uma estagiária?
CLARICE
Estamos a falar de Psicologia, não da Polícia. O doutor não pode avaliar por si mesmo se eu sou qualificada?
DR. LECTER
Mmmmm… Isso é muito ardiloso da sua parte, Agente Starling. Sente-se. Por favor.
Ela senta-se numa cadeira-escrivaninha dobrável de metal. Ele espera educadamente até ela estar acomodada, e depois senta-se também, olhando-a com satisfação.
DR. LECTER
Vamos lá, então. O que é que o Miggs lhe disse?
(ela fica baralhada)
O “Miggs Múltiplo”, na cela do lado. Ele guinchou-lhe qualquer coisa. O que é que ele disse?
CLARICE
Disse – “Consigo cheirar a tua buceta”.
DR. LECTER
Estou a ver. Eu, pessoalmente, não consigo. Você usa creme de pele Evyan, e às vezes coloca L’Air du Temps, mas não hoje. No entanto, trouxe a sua melhor bolsa, não é verdade?
CLARICE
(pausa)
Sim.
DR. LECTER
É muito melhor que os seus sapatos.
CLARICE
Talvez um dia eles consigam acompanhar.
DR. LECTER
Não tenho dúvidas disso.
CLARICE
(mexendo-se desconfortável)
Estes desenhos são seus, Doutor?
DR. LECTER
Sim. Aquele é o Duomo, visto do Belvedere. Conhece Florença?
CLARICE
Todo aquele detalhe, só de memória?
DR. LECTER
A memória, Agente Starling, é o que eu tenho em vez de uma janela.
Uma pausa, e depois Clarice tira o questionário da sua pasta.
CLARICE
Dr. Lecter, se fizer o favor de considerar –
DR. LECTER
Não, não, não. Estava a ir tão bem, cortês e recetiva à cortesia, tinha conseguido estabelecer confiança admitindo a verdade embaraçosa acerca do Miggs, e agora essa passagem desajeitada para o questionário. Assim não chega lá. É estúpido e maçador.
CLARICE
Só lhe estou a pedir que olhe para isto. Ou o faz ou não o faz.
DR. LECTER
O Jack Crawford deve estar cheio de trabalho se já anda a pedir ajuda aos seus estudantes. Muito ocupado a caçar aquele novo, o Buffalo Bill… Que grande malandro! O Crawford mandou-a pedir-lhe a minha opinião sobre ele?
CLARICE
Não, eu vim porque precisamos –
DR. LECTER
Quantas mulheres já ele usou, o nosso Bill?
CLARICE
Cinco… até ao momento.
DR. LECTER
Todas esfoladas…?
CLARICE
Parcialmente, sim. Mas, Doutor, esse é um caso em investigação, e não estou envolvida. Se puder –
DR. LECTER
Sabe porque lhe chamam Buffalo Bill? Diga-me. Os jornais não esclarecem.
CLARICE
Eu digo-lhe se olhar para este questionário.
(ele reflete, depois acena)
Começou como uma piada de mau gosto no departamento de homicídios de Kansas City. Comentaram… que este gostava de esfolar as suas bossas.
DR. LECTER
Sem graça e sem sentido. Porque é que acha que ele lhes retira a pele, Agente Starling? Maravilhe-me com a sua sabedoria.
CLARICE
Porque o excita. A maior parte dos assassinos em série guardam algum tipo de troféus.
DR. LECTER
Eu não guardava.
CLARICE
Pois não. Comia-os.
Um momento de tensão, seguido de um sorriso dele, face a este pequeno atrevimento.
DR. LECTER
Mostre-me lá isso.
Ela passa-lhe o questionário através da gaveta deslizante das refeições.
Ele ergue-se, dá uma olhadela, passando desdenhosamente uma ou duas páginas.
DR. LECTER
Ó Agente Starling… acha que me consegue dissecar com este instrumentozinho rombo?
CLARICE
Não. Tinha só esperança que o seu conhecimento –
Subitamente, ele empurra a gaveta de volta para ela, com um CLANG metálico que a faz saltar. A voz dele continua a ser um agradável ronronar.
DR. LECTER
Você é tãoooo ambiciosa, não é…? Sabe o que é que você me parece, com a sua bolsa cara e sapatos baratos? Parece uma saloia. Uma saloia bem escovada, esforçada, com um pouco de gosto… Uma boa nutrição deu-lhe ossos bem desenvolvidos, mas nem uma geração a separa dos saloios miseráveis, pois não, Agente Starling…? Esse sotaque que se esforça tanto por eliminar – pura Virgínia Oeste. O que era o seu pai, minha querida? Um mineiro do carvão? Tresandava a óleo da lamparina…? Ah, sim, quão depressa os rapazes repararam em si. Todos aqueles agarranços aborrecidos e pegajosos, nos bancos traseiros dos automóveis, enquanto sonhava em sair dali. Ir a qualquer lado – sim? Ir até ao fim – para o F… B… I…
Cada palavra dele atinge-a como um pequeno dardo bem apontado. Mas ela cerra os lábios e não cede terreno.
CLARICE
Você é muito percetivo, Dr. Lecter. Mas é suficientemente forte para apontar esse alto nível de perceção a si mesmo? Que tal fazer isso…? Olhar para si e escrever a verdade?
(remete a gaveta de volta a ele)
Ou talvez tenha medo de o fazer.
DR. LECTER
Você é uma durona, não é?
CLARICE
Um pouco. Sim.
DR. LECTER
E como odeia pensar que pudesse ser vulgar. Sim, isso ia doer! Bem, vulgar você não é, Agente Starling. Só tem o medo de o ser.
(pausa)
Agora terá de desculpar-me. Bom dia.
CLARICE
E o questionário…?
DR. LECTER
Um inspetor do Censo uma vez tentou testar-me. Comi o seu fígado com favas e um belo chianti… Voe de volta à sua escola, pequena Starling.
Recua de costas, e depois regressa à sua cama, ficando tão imóvel e distante como uma estátua. Frustrada, Clarice hesita, até que finalmente coloca a bolsa ao ombro e parte, deixando o inquérito na gaveta. Mas apenas alguns passos depois, enquanto passa pela
CELA DE MIGGS
Vê a criatura de novo nas grades, sibilando na sua direção.
MIGGS
M-ordi o meu pulso para p-oder morreeeer! V-ês como está a sangraaaar?
A figura sombria sacode a palma da mão na direção dela, e –
CLARICE
é salpicada no rosto e pescoço – não com sangue mas com pálidas gotas de sémen. Solta um pequeno grito, tocando com os dedos a humidade. Abalada, quase em lágrimas, força-se a endireitar-se e seguir caminho, procurando um lenço de papel.
Lá de trás, o Dr. Lecter interpela-a, muito agitado.
DR. LECTER (O.S.)
Agente Starling… Agente Starling!
Clarice abranda, e pára. Treme, mas faz a escolha difícil de virar-se, caminhar de volta, e parar em frente do –
DR. LECTER
Que está a tremer de raiva. Por um momento a sua expressão abre-se, e temos um vislumbre do próprio inferno. Mas logo se recompõe.
DR. LECTER
Não queria que isto lhe tivesse acontecido. A falta de cortesia é – simplesmente horrível para mim.
CLARICE
Então, por favor – preencha esse teste por mim.
DR. LECTER
Não. Mas vou fazê-la feliz… Vou dar-lhe uma hipótese de fazer o que mais gosta, Clarice Starling.
CLARICE
E o que será isso, Dr. Lecter?
DR. LECTER
Progredir, é claro.
(pausa)
Vá à Split City. Procure a Sra. Mofet, uma antiga paciente minha. M-O-F-E-T… Vá, agora. Vá.
(um sorriso)
Acho que o Miggs não consegue repetir, por muito maluco que seja – não acha?
CORTA PARA:

Obrigado, João! Que cena! Uma obra-prima da literatura cinematográfica. Sir Hopinks e a senhora Foster perfeitos em cada nuance.